Fórum Social das Américas

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Fórum Social das Américas no Paraguai
 

A mídia mainstream brasileira o ignorou por completo, mas foi um dos eventos mais importantes da sociedade civil latino-americana deste ano que se realizou no vizinho Paraguai, de 11 a 15 de agosto e que, aliás, contou com a presença massiva de brasileiras e brasileiros: o 4.o Fórum Social das Américas. O nosso novo diretor participou. Seu resumo: O raciocínio crítico e a busca de soluções para a conjuntura da questão da terra e da questão ambiental se voltam cada vez mais para espaços além do sistema ONU. A poucos meses da próxima conferência sobre mudança climática em Cancún, movimentos sociais se preparam para ir lá e pressionar os seus governos. Mas também discutem vias alternativas, como aquela aberta em Cochabamba.

Estes paraguaios devem estar acostumados a marchar”, sorriu, ofegante, uma participante brasileira já na reta final da marcha que abriu o 4.º Fórum Social das Américas, em Assunção, de 11 a 15 de agosto. Foram oito quilômetros ou quatro horas de caminhada pela capital do Paraguai, numa passeata de umas 10 mil pessoas de vários países das Américas, passeata liderada pela Prêmio Nobel de Paz guatemalteca, Rigoberta Menchú, e colorida pelas trajes dos indígenas dos países andinos e das bandeiras da Marcha Mundial das Mulheres, estas na sua maioria do Brasil. Foram elas que também mais faziam barulho, com a sua batucada – superadas apenas pelos motoristas dos carros nas ruas transversais que tiveram que esperar a marcha passar. Assunção pode até ter assistido a algumas marchas no passado mais recente, que inclui a vitória histórica de Fernando Lugo, ex-bispo com forte compromisso progressista, nas eleições presidenciais em abril de 2008. Mas os motoristas da cidade certamente não gostam disto.

De fato, um Fórum Social não teria sido possível no Paraguai até há bem pouco tempo atrás, como foi lembrado por Magui Balbuena, representante do Conselho Hemisférico na noite de abertura – que falou em Guaraní, com tradução para o espanhol. O painel de encerramento contou com a presença de três presidentes de Estado – além de Lugo, Evo Morales, da Bolívia, e Pepe Mujica, do Uruguai, que não estava previsto inicialmente - e por si só vem demonstrando a mudança política no continente: Debateram com representantes da sociedade civil (entre estes Francisca “Pancha” Rodríguez, liderança de alta estima do movimento campesino do Chile e parceira do Programa Cono Sul Sustentável da Fundação Böll) um ex-guerrilheiro, um índio e um ex-bispo seguidor da teologia da libertação como supremos representantes de seus Estados, coisa impensável ainda na virada dó século.

