Apesar de Fukushima: o programa nuclear brasileiro

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Em um terreno de um hospital abandonado na cidade de Goiânia, sucateiros encontraram um cilindro de metal. Eles venderam-no ao dono de um ferro-velho, que abriu o cilindro. Do recipiente, caíram cristais de cloreto de césio altamente radioativo, que misteriosamente cintilavam. O cilindro de chumbo compunha a parte interna de um aparelho radioterapêutico que havia sido simplesmente abandonado, segundo as declarações do Instituto Goiano de Radioterapia. O césio-137 foi distribuído entre os amigos e familiares, afetando completamente várias ruas de Goiânia e expondo milhares de moradores à perigosa radiação. Quatro pessoas morreram em poucas semanas, incluindo uma criança de seis anos que engoliu alguns dos cristais e precisou ser enterrada em um caixão de chumbo à prova de radiação. Muitos outros morreram nos anos decorrentes em consequência da contaminação. Cerca de 470 pessoas são hoje reconhecidas como vítimas da negligência ocorrida. Segundo as pesquisas da Associação das Vítimas de Césio-137, em Goiânia, cerca de 1.600 pessoas estiveram em contato com o material radioativo.



Brasil é uma potência nuclear

O país ocupa a sexta posição no ranking de reservas de urânio do mundo e estimativas indicam que a reserva nacional pode ser ainda maior do que se sabe até o momento. Atualmente, a única mina que está sendo explorada se localiza no Nordeste do país. Mais uma mina está sendo preparada para entrar em operação e outra, para ser desativada. No estado do Rio de Janeiro, operam uma usina de enriquecimento de urânio, além dos dois reatores nucleares brasileiros em atividade. Um terceiro, ainda em construção, entrará em funcionamento em 2016. Os três formam o complexo nuclear de Angra dos Reis, município localizado entre as duas maiores cidades do país, a 160 km ao sul do Rio de Janeiro e cerca de 400 km ao norte de São Paulo.

Angra 1 é um reator do tipo Westinghouse com capacidade de 657 MW que começou a operar em 1985, depois de 14 anos de construção. Já Angra 2 e 3 fazem parte do ambicioso acordo de 1975 entre o Brasil - até então sob uma ditadura militar - e a Alemanha Ocidental (República Federal da Alemanha). Estipulou-se que os alemães forneceriam a tecnologia para o ciclo completo de mineração de urânio para produzir combustível e para o reprocessamento do material. A empresa alemã Siemens KWU deveria, ao total, construir oito reatores.

Planos ambiciosos

A decisão de que, até o ano 2000, o Brasil deveria suprir metade das suas necessidades energéticas a partir da energia nuclear apontava para um histórico e sempre forte componente militar. Já, em 1953, o Almirante Álvaro Alberto da Mota (que dá nome ao complexo nuclear de Angra) tentou comprar na Alemanha três centrífugas de enriquecimento de urânio. Entretanto, os Estados Unidos ficaram sabendo do projeto e o vetaram.

Os governos posteriores consideraram o grandioso programa Brasil-Alemanha de 1975 - particularmente depois da saída dos militares em 1985 - caro demais e reduziram-no substancialmente. Por isso, Angra 2 demorou 25 anos para entrar em funcionamento após a assinatura do contrato de licitação. Atualmente, os dois reatores produzem cerca de 2% do total da eletricidade gerada no Brasil. Os trabalhos para a construção do reator de Angra 3 começaram em 1984, mas foram interrompidos em 1986 e as peças que já haviam sido compradas foram novamente armazenadas. Em, 2007, o governo do presidente Lula decidiu retomar o programa nuclear. Já em 2010, foram recomeçadas as construções em Angra dos Reis. Assegurada por uma garantia de crédito do Governo Federal da Alemanha no montante de € 1,3 bilhão, a joint venture franco-alemã Siemens-Areva (a Siemens, no entanto, saiu em abril de 2011) fornece a tecnologia civil.

No Brasil, a previsão é que um reator da chamada Segunda Geração, tipo Biblis/Grafenrheinfeld, entre em funcionamento até 2016. Por falta de tecnologia adequada de segurança, a construção desse tipo de reator hoje em dia já não seria autorizada na Alemanha. Naquele país, pelo contrário, todos os reatores desse tipo serão desativados gradativamente nos próximos anos. No Brasil, a construção de mais quatro reatores em locais ainda não determinados é prevista até 2030, segundo declarações do governo. A participação da energia nuclear na produção de eletricidade deverá aumentar para cerca de 5%. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, que também foi chefe da pasta no mandato de Lula, anunciou de forma entusiasmada a possível construção de 50 unidades até meados do século.


