CrowdStrike e Microsoft: o que podemos aprender sobre o que ninguém está disposto a questionar?

Problemas de conexão no aeroporto

Na madrugada do dia 19 de julho de 2024 uma imensa falha de TI causou danos e estragos globais, com reflexos que vão perdurar meses, consistindo, segundo alguns especialistas, na maior interrupção cibernética da história[1]. As interrupções tecnológicas impactaram diversos países, resultando no cancelamento de mais de 3.300 voos, a paralisação de operações bancárias e empresariais, a suspensão temporária de serviços em escolas e governos, e a instabilidade em setores críticos como saúde e emergência.

Essa massiva falha tecnológica teve origem na CrowdStrike, empresa dos Estados Unidos que fornece serviços de segurança cibernética. Sediada em Austin, Texas, a CrowdStrike é amplamente utilizada pela indústria global de tecnologia, empregando 8.500 pessoas e servindo 24.000 clientes[2], incluindo a Microsoft, que utiliza seu programa Falcon para detectar, gerenciar, rastrear, proteger e bloquear a execução de malwares e ataques cibernéticos em sistemas e softwares.

Segundo notas da CrowdStrike e da Microsoft[3], a causa do caos cibernético ou do apagão digital ocorreu em função de uma atualização no programa Falcon que gerou a famosa “tela azul da morte” nos sistemas operacionais da Microsoft, que incluem a infraestrutura de computação em nuvem, como servidores e outros, e nos PCs que utilizam Windows, mantendo-os inutilizáveis e presos a um loop de inicialização de recuperação de sistema. De acordo com a Microsoft, a falha afetou “8,5 milhões de dispositivos Windows, ou menos de um por cento de todas as máquinas Windows” [4]. Ainda em nota, a Microsoft reforça que “embora a porcentagem seja pequena, os amplos impactos econômicos e sociais refletem o uso da CrowdStrike por empresas que operam muitos serviços críticos”. 

Compreender esses impactos se torna fundamental em mundo cada vez mais digitalizado. Nesse sentido, os fatos decorrentes do recente caos digital podem servir como ponto de inflexão no debate, nos obrigando a debruçarmo-nos sobre a cadeia que detém e controla o mundo digital para, a partir daí, repensá-lo, redesenhá-lo. 

Analisando este contexto, nota-se que a ideologia do Vale do Silício, que postula que tecnologias baseadas em dados resolverão problemas até então não solucionados pelas sociedades, permeia reportagens, análises e opiniões, colocando problema e solução no mesmo objeto, ou seja, na tecnologia, transformando-a quase em um sujeito da história. Essa abordagem elimina questões centrais e fundamentais para à compreensão das raízes que constroem, dominam e controlam o mundo hiper digitalizado e concentra-se em temas, não menos importantes, como segurança da informação, ataques cibernéticos, privacidade e controle, mas que estão longe de refletirem a raiz do que se apresenta. 

Esta interrupção global não é apenas um exemplo de falha técnica, mas explicita o domínio desmedido de algumas poucas empresas sobre a infraestrutura tecnológica crítica mundial, que perpassa também pelo controle dos dados globais. 

 

“E o que essa interrupção nos revela?” 

 

“O que essa interrupção revela é a enorme dominância tanto da Microsoft quanto da CrowdStrike no software de computador e na segurança cibernética”, afirma o economista britânico, Michael Roberts, com dados que demonstram que a Microsoft Windows detém cerca de 72% da participação do mercado global de sistemas operacionais, ao passo que a CrowdStrike detém 24% da participação no ramo da segurança, "proteção de endpoint".

Quando analisamos dados referentes à infraestrutura digital, o cenário não é diferente; compõem-se novos arranjos e parcerias, mas a dominância se mantém sempre concentrada em poucas corporações de tecnologia. Um exemplo deste cenário, são as camadas responsáveis por prover conexão e acesso à internet. Conforme demonstra Rodolfo Avelino (2023), professor e especialista em cybersegurança, esse cenário, que antes era provido e gerenciado por empresas de telecomunicações privadas e estatais, tem sido dominado na última década por corporações da GAFAM – acrônimo para as gigantes da web Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. 

