Poder religioso e múltiplas mediações comunicacionais

Microfone Condensador

Nas eleições de 2022, Nikolas Ferreira, de 26 anos, foi o deputado federal mais votado do país, somando quase 1,5 milhão de votos. Antes foi vereador de Belo Horizonte pelo Partido Liberal (PL) e se define como um jovem cristão e conservador. Ferreira ganhou projeção nas redes sociais aproveitando-se de polêmicas, discursos de ódio, transfobia e disseminação de pânicos morais[1], assim como a existência de uma “ideologia de gênero” a ameaçar a “família tradicional”[2]. Outro apoiador de Bolsonaro, o pastor e cantor evangélico André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, também se destacou nas redes sociais nas eleições, incluindo a disseminação da informação falsa de que o Tribunal Superior Eleitoral o havia intimado a se retratar sobre falas contra Lula e o Partido dos Trabalhadores (PT)[3].

O leigo e o pastor fazem parte de um grande contingente de lideranças da extrema direita que vêm se projetando nas redes sociais nos últimos anos, aproveitando-se do modo de funcionamento e dos modelos de negócios das grandes plataformas digitais, cujos algoritmos valorizam conteúdos extremistas, sensacionalistas e informações falsas que geram mais cliques e, portanto, mais lucros para essas empresas.

A influência das “notícias falsas”[4] nas eleições, em especial desde 2018, têm canalizado esforços de políticos, acadêmicos e da sociedade civil para ações de regulação dos procedimentos das grandes plataformas digitais que interferem nos conteúdos que circulam em suas redes. O debate em torno do PL 2630, conhecido como PL das Fake News, mas que tem o objetivo mais amplo de instituir a Lei Brasileira da Liberdade, Responsabilidade e Transparência da Internet[5] é um debate, extremamente relevante. No entanto, têm deixado de lado, no entanto, análises sobre o sistema de mídia de forma mais ampla e sobre as múltiplas mediações comunicacionais que estruturam o debate público e a influência religiosa em um país de dimensões continentais como o Brasil.

Concentração da mídia e poder religioso

Em uma perspectiva comparada, o Brasil, diferente de outros países da América Latina, possui uma mídia religiosa - católica e evangélica – consolidada há muitos anos e com grande poder político e econômico. O Monitoramento da Propriedade da Mídia (MOM-Brasil)[6] mostra que nove dos 50 veículos de maior audiência no país (considerando TV, rádio, mídia impressa e mídia digital) estão nas mãos de igrejas e lideranças religiosas. Entre elas, o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, é dono do Grupo Record, e os apóstolos Estevam e Sônia Hernandes, da Igreja Renascer em Cristo, são donos da Rede Gospel de TV. Entre as mídias católicas, aparecem a Rede Vida de TV, do Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã, e a Rede Católica de Rádio, uma associação de sete redes de rádio, entre elas a Rede Aparecida e a Canção Nova.

Igrejas e líderes religiosos também ocupam espaço na programação de emissoras de TV comerciais, entre eles televangelistas em atuação no país há muitas décadas, como o pastor Silas Malafaia, líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e o missionário R. R. Soares, líder da Igreja Internacional da Graça de Deus.

Para além da mídia de maior alcance nacional, no entanto, existem milhares de estações de rádio e de TV, veículos impressos e sites de internet que são de propriedade ou dirigidos por lideranças religiosas e que possuem enorme importância no acesso à informação nas diferentes regiões do país. A presença religiosa cresce também entre as estações de rádio comunitárias, por força de alguns fatores. Destaco três deles: a ação de parlamentares religiosos, que se intensificou nos últimos anos nessa direção; a falta de fundos públicos paras as rádios, o que tem gerado dificuldades econômicas, abrindo caminho para o controle de quem tem mais recursos; e o julgamento do Supremo Tribunal Federal, de 2018, que considerou inconstitucional trecho da lei 9.612/1998 que vetava o proselitismo.

É preciso um estudo mais aprofundado para o mapeamento do controle societário e do alcance desses veículos, além da análise do tipo de conteúdo que está sendo produzido, que pode variar enormemente tanto em relação a doutrinas e concepções teológicas quanto em relação aos discursos políticos disseminados.

Moralidades de fundo religioso associadas à extrema direita também podem ser encontradas em outro tipo de programa muito comum nas redes de TV e rádio abertas no Brasil: os policialescos. Pesquisa realizada pelo Intervozes desde 2014 mostra um crescimento de candidaturas de deputados estaduais, federais e senadores que são apresentadores de programas policialescos, e muitos são de partidos cristãos. No dia a dia dos seus programas, fazem um discurso em “defesa do consumidor”, denunciando o que seria a negligência do Estado em temas que vão do buraco na calçada às filas no sistema de saúde. Em paralelo, esses programas desenvolvem um discurso punitivista sobre segurança pública, defendendo a redução da maioridade penal, a ideia de que “bandido bom é bandido morto” e violando uma série de direitos, como a presunção de inocência e a proteção da imagem de crianças e adolescentes. Junto a isso, promovem uma defesa da “família tradicional”[7]. Também são registrados casos de intolerância religiosa[8].

O conjunto dessas mídias que se apresentam com um espécie de “selo de garantia” religioso e moral, num cenário de grande polarização ideológica e de desconfiança em relação aos veículos de mídia comerciais tradicionais, fornecem conteúdos que vão circular nas redes sociais e nos canais de mensageria como WhatsApp ou Telegram.

Múltiplas mediações e desafios às institucionalidades e moralidades dominantes

As múltiplas mediações comunicacionais desafiam as pesquisadoras e os pesquisadores no entendimento das multiplicidades de agentes e de redes que fornecem espaços e repertórios para as vivências religiosas, as moralidades, o pensamento e a ação político-religiosos. Nesse sentido, não basta olhar para as lideranças religiosas e suas igrejas, o Vaticano, as frentes parlamentares religiosas no Congresso Nacional ou para aqueles religiosos que assumem cargos no Executivo. As pessoas acionam uma variedade de inspirações e influências em sua vivência social e em seu pensamento político a partir da religiosidade que não se resume ao padre, ao pastor, mas inclui influenciadores digitais, organizações da sociedade civil, cantoras e cantores, escritores, artistas.

Mesmo a Igreja Católica, que é muito mais hierarquizada e centralizada do que o conjunto de denominações evangélicas, têm sua institucionalidade desafiada diante da ação de lideranças leigas, políticas ou midiáticas que muitas vezes possuem um posicionamento independente, por exemplo, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, como no caso em que a organização Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, que tem entre seus apoiadores o padre midiático e bolsonarista Paulo Ricardo, entrou com uma ação na justiça solicitando que a organização Católicas pelo Direito de Decidir fosse obrigada a retirar o termo “católicas” de seu nome e documentos[9].

No entanto, essa multiplicidade de referências religiosas num cenário de midiatização da sociedade não engloba apenas o espectro da extrema direita, mas agentes que podem ser posicionados no espectro das esquerdas, dos progressismos ou de defesa de direitos dos grupos vulnerabilizados. A música gospel brasileira, por exemplo, com sua variedade de subgêneros que possuem suas próprias éticas e estéticas, têm ajudado a disseminar no mundo religioso evangélico questões de raça e classe social que foram historicamente silenciadas nesse meio. Vertentes da black music gospel, do rap gospel trazem as questões raciais e de território como centrais. Assim, ouvir um rap gospel não é apenas uma questão de ser evangelizado ou ter uma vivência com Deus a partir de uma preferência estética, mas é também uma vivência política[10].

Artistas do gospel também se envolvem em debates sobre questões de gênero, como quando a cantora Priscilla Alcântara, que criticou em seu Twitter as atitudes “fundamentalistas” de cristãos contra o aborto legal de uma criança estuprada, foi acusada pelo pastor Silas Malafaia de “péssima influência no mundo evangélico”[11]. Assim, os debates sobre gênero na sociedade e no mundo religioso geram reações de lideranças hegemônicas, na tentativa de controlarem o discurso e as práticas relativas ao gênero e aos papéis de homens e mulheres na sociedade e na igreja, não só em ataques pessoais como no caso de Priscilla, mas em campanhas públicas como aquelas contra “ideologia de gênero”. Mesmo o feminismo passa a ser disputado. Em uma conferência no Dia Internacional da Mulher de 2021, realizada pelo ministério de Elizeth Malafaia, esposa de Silas, as conferencistas presentes disseram que não exatamente negavam algumas bandeiras do feminismo, mas tentavam delimitar que fases e pautas dos feminismos seriam aceitas e quais não o seriam. Em sua concepção de cristianismo, não aceitam o feminismo enquanto movimento, nem pautas como o aborto, as teorias de gênero e o transfeminismo, mas aceitam bandeiras que servem para o “empoderamento” das mulheres, para que trabalhem foram, desenvolvam a sexualidade com prazer dento do casamento, etc.

Comunicação como direito que permite acesso a outros direitos

Gostaria de finalizar este texto retomando o conceito de direito à comunicação, mais amplo que o conceito de liberdade de expressão por considerar os impactos da concentração dos meios no exercício da cidadania e dos direitos individuais e coletivos dos diversos grupos que compõem a sociedade, em especial os grupos vulnerabilizados. A concentração exclui, por exemplo, as vozes das religiões de matriz africana, e a ausência de regulamentação e fiscalização no setor viola ainda seus direitos por meio de episódios de intolerância religiosa que são proibidos por lei e, no entanto, seguem acontecendo.

Mesmo os governos de esquerda não levaram a sério, pelo menos até agora, a necessidade de regulamentação das legislações já existentes e a construção de novos marcos legais e políticas públicas, que devem ir muito além do PL 2630. São necessárias políticas que enfrentem os monopólios e oligopólios, tanto das mídias tradicionais quanto das plataformas digitais, que façam valer a proibição da existência de políticos detentores de cargos eletivos que sejam donos de mídia, que não tolerem violações de direitos humanos como ocorre em programas policialescos e em cerimônias religiosas televisionadas e que promovam a pluralidade e a diversidade dos meios de comunicação.

Essa é uma agenda relevante a ser aprofundada nos debates acadêmicos sobre religião no Brasil, assim como é necessária a articulação entre academia, movimentos sociais e organizações da sociedade civil para um melhor entendimento dos aspectos legais e do contexto brasileiro no que se refere à articulação de temas como direito à comunicação, liberdade religiosa, combate à intolerância e ao racismo religioso e laicidade do Estado.

 

[1] Uso pânico moral como uma forma de discurso que apresenta um caráter performativo e que utiliza largamente das mídias. Ver: Machado, Carla. “Pânico moral: para uma revisão do conceito”. Interacções, número 7, pp. 60-80.

[2] Braun, Julia. “Religião e humor: a estratégia de redes sociais que alavancou Nikolas Ferreira, deputado federal mais votado do país. BBC News Brasil,  4/10/2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63136759. Acesso:  16 jun. 2023.

[3] “Post em que o pastor André Valadão mente sobre TSE é marcado como falso no Instagram”. G1, 21/10/2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/eleicoes/noticia/2022/10/21/instagram-andre-valadao-informacao-falsa.ghtml. Acesso: 16 jun. 2023.

[4] Para um análise crítica do concerto de “fake news” ver: Intervozes. Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news. São Paulo: Veneta, 2020.

[5] Sobre regulação de plataformas ver: Gomes, Sheley; Vieira, Ramênia; Tavares, Viviane. “Plataformas digitais no centro das atenção: regular para avançar”. Le Monde Diplomatique Brasil, 04/05/2023. Disponível em: https://diplomatique.org.br/plataformas-digitais-no-centro-das-atencoes-regular-para-avancar/. Acesso: 16 jun. 2023.

[6] Intervozes. Monitoramento da Propriedade da Mídia. Disponível em: https://brazil.mom-gmr.org/br/. Acesso: 16 jun. 2023.

[7] Bandeira, Olívia. “A violação de direitos humanos em nome de Deus e da família”. Carta Capital, 02/10/2018. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/a-violacao-de-direitos-humanos-em-nome-de-deus-e-da-familia/. Acesso: 16 jun. 2023.

[8] Dias, Mabel. “Policialescos são campeões em desinformação e violação de direitos”. Carta Capital, 16/06/2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/policialescos-sao-campeoes-em-desinformacao-e-violacao-de-direitos/. Acesso: 16 jun. 2023.

[9] Ver: Rosado Nunes, Maria. José; Bandeira, Olívia.; Pereira, Gisele. 2021.  "A quem pertence o termo 'católicas'? Direito e mídia como arenas e estratégias do neoconservadorismo". Plural, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.28.1, jan./jun., p.17-49. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2021.185324

[10] Ver: Bandeira, Olívia. Música gospel: disputas e negociações em torno da identidade evangélica no Brasil. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2023. (no prelo)

[11] Ver: https://twitter.com/PastorMalafaia/status/1295494351959793667. Acesso: 16 jun 2023.

 

Este artigo faz parte do Webdossiê Religião, democracia e extrema direita. Acesse aqui o Webdossiê.