As temáticas foram múltiplas e variadas. Não faltou o velho discurso esquerdista, miraculosamente imaculado pelas mudanças e diferenciações a nível global, que busca sua salvação em ferventes ataques ao “imperialismo norte-americano” e o “capitalismo” em geral. Mas o que marcou este Fórum foi, mais uma vez, o decidido caráter participativo e a massiva e corajosa participação dos camponeses e indígenas nas centenas de atividades às quais o Fórum convidou. Se é para identificar um fio vermelho naquele pano multicolor que o Fórum teceu, foi a tentativa de converger a questão agrária, a questão do campo, com a questão ambiental e em particular com as mudanças climáticas. Nem sempre foi fácil o diálogo entre os profissionais “onguistas” das grandes capitais e os campesinos que desceram descalços das montanhas na Bolívia ou Peru ou vieram dos campos e do Chaco do Paraguai. Os primeiros queriam discutir as armadilhas do mecanismo REDD – Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação das florestas, enquanto os outros foram a Assunção para dar seus testemunhos sobre os efeitos depredadores do agronegócio, dos transgênicos à sua existência. Mas queriam saber. Esteve lotada a oficina sobre REDD promovido por Amigos da Terra, parceira da Fundação Böll, e nove entre dez não sabiam o que é efeito estufa, e muito menos o que é REDD. A pesquisadora ativista Camila Moreno se empenhou em explicar que REDD propõe uma perigosa mercantilização das florestas através de mecanismos de compra e venda de direitos de emissão de CO2. A idéia do REDD é tão tentadoramente simples como a realidade em questão é complicada e complexa e de grande risco: Compensar financeiramente os países detentores de florestas para que não as desmatem mais, assim evitando, ao mesmo tempo, o aumento de emissões e a redução dos chamados estoques de carbono. O temor de muitos, explícito em Assunção, é que isso não levará a redução de emissões, mas a perda de soberania dos povos indígenas sobre as suas florestas e dos seus direitos, a expulsão de seus territórios, enquanto nos países industrializados não haverá redução de emissões porque estes compraram o direito de continuar poluindo no mercado REDD, e ainda beneficiar o agronegócio. (Ver mais sobre REDD aqui http://www.boell-latinoamerica.org/download_pt/redd_fsm_Os_mercados_vao…) E também surgiu uma raiva pois os historicamente responsáveis querem continuar o seu business as usual. Nas palavras de Miguel, indígena do Peru: “Eles dizem que temos que nos adaptar. Nós sempre nos adaptamos à natureza. Quem não se adapta, quem não quer mudar, não quer abrir mão dos seus carros todos é o povo lá no Norte. E a nós, que vivemos a quatro mil metros de altura, sofrendo cada vez mais de estiagens, geladas e enchentes provocadas por chuvas fortes, não se oferece nenhuma solução.”
Assim, o processo de negociações sobre a mudança climática promovido pela ONU foi forte assunto de debate. Não poucos dos participantes estão se preparando para ir a Cancún (México), em dezembro, para participar da 16.a Conferência dos Partidos (COP), a primeira depois da fracassada conferência de Copenhague, em dezembro do ano passado. REDD vai ser o enfoque desta conferência. Mas nos debates também era possível perceber-se que a legitimidade do processo da ONU está se esvaziando. Se os governos o desrespeitaram, em Copenhague, por não avançar em decisões obrigatórias que são capazes de deter o aquecimento global, os movimentos sociais estão buscando outras referências. Ou melhor, já a encontraram. “Cochabamba” foi a palavra de ordem, quase onipresente. A “Conferência Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra”, realizada em abril deste ano na cidade boliviana, com cerca de 40 mil participantes, se realizou como resposta da sociedade civil, indignada com as politicagens e a falta de vontade por parte das grandes potências mundiais. O acordo que saiu desta conferência exige a introdução dos direitos ambientais no direito internacional. Ele propõe uma Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra, e um Tribunal Internacional de Justiça Climática . O acordo reafirma a responsabilidade histórica dos países desenvolvidos para as emissões dos gases de efeito estufa, exigindo deles medidas concretas no volume de cinquenta por cento de redução de emissões até 2017, baseado nos índices de 1990, para que o aquecimento global se limite a 1°C (enquanto o ‘acordo de Copenhague’, estipulando apenas compromissos voluntários e limitados, levaria a um aquecimento devastador de 4°C). E condena totalmente o mecanismo REDD.

Teve mais uma coisa que marcou o Fórum, à qual os frequentadores dos fóruns mundiais dos últimos anos talvez já tenham se acostumado. Tão recente que está a ameaça da mudança climática, quão antiga é a discriminação dos indígenas no seu próprio continente. E assim como a urgência de uma nova política climática já não pode ser silenciada, a participação justa dos indígenas nas políticas sociais a nível dos seus Estados e do continente, é irrefutável. Clima e o papel dos indígenas são talvez os dois maiores desafios para o continente latino-americano e os que têm mais potencial de mudanças. Os indígenas (e principalmente as indígenas) se fizeram muito presentes no Fórum - não somente pelos muitos que vieram participar, alguns andando dias em ônibus. O fato que representantes superiores de um Estado latino-americano participando do Fórum são indígenas teve alto valor simbólico. E é neste nível, das políticas simbólicas, que se manifestou o Buen Vivir ou Vivir Bien ou Sumak Kawsay ou Suma Qamaña. Vários painéis e atividades trataram de discutir a ideia de “não querer viver melhor, mas viver bem”. Ela é antiga entre os indígenas mas debatida com mais intensidade apenas há alguns anos nas sociedades civis do além-mar. De que maneira e até que ponto o Vivir Bien serve para as sociedades urbanas da Europa ainda merece muita discussão, assim como dúvidas sobre o seu encaixe com a realidade da política energética inclusive na Bolívia e no Equador, que o adotaram como princípio constitucional. Quem escutou as palavras do ministro boliviano das Relações Exteriores, David Choquehuanca, pode perceber que os indígenas, ao propor o conceito, não o fazem com espírito prosélito. Antes de mais nada, el Buen Vivir é um conceito de auto-liberação dos povos indígenas, uma forma com a qual eles se livram da eterna condição de escravizados, reprimidos e discriminados, da percepção que não são “gente-cidadãos”, apenas massa, que não são capazes de cultura, apenas de folclore, não de arte, apenas de artesanato. A Fundação Böll, através das suas quatro representações na América Latina, seguirá acompanhando esta discussão, tentando levar o valor dela para Alemanha.