Por exemplo, no Brasil, a Google e a Meta já instalaram seus cabos óticos na faixa litorânea dos estados mais estratégicos de pontos de tráfego de dados do país. A Meta tem infraestrutura de dados no Rio de Janeiro e Praia Grande/SP, enquanto a Google em Fortaleza, Santos e Rio de Janeiro. Outra camada de conexão que tem sido apropriada por essas empresas é a camada responsável por prover acesso à Internet para usuários. A Alphabet Inc., por meio do programa Google Fiber, ainda limitado ao território norte-americano, e a Amazon, por meio do Projeto Kuiper, oferecem internet a usuários residenciais. Já a Starlink, tem dominado desde 2022 os provedores de banda larga fixa por satélite na Amazônia, com antenas instaladas em mais de 90% dos municípios da região. 

Esses dados ilustram como o mundo digital está cada vez mais monopolizado não apenas no âmbito dos sistemas operacionais e segurança digital, mas também de toda a infraestrutura de tecnologias digitais e seus componentes. 

Esse processo de monopolização vem sendo reforçado há décadas por meio de uma combinação de estratégias que incluem bloqueios de conhecimento, registros de patentes, segredos industriais e assentos indiretos em organizações que tomam decisões sobre a governança da internet, entre outras. Essas práticas criam barreiras significativas à entrada de novos concorrentes e solidificam o controle dessas grandes corporações sobre o setor.

No que diz respeito à influência dessas grandes corporações na governança da internet, Rodolfo Avelino (2023) cita o caso da World Wide Web Consortium (W3C) que, em 2017, adotou o Controle de Direitos Digitais (DRM) como um padrão para a quinta versão da linguagem de marcação (HTML5). O DRM é uma tecnologia usada para restringir o livre acesso a conteúdo como filmes, músicas e livros digitais adquiridos online. Essa decisão surgiu a partir de uma proposta feita pelo W3C em 2012 para criar uma tecnologia chamada Extensões de Mídia Criptografada (EME). Apesar da oposição de grupos de software livre e de organizações do setor que lutam pelo livre compartilhamento de conhecimento na web, a proposta foi aprovada pela maioria dos membros do W3C, que atuam direta ou indiretamente com empresas que têm interesses diretos em serviços de streaming e mídia digital pagos, como Netflix, Microsoft, Google e Apple.

O fato é que, como aponta Theotônio dos Santos no livro Revolução Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo (1983), as empresas monopolistas compreenderam que, para controlar diretamente a produção – no caso aqui analisado, o mercado digital como um todo – é necessário controlar o conhecimento. Esse controle se tornou essencial para encurtar o tempo entre a descoberta de princípios ou leis científicas e sua aplicação prática, que se consolida em novos produtos ou processos. Dessa forma, o conhecimento se transforma em um instrumento fundamental no processo de acumulação capitalista, permitindo que essas empresas mantenham ou ampliem suas vantagens monopolísticas. 

Por esta razão, as grandes companhias se veem obrigadas a encontrar uma fórmula para dominar o processo do conhecimento no seu conjunto. Uma das soluções possíveis consiste na conversão de uma parte crescente do seu capital em Pesquisa e Desenvolvimento; uma outra, consiste em obter financiamento estatal para a realização do conjunto do processo no interior da própria empresa[5]; a terceira possibilidade é a de utilizar as isenções fiscais para o financiamento de fundações, atividades universitárias, e garantir que os resultados científicos ou tecnológicos alcançados se convertam em sua propriedade. De fato, todas estas fórmulas são complementares e supõem, no seu conjunto, um papel crescente dos investimentos estatais e empresariais no desenvolvimento da pesquisa científica. (SANTOS, 1983, p. 73).

Nesse sentido, o cenário atual condensa um processo histórico que tem transformado o papel do Estado, que passou a atuar como “um capitalista global. Isto é, age como síntese de interesses capitalistas nacionais e internacionais” (SANTOS, 1983, p. 144).

No Brasil, esse fenômeno vai de encontro e ganha guarida em um capitalismo de tipo dependente com a proteção de um Estado neoliberal, cuja característica, entre outras coisas, consiste exatamente na redução expressiva ou mesmo eliminação completa no investimento em áreas cruciais para o domínio dos processos de invenção, inovação e desenvolvimento tecnológico. Isso é evidente ao analisarmos dois aspectos que caminham concomitantemente: o baixo investimento em ciência e tecnologia – em média apenas 1% do PIB – e a crescente privatização e contratação de infraestruturas, produtos e serviços oferecidos pelas grandes corporações de tecnologia.

