Racismo Climático sob perspectiva: O papel do G20, do local ao global

Xerem em Duque de Caxias alagada pelas fortes chuvas

O conceito de racismo climático tem ganhado destaque nas discussões sobre o impacto das mudanças climáticas, do nível local ao global. O racismo climático refere-se à forma como populações historicamente marginalizadas, como comunidades negras, indígenas e periféricas, são desproporcionalmente afetadas por problemas ambientais. Diante de um cenário histórico de privação de políticas públicas direcionadas a essas populações, a crise climática exacerba os desafios cotidianamente vivenciados por essas comunidades.

Atualmente, abordar os efeitos das mudanças climáticas é um exercício para tirar da abstração os problemas vivenciados pela maior parte do Brasil em seus territórios. Quando abordamos tais impactos desproporcionais, estamos falando dos deslizamentos de terra que ano após ano assolam a região serrana do Rio de Janeiro; ou das mesmas chuvas torrenciais, que a cada verão se intensificam, e deixam as periferias e favelas inundadas por dias. Além disso, quando quebram-se novos recordes de temperatura mais alta do ano, sendo os mais afetados aqueles que não dispõem de ambientes frescos ou água potável. 

Quando falamos dos efeitos da crise climática, não nos referimos apenas à falta de políticas públicas e da negligência estatal - estamos falando de pessoas. Elas têm cor, raça e gênero. Como aponta a Associação Iyaleta, a maior parte das pessoas afetadas pelos impactos da crise climática são negras (pretos e pardos), e vivem em territórios periféricos. 

periferia brasileira coberta de água

O racismo climático mostra que a probabilidade de intercorrências climáticas está diretamente ligada ao caráter racial da pessoa ou da construção do território. Isso não quer dizer que apenas populações  negras sofrem com danos climáticos, mas demonstra que devido às construções sociais, políticas e econômicas do Brasil, a maior parte de residências em territórios suscetíveis aos danos climáticos são ocupadas por pessoas negras. 

Em entrevista, Maria Clara Salvador, pesquisadora do Instituto 215 e co-fundadora da Coalizão O Clima é de Mudança comenta que "Os desastres climáticos criam um  ciclo de empobrecimento da população, porque após um destrate a população perde seus bens materiais, pessoais e documentações, contribuindo com a vulnerabilidade social e desigualdade, provocado por vezes por um processo histórico de racismo."
 

Coalizão O Clima é de Mudança na COP27


A política deve ser chão de interseccionalidades. Abordar o racismo climático, para além da questão ambiental, indica incluir questões sociais, políticas e econômicas no debate. Por isso, no ano que o Brasil preside interinamente o G20, grupo das 20 maiores economias do mundo, a sociedade civil tem impulsionado que o racismo climático seja parte das discussões. 

 

A participação social e o espaço das periferias: Amplificando vozes locais no debate global

O Grupo dos 20 (G20), criado em 1999 para coordenar a economia global, inicialmente reunia ministros das finanças e presidentes de bancos centrais das principais economias. Com a crise financeira de 2008, o G20 expandiu sua agenda para incluir outros temas, como saúde, justiça social e mudanças climáticas. Desde então, o grupo que originalmente se voltava exclusivo para governos, tem sido cada vez mais pressionado por ativistas e ONGs para incluir a participação da sociedade civil em suas discussões. 
 

Durante a presidência interina do G20 pelo Brasil, os treze grupos de engajamento, que representam setores distintos da sociedade, se organizaram para trazer as perspectivas de suas áreas para as negociações políticas do G20, em consonância com as prioridades elencadas pelo governo federal - o combate à fome, à pobreza e à desigualdade, o desenvolvimento sustentável, e a reforma da governança global. 

Com o objetivo de alcançar uma maior participação da sociedade civil, o governo brasileiro criou o G20 Social, que terá debates transversais aos treze grupos de engajamento, e com as iniciativas da Trilha de Sherpas e da Trilha de Finanças do G20. Em entrevista, Maria Ribeiro, integrante do programa Jovens Negociadores pelo Clima e do Comitê Rio G20, expõe a importância da iniciativa brasileira "[...] para quem vem da periferia, cavar oportunidades faz parte do nosso dia a dia, e quando oportunidades como essa surgem, nós as agarramos sem medo. Ocupar espaços e colocar nossos rostos nesses locais de debate e tomada de decisão é uma forma de mostrar ao mundo nossa capacidade e nosso desejo de mudar as coisas, de transformar nossa realidade e a de nossos semelhantes."

