A poucos dias antes da decisão da eleição presidencial no Brasil, o público assiste atônito a uma discussão cada vez mais absurda. O fato de que dois terços do eleitorado brasileiro votou numa mulher como presidente poderia ter tido potencial para um avanço na luta pela inclusão dos direitos de mulheres e de minorias sexuais. Agora, se transformou num espectro de faces cada vez mais monstruosas e que reflete retrocessos reais a que as mulheres no Brasil estão sendo submetidas.
Ainda é provável que, depois do dia 31 de outubro, a América do Sul terá sua terceira presidenta, depois de Cristina Kirchner, na Argentina, e Michelle Bachelet, no Chile. No primeiro turno, as candidatas Dilma e Marina juntas receberam quase 70% dos votos dos brasileiros e das brasileiras. Tão impressionante quanto esta cifra foi a quase completa ausência de assuntos sobre discriminação das mulheres na sociedade brasileira na campanha eleitoral, e isso apesar do fato de termos 5 milhões eleitoras sobre eleitores. Representação das mulheres na política ou em cargos de responsabilidade no mundo de trabalho, igualdade de salários, igualdade de chances na educação, melhoramentos para que mulheres (e homens!) possam trabalhar e ser pais responsáveis e dedicados ao mesmo tempo (ou seja: disponibilidade e acessibilidade de creches, postos de trabalho de carga reduzida, horários de trabalho flexíveis, licença compartilhada entre mães e pais etc.) ou a mortalidade maternal - todos estes temas não foram debatidos na campanha, por nenhuma das candidatas, nem pelos candidatos.
Falando em mortalidade maternal: No Brasil, o aborto causa 15 % das mortes de mães, sendo a quarta causa de mortalidade materna. Isto se deve ao fato de que o aborto, ou melhor, a mulher que tem de ser submetida a ele, continua sendo criminalizada. A questão é de enorme importância nacional, e deveria ser de igual preocupação e uma prioridade política. Pois, segundo as estimativas do Ministério da Saúde, aproximadamente 1,25 milhão de mulheres ao ano interrompem a gravidez. Até uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos já fez um aborto. Pelo menos 250 mulheres morrem a cada ano devido às consequências do aborto. Nestas mortes ainda há uma discriminação social, pois as mulheres com dinheiro podem procurar uma clínica clandestina, enquanto as mais pobres se submetem a práticas de aborto clandestinas, sem orientação e apoio profissional de médicos, e acabam morrendo mais.
Ninguém vai negar que a questão é complexa e envolve aspectos éticos, que, aliás, podem emanar de crenças religiosas ou não. A questão ética pode chegar a ser de suma relevância para o individuo. Mas num Estado laico, e face à mortandade acima citada, devemos tratar deste assunto como um tema de política pública. Aliás, a candidata Dilma Rousseff e seu partido (PT) sempre considerou o aborto como uma questão de saúde pública, até abrir mão de sua postura (e integridade) para atrair os votos dos religiosos. Na verdade, caracterizar o aborto como assunto de saúde pública ainda é pouco, pois no fundo estamos falando de direitos humanos, neste caso, dos direitos reprodutivos e sexuais. Cabe à política deliberar – e ao parlamento decidir - sobre como estes direitos garantidos e inalienáveis devem ser regulamentados por lei.
E é na esfera dos direitos e da lei que tem que ser tratada também a união de pessoas do mesmo sexo. Vale lembrar que a reivindicação pelo direito de autodeterminação das mulheres e a descriminalização do aborto não apenas constavam do programa do PT de 2007 como também da primeira versão do Terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos apresentado pelo governo Lula em dezembro do ano passado. Aliás, ambos os candidatos eleitos para o segundo turno já se pronunciaram a favor de uma união civil “com todos os direitos e deveres de um casamento” (candidato José Serra, do PSDB). Agora, não querem mais saber disso, e o PT também pretende retirar este tema de seu programa. É inaceitável que no discurso público hegemônico, mulheres que se submeteram a um aborto sejam discriminadas e tratadas como criminosas, como o que vem acontecendo em Estados como Mato Grosso do Sul, onde quase 10 mil mulheres estão sendo ameaçadas por um processo criminal por terem se submetido a um aborto. Será que a desigualdade entre os gêneros não teria merecido uma proposta política por parte d@s candidat@s? Pois, neste caso, o Brasil não vai nada bem. Segundo um novo estudo feito pelo Fórum Econômico Mundial (FEM), num ranking de 134 países, o Brasil caiu do 67º lugar em 2006 para o 85º lugar no que diz respeito à diferença de renda e participação feminina na política. Quanto à última, a situação até tem melhorado, mas a passos lentos. Desde o fim da ditadura até hoje, por exemplo, cresceu o percentual de mulheres entre os prefeitos no Brasil – de menos de 4% para 9,2%. Dos 18 governadores eleitos no primeiro turno, apenas duas são mulheres, e somente em dois dos nove Estados que decidem seu governador no segundo turno, há candidatas. Dos 513 deputados federais eleitos em 2010, apenas 44 são do sexo feminino, uma a menos que em 2006. O percentual de 8,5 por cento equivale ao 104º lugar no ranking mundial. Melhor é o percentual no Senado: atualmente, há 13 senadoras, 16 % do total. Do total de candidaturas para o jogo eleitoral, em todo o território brasileiro, apenas 21% eram de candidatas mulheres. Isto é, mais do que nunca, mas ainda bem abaixo do mínimo de 30% de vagas a serem obrigatoriamente preenchidas por um sexo, segundo a legislação federal.
Também tem piorado no país a desigualdade salarial. A renda estimada das mulheres equivale a 60% das dos homens. A relação é pior que em 2006, e o Brasil ocupa um dos últimos lugares do mundo, a saber: a 123º posição entre os 134 pesquisados pelo FEM.
Estes são alguns dos temas que mereceriam estar na pauta das eleições presidenciais. Não merecem ser manipulados por interesses míopes e falsas alianças, numa competição grotesca por quem finge melhor ter fé. Falta, e muito, fé por uma politica moderna, socialmente justa e de compromisso com os direitos humanos, e por isso está na hora da sociedade civil, de forma ampla, reagir.
Por Dawid Bartelt, diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil
Para refletir mais sobre o tema, leia os argumentos do manifesto: PARA EXPRESSAR NOSSA INDIGNAÇÃO PELO USO QUE VEM SENDO FEITO DE UMA GRAVE QUESTÃO DE SAÚDE PÚBLICA, QUESTÃO ESSA DO INTERESSE DE TODA A POPULAÇÃO, E EM PARTICULAR DAS MULHERES – O ABORTO
Outras informações sobre a representação feminina na política e um acompanhamento no Parlamento dos projetos de leis e demais iniciativas em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres podem ser encontrados no site da organização CFEMEA, parceira da Fundação Heinrich Böll:
Confira também a nota de repúdio contra o uso eleitoral do debate sobre o aborto em www.sof.org.br.