Assim, a ausência de avanços significativos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) não compromete apenas o crescimento econômico do país, mas também aprofunda sua dependência tecnológica. Tal dependência se expressa, por exemplo, na ausência de soberania em infraestruturas tecnológicas, na coleta, armazenamento e processamento de dados, que passam a ser transferidos a essas corporações, com sedes predominantemente nos Estados Unidos. Um exemplo desse último aspecto é o Serpro, empresa estatal que, ao invés de investir no desenvolvimento de servidores próprios, tem optado pelos serviços de nuvem das maiores empresas de tecnologia do mundo, como a Microsoft.

De maneira, será que o mero fato de estabelecer novas regulamentações ou endurecer as já existentes resolveria o problema do monopólio da tecnologia? Ora, como bem observa Michael Roberts: 

a regulação de empresas capitalistas ‘com fins lucrativos’ por agências reguladoras governamentais tem sido um fracasso comprovado em praticamente todos os setores: finanças, serviços públicos, transporte, comunicações etc. Essas empresas simplesmente ignoram as regulamentações, pagam suas multas se forem descobertas, mas continuam os ‘negócios como sempre’. (2024, s/p).

A questão realmente passa por compreendermos que o investimento em ciência e tecnologia e, portanto, em Pesquisa e Desenvolvimento, consiste em um componente central de acumulação de capital, sobretudo para os capitais nos setores das tecnologias digitais. Com efeito, o processo de monopolização desse setor encontra no Estado um ente fundamental para garantir a continuidade e ampliação desse processo. Sendo isso verdade, podemos e devemos convocá-lo a assumir a tarefa de transformar tal realidade, trazendo para a propriedade pública o mundo digital, mantendo a sua soberania sobre as infraestruturas digitais, diminuindo até eliminar a nossa dependência tecnológica e criando possibilidades ativas e de controle frente a futuros novos erros e apagões. Desconfiamos que para isso seja necessário um outro projeto de sociedade, onde os interesses das Big Techs seriam substituídos pelos interesses das amplas camadas da sociedade.

Referências

AVELINO, Rodolfo da Silva. Colonialismo Digital: Tecnologias de Rastreamento Online e a Economia Informacional. São Paulo: Editora Alameda, 2023.

MICROSOFT. Helping our customers through the CrowdStrike outage. Disponível em: https://blogs.microsoft.com/blog/2024/07/20/helping-our-customers-through-the-crowdstrike-outage/. Acesso em: 21 de julho de 2024.

REGAN, Helen et al. Today's cyber outage could be "largest in history," cybersecurity expert says. CNN. Disponível em: https://edition.cnn.com/business/live-news/global-outage-intl-hnk#h_c3622dc75519703ce2734d31a98f6a5e. Acesso em: 22 de julho de 2024.

ROBERTS, Michael. Crowd Strikes Out. 2022. Disponível em: https://thenextrecession.wordpress.com/2024/07/21/crowd-strikes-out/. Acesso em: 22 de julho de 2024.

SANTOS, Theotônio dos. Revolução Científico-Técnica e Capitalismo Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes Ltda, 1983. Rua Frei Luís, 100, 25600 Petrópolis, RJ, Brasil.

[1] Ver: REGAN, Helen et. al. Today's cyber outage could be "largest in history," cybersecurity expert says. CNN. Disponível em: https://edition.cnn.com/business/live-news/global-outage-intl-hnk#h_c3622dc75519703ce2734d31a98f6a5e 

[2] ROBERTS, Micheal. Crowd strikes out. Disponível em: https://thenextrecession.wordpress.com/2024/07/21/crowd-strikes-out/

[3] Ver: https://www.crowdstrike.com/falcon-content-update-remediation-and-guidance-hub/https://blogs.microsoft.com/blog/2024/07/20/helping-our-customers-through-the-crowdstrike-outage/

[4] MICROSOFT. Helping our customers through the CrowdStrike outage. Disponível em: https://blogs.microsoft.com/blog/2024/07/20/helping-our-customers-through-the-crowdstrike-outage/ 

[5] Theotônio dos Santos se refere aqui a internalização do processo de Pesquisa e Desenvolvimento nessas grandes corporações, processo que passa pela atividade da pesquisa científica, que engloba pela invenção ou inovação, até a implementação do produto.