Na expectativa de impulsionar mudanças e levar a voz do nível local ao nível global, grupos de engajamento como o T20, grupo dos Think Tanks, e o C20, grupo da Sociedade Civil, tiveram processos de participação organizados desde o início do ano, e trataram de diversos temas em suas respectivas agendas, como reforma do multilateralismo, transformação digital inclusiva e questões climáticas - sendo o último o tema com o maior número de pessoas engajadas em ambos grupos. No T20, a participação cívica se deu a partir da escrita de Policy Briefs com recomendações políticas que, ao final do processo, comporiam o communiqué do grupo. Já o processo do  C20 contou com reuniões ao longo do primeiro semestre com o objetivo de, em um esforço conjunto, chegar às recomendações políticas que comporiam o policy pack do grupo, que, em ambos casos, tiveram seus insumos direcionados às trilhas Financeira e de Sherpas no final do primeiro semestre de 2024. 

Na minha experiência de acompanhamento de ambos esforços, foi interessante ver a construção desses espaços com vistas ao esforço coletivo de fazer com que o G20 no Brasil seguisse o lema do governo brasileiro no que tange a participação social, mesmo se tratando de um fórum com um histórico de negociações a portas fechadas.
Em negociações multilaterais, alcançar consenso é, por natureza, um processo político difícil. No G20 sob a presidência interina do Brasil, a sociedade civil tem se empenhado em incluir explicitamente o combate ao racismo climático nos documentos destinados aos líderes políticos. No entanto, esse esforço provavelmente precisará continuar nos próximos anos. Uma das principais dificuldades para essa inclusão é a falta de popularização do termo na sociedade e no campo político. Um exemplo disso são os ataques em massa direcionados à Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, após a mesma ter utilizado o termo "racismo ambiental" em uma postagem no início de 2024, evidenciando como a inserção de terminologias como essa no cenário político ainda enfrenta resistência. Até agora, as questões raciais no G20 têm sido tratadas de forma interseccional com outras pautas, e embora haja a vontade política brasileira de figurar questões raciais na pauta do G20, os termos "racismo ambiental" ou "racismo climático" ainda não aparecem explicitamente nos documentos.
 

Mulher negra carregando sacolas coberta pela água

Os ganhos políticos do processo do G20 durante esse ano, ao meu ver, vão além das menções que veremos ao final do ano na Cúpula do G20, prevista para novembro. A mobilização crescente e contínua da sociedade civil na inserção do racismo ambiental e climático enquanto pauta prioritária no debate ambiental é, sem dúvidas, imprescindível para alcançar a justiça climática; e apesar dos desafios mencionados, é um esforço que deve ser mantido até que as políticas de enfrentamento ao racismo climático sejam formuladas e implementadas. No entanto, o que temos até agora já é um ganho de capital político, mobilização cívica e engajamento social, do local ao global, que nos remonta ao que a cultura democrática pode (e deve) ser. É imprescindível que possamos usar nossas diversas vozes para ecoar as demandas territoriais, seja sobre a fome e a pobreza, ou sobre o os impactos do racismo climático - mais ainda, é imprescindível que possamos fazer as conexões necessárias entre essa mesma fome, a pobreza e o racismo climático, em um país em que a população negra figura entre a mais atingida entre os cidadãos que sofrem com a insegurança alimentar, ao mesmo tempo em que comunidades são deslocadas de seus territórios para dar espaço às monoculturas de soja. 

Temas locais com conexões globais

Nos esforços de inserção de pautas para serem entregues aos negociadores políticos, a sociedade civil tem sido constantemente lembrada da necessidade de abordar temas locais com as devidas conexões ao nível global, visto que o G20 demanda a convergência de temas entre os países que compõem o fórum. Se por um lado essa demanda dificulta a inserção de como o impacto do racismo climático afeta o cotidiano das periferias brasileiras, por outro lado, aproxima o diálogo entre o local e o global. Nesse movimento, tanto a terminologia muda – e passamos a abordar o tema usando jargões climáticos, como a adaptação de áreas vulneráveis, mitigação de riscos climáticos, construção de cidades resilientes, e os debates acerca de perdas e danos – quanto o exercício toma uma roupagem internacionalista, abordando os impactos do racismo climático não só nas periferias brasileiras, mas nas periferias globais. Essa seria, inclusive, uma janela de oportunidade para a ampliação do diálogo Sul-Sul na ação climática, como comenta Marcele Oliveira, diretora executiva do PerifaLab "esse é um momento que a sociedade civil consegue ampliar o entendimento sobre o racismo climático e os impactos no cotidiano, e escalar esses espaços de diálogo para um outro nível de formulação política, em nível nacional e global, e aliando esses debates às necessidades de financiamento climático e da cooperação Sul-Sul" 

Meninos brasileiros na beira da ponte com rio alto


O engajamento crescente da sociedade civil demonstra que é possível construir pontes entre as realidades locais e as decisões globais. No entanto, para que essas conexões possam dar luz a políticas climáticas representativas, é imprescindível que as narrativas locais sejam reconhecidas e valorizadas em sua complexidade, trazendo à tona as interseções entre temas sociais, políticos e climáticos. A expectativa não é que o G20 resolva os problemas socioambientais do Brasil nem do mundo; mas, sim, que o momentum criado possa ser utilizado para futuras pontes entre a cidadania e a política pública, entre o G20 e a COP30, e entre o cenário local e o global.