Segundo autoridades, Brasil está mais protegido

Foi esse mesmo ministro que se pronunciou logo após o colapso dos reatores em Fukushima, dizendo que o Brasil não tinha qualquer razão para reconsiderar o seu programa nuclear: "As dificuldades que os japoneses têm, nós não temos. Estamos mais protegidos." Um pouco mais tarde, ele anunciou que o Brasil tomará "cuidados especiais" com sua política nuclear. A Eletronuclear, estatal responsável pelas usinas nucleares no país, anunciou que construirá alguns cais, a fim de poder evacuar a população afetada também por via marítima. Até agora, a única estrada disponível como rota de evacuação é de mão dupla, mas com muitos trechos de apenas uma faixa por sentido. Isso porque frequentemente está bloqueada em razão de deslizamentos de terra que ocorrem praticamente toda semana. Em 1985, um grande deslizamento de terra destruiu o Laboratório de Radioecologia em Angra 1 e quase bloqueou a descarga da água de arrefecimento do bloco do reator.

Fixando o raio de evacuação em apenas 5 km, a Eletronuclear minimiza artificialmente o número de pessoas atingidas e deixa de fora Angra dos Reis, cidade localizada a 16 km de distância da usina. A empresa afirmou que a população da cidade foi informada sobre como se portar em situações de emergência e que simulações de acidentes teriam sido realizadas. Os moradores contestaram essa informação várias vezes. A questão da segurança insuficiente nas usinas de Angra também foi tema de uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro no final de março. Audiências semelhantes na Câmara dos Deputados e no Senado aconteceram em Brasília. O diretor-presidente da Eletronuclear, Othon Luiz Pinheiro da Silva, fez uma comparação com uma possível evacuação da batalha de Dunquerque, na Segunda Guerra Mundial, quando 300 mil soldados britânicos e franceses, cercados por alemães de uma Divisão Panzer, foram evacuados pelo oceano Atlântico. Na região de Angra dos Reis, vivem cerca de 200 mil pessoas.

A falta de debate político

De uma maneira geral, é preciso constatar que não há um debate político sobre o programa nuclear do governo no Brasil. A mídia tem ouvido alguns críticos e revelado algumas irregularidades, como a de Angra 2 que está operando há dez anos sem uma licença válida. Por enquanto, não houve nenhum debate no Congresso Nacional, mas iniciativa parlamentar: tanto a Câmara dos Deputados quanto o Senado realizaram audiências públicas, e uma comissão de 13 senadores visitou o complexo nuclear de Angra. Segundo uma pesquisa realizada em abril, 57% dos brasileiros têm medo de um acidente nuclear no país.

As audiências públicas e as contribuições na mídia têm se concentrado na (falta de) segurança das usinas em Angra, e não no programa nuclear como um todo. Nem o Partido dos Trabalhadores (PT), da presidente Dilma Rousseff, nem os partidos de oposição ao governo fizeram críticas públicas ao programa. Muito pelo contrário. As divergências - como o embate entre o novo ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, e os órgãos executivos na área nuclear, que são controlados pelos novos partidos coligados - resultam mais do fato de que o Brasil teve que importar urânio ultimamente. Isso porque a única mina desse elemento radioativo, localizada em Caetité, na Bahia, não pôde ser explorada por conta de problemas técnicos durante alguns meses de 2010.

Em vez de apurar as denúncias sobre a contaminação das águas subterrâneas em Caetité e uma série de incidentes na mina levantados pelo Greenpeace, mas também por autoridades locais e regionais, Mercadante concedeu a liçenca permanente de exploração à empresa estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Tal decisão foi tomada mesmo após a própria Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), responsável pela INB, admitir, pela primeira vez, em um recente comunicado à imprensa, que são vários os casos de vazamento de líquidos radioativos da mina para o meio ambiente.

Aparentemente, a oposição não vê potencial político na questão nuclear. Do principal partido de oposição, o PSDB, só alguns parlamentares apresentaram críticas ao programa nuclear publicamente. Eles vêm principalmente do estado de São Paulo, onde tradicionalmente existe uma boa relação com o Partido Verde (PV). O PV representa o único partido que advoga uma posição crítica ao projeto nuclear, mas ainda é bastante silencioso. As suas capacidades estão engessadas devido a violentas disputas intrapartidárias. A ex-candidata do partido na campanha presidencial de 2010, Marina Silva, opõe-se pessoalmente à energia nuclear, mas atualmente não tem cargo nem mandato oficial.

Durante a campanha, o PV somente exigiu uma moratória sobre a expansão da energia nuclear, e não o encerramento das atividades dos dois reatores existentes. Marina Silva propôs recentemente um plebiscito sobre a continuação do programa nuclear, mas é preciso perceber: essa questão não interessa a muita gente. A lógica oficial de que a energia nuclear é necessária para compensar as flutuações no fornecimento de energia com base na hidreletricidade e sua contribuição para atender à crescente demanda energética do Brasil, aparentemente, não é questionada pela maioria.

Atualmente, as críticas ao programa nuclear do governo não têm capacidade de mobilizar. Existem pessoas e organizações ativas contra as ameaças da tecnologia nuclear, principalmente em nível local, mas (ainda) não há um movimento antinuclear no país. Entretanto, processos preliminares já podem ser vistos. Em fins de abril, a Fundação Heinrich Böll facilitou um encontro nacional de ativistas, afetados e acadêmicos engajados na luta antinuclear no Rio de Janeiro. Concomitantemente, aconteceu uma reunião principalmente de acadêmicos engajados no assunto em São Paulo.

O fato de um governo popular ter desengavetado megaprojetos ambientalmente prejudiciais, tais como o desvio de grande porte do rio São Francisco, no Nordeste, as megacentrais hidrelétricas como Belo Monte, no rio Xingu, ou justamente o programa nuclear, causou uma desmotivação maior ainda. O Greenpeace Brasil abandonou sua campanha antinuclear no final de 2010. Fora isso, só é possível encontrar críticas feitas por cientistas, alguns dos quais com um passado na indústria nuclear. Resistência há apenas em nível local em Angra e Caetité. Enquanto, depois de décadas de luta contra os reatores, os grupos em Angra já não conseguem mobilizar uma grande parcela da população, em Caetité, uma multidão de aproximadamente três mil pessoas conseguiu impedir a passagem de um comboio de caminhões com rejeitos radioativos para as instalações da INB, no distrito de Maniaçu. A mobilização dos moradores resultou em um acordo assinado por autoridades municipais, movimentos sociais, Ibama e INB. Com isso, a carga radioativa, retida por cinco dias na Polícia Militar, em Guanambi (BA), chegou à Caetité sob a condição de permanecer lacrada, "até que sejam satisfeitos todos os requisitos de segurança dos trabalhadores da INB e do meio ambiente e após conclusão dos trabalhos do Ibama e da Cnen, com o acompanhamento de uma comissão institucional provisória”, como determinado pelo termo de compromisso.

Atualmente, cabe à Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (Afen) - autoridade interna da Cnen composta por técnicos da própria comissão – promover a solução de um problema antigo: a separação entre produção e fiscalização da energia nuclear, exigida pelas normas da Agência Internacional de Energia Atômica e por convenções internacionais. No Brasil, a supervisão é feita pela Cnen, que detém 99,7% das ações da INB, sendo nada independente em relação à Eletronuclear. Rogério Gomes, presidente da Afen, diz que as atividades são uma farsa e que os relatórios do órgão que preside são sempre encaminhados diretamente à Cnen.



O Brasil quer se tornar uma superpotência

A razão pela pouca crítica da esfera política pode ter sua origem em uma declaração da atual presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Ainda como ministra das Minas e Energia no primeiro mandato de Lula, ela afirmou que se o programa nuclear brasileiro fosse retomado, seria por motivos não energéticos. "Tragicamente, os motivos pela retomada do programa nuclear de Lula assemelham-se àqueles dos militares de outrora”, diz a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Cecília Mello, que acaba de elaborar um relatório sobre possíveis violações de direitos humanos na mina de urânio em Caetité.

"No Brasil, historicamente, a relação entre o uso da energia nuclear para fins energéticos e militares é muito estreita", analisa o físico nuclear Heitor Scalambrini Costa. A Constituição brasileira proíbe o uso não pacífico da energia nuclear. Apesar de o Brasil ter assinado o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), não aderiu ao Protocolo Adicional, que permite inspeções realizadas pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) sem aviso prévio nos países signatários. Que a utilização civil e militar da tecnologia nuclear são inseparáveis é uma tese popular, e no Brasil circula a especulação bem fundamentada de que aqui não é diferente.

Desde 1979, tem existido um programa militar nuclear secreto em resposta às falhas de cooperação com a alemã KWU, entre outras razões. O atual chefe da Eletronuclear, Othon Pinheiro, foi um dos líderes dessa iniciativa. Consta que se conseguiu enriquecer urânio a 20% e construir armas para testes. Entretanto, após o fim da ditadura militar, não foi mais possível manter tudo em sigilo. Em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello mandou aterrar um poço de 320 m de profundidade da Força Aérea que, segundo suas declarações, havia sido usado para testes nucleares. Assim, pôs fim, oficialmente, ao programa secreto.

A principal força militar é a Marinha. O Brasil há muito tempo tem perseguido oficialmente a intenção de construir um submarino de propulsão nuclear. Em 2008, conjuntamente com a França, foi fechado um acordo para a construção de cinco submarinos com tecnologia francesa no Brasil, incluindo um nuclear. A possibilidade da transferência de tecnologia atômica ainda permanece em aberto. A construção do submarino de propulsão nuclear deve começar em 2015 e o início das atividades está marcado para 2021.

Dawid Bartelt é diretor do escritório da Fundação Heinrich Böll no Brasil.