Ao realizar uma pesquisa rápida na internet sobre reconhecimento facial, é possível encontrar diversos resultados destacando os benefícios dessa tecnologia para validação de identidade em aeroportos, hotéis, condomínios e outros locais. Há também um número cada vez maior de notícias destacando o uso do reconhecimento facial na segurança pública a fim de identificar pessoas foragidas ou procuradas pela polícia. A Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), um dos primeiros estados brasileiros a implementar o uso de Tecnologias de Reconhecimento Facial (TRFs), é um exemplo citado com frequência, uma vez que anuncia constantemente a captura de foragidos graças às câmeras espalhadas em espaços públicos. No entanto, também é possível encontrar notícias sobre debates legislativos a respeito do banimento ou da restrição do uso do reconhecimento facial em diversas partes do Brasil e do mundo. Isso nos leva a questionar: por que discutir o banimento de uma tecnologia que aparenta ser bem-sucedida?
Como funciona o reconhecimento facial na segurança pública?
Os sistemas de reconhecimento facial utilizam algoritmos de processamento para identificar pessoas e verificar suas identidades com base nas características do rosto. A captura da imagem é feita por meio de uma foto ou um vídeo, e características únicas, como formato do rosto, distância entre os olhos e largura do nariz são processadas para criar a identificação biométrica facial. Essas características são então comparadas com outras imagens armazenadas em um banco de dados, a fim de encontrar correspondências. Na segurança pública, o banco de imagens utilizado é o de suspeitos e pessoas foragidas.
Por que banir?
Nós sabemos que falar em banimento de uma tecnologia nova pode assustar algumas pessoas. Afinal, defender o banimento não seria uma posição retrógrada para lidar com uma inovação, impedindo o progresso tecnológico de prosperar? A equação não é tão simples assim: os sérios riscos que a utilização da tecnologia na segurança pública tem apresentado justificam nosso posicionamento.
Um argumento frequente na utilização do reconhecimento facial é a facilidade e precisão na localização de indivíduos procurados pela polícia. Valendo-se da tecnologia, câmeras espalhadas pela cidade ampliam as chances de encontrar foragidos e suspeitos de cometer crimes. No entanto, apesar de ser anunciado como o futuro da vigilância e segurança para cidades inteligentes, o emprego do reconhecimento facial na segurança pública desperdiça dinheiro do contribuinte ao adquirir tecnologias caras e ineficazes. Vejamos alguns exemplos.
Ao contrário do que se possa pensar, o reconhecimento facial não é uma solução para o problema de identificação de suspeitos por humanos, pois a máquina erra (e com frequência) e, o erro pode levar ao cerceamento ilegal da liberdade, com uma prisão indevida. No Rio de Janeiro, durante uma operação policial no Estádio do Maracanã em 2019, dos 11 casos de pessoas detidas a partir do uso da tecnologia, sete foram identificados erroneamente pela máquina (63% dos casos). Em 2021, um pedreiro residente no Piauí foi confundido com um fraudador de cartões de crédito do Distrito Federal e sofreu uma abordagem policial truculenta em sua residência, sendo conduzido pela polícia a outro estado sem explicações. O homem ficou preso por três dias até a polícia admitir o erro. Este problema não é exclusivo do Brasil: em Detroit, Estados Unidos, o chefe da polícia local afirmou que o sistema de reconhecimento facial DataWorks Plus, que custou US$ 1 milhão à cidade, tinha uma taxa de erro de cerca de 96%.
Pesquisas têm mostrado que esses sistemas falham mais com mulheres, especialmente mulheres negras. E, por questões técnicas de desenvolvimento, os algoritmos de reconhecimento facial também promovem a exclusão de pessoas transgênero e não-binárias. Além disso, há um padrão comum nos casos de engano ou falha na precisão dos sistemas noticiados no Brasil: a maioria envolve pessoas pretas e pardas. Aliás, mais de 90% das pessoas presas pelo reconhecimento facial são negras.
Os erros sistemáticos na identificação de pessoas estão diretamente relacionados com a falta de diversidade nos bancos de dados utilizados para treinamento dessas tecnologias. No entanto, entendemos que ainda que sua precisão seja incrementada, bani-la é necessário pela rejeição ao vigilantismo constante sobre as vidas em espaços públicos. O emprego dos sistemas de reconhecimento facial exige o monitoramento constante das pessoas que circulam pelas cidades, instalando um estado de vigilância contínua dos cidadãos. Esse monitoramento pode dar ensejo a graves abusos cometidos por estados com vieses autoritários. Na China, por exemplo, manifestantes identificados por câmeras inteligentes e outros recursos vigilantistas têm sido intimidados após protestos com ligações e visitas da polícia. A adoção de sistemas de reconhecimento facial como políticas de segurança pública pode, então, dar margem a graves violações de direitos humanos numa democracia ainda em consolidação como a brasileira. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) é categórica ao colocar que o tratamento de dados para fins de segurança pública deve ser regido por lei específica voltada a este fim. Na ausência de tal norma, há um desamparo legal que torna ainda mais arriscada a implementação de uma tecnologia que apresenta sérios graves riscos a direitos fundamentais.
O cenário brasileiro
O Brasil, assim como outros países na América Latina, tem sido tomado pela rápida disseminação das tecnologias de reconhecimento facial na segurança pública. Bahia, Ceará, Rio de Janeiro e o Distrito Federal são alguns dos locais que já adotaram a tecnologia, seja por vultosos investimentos que chegam à casa dos milhões ou doações de empresas estrangeiras.
Veja aqui algumas das cidades que já utilizam o reconhecimento facial
O estado de São Paulo se prepara para contratar mais de 20 mil novas câmeras que vão integrar o sistema apelidado de Smart Sampa, com o objetivo de aumentar a segurança na cidade, custando 70 milhões de reais por ano. Na primeira versão do edital de licitação do projeto, lançada no fim de 2022, o sistema a ser contratado deveria ser capaz de identificar pessoas suspeitas a partir de características como cor, face, roupas, aspectos físicos, entre outras, como a identificação de vadiagem e permanência num lugar por tempo considerável, por indicar comportamento suspeito. Junto a diversos atores da sociedade civil e poder público, a Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira se mobilizou para deter o avanço do edital. Juntos, conseguimos impugnar a primeira versão do edital do Smart Sampa. Entretanto, o edital será aberto novamente em breve, e a possibilidade de se instalar um forte aparato de vigilância na maior cidade do país é cada vez mais iminente.
Banir é preciso
Fica evidente o potencial lesivo aos direitos humanos por trás da lógica que move a utilização do reconhecimento facial na segurança pública no Brasil. É como adquirir uma arma de alto potencial lesivo sob o pretexto de utilizá-la apenas quando necessário. E nós nos perguntamos: vale o risco?
Outros países do mundo provam como a tecnologia pode ser empregada para perseguir minorias, como no caso do povo Uigur, a etnia muçulmana que é perseguida e detida em campos de concentração na China, ou das mulheres iranianas que se recusam a usar o véu e viram alvo do governo.
Órgãos como a Organização das Nações Unidas e o Conselho Europeu de Proteção de Dados alertam para os perigos e violações aos direitos humanos causados pelo uso de sistemas de reconhecimento facial, ensejando debates a respeito da suspensão da aplicação de tais tecnologias enquanto não há uma regulação específica para tanto.
As pessoas ao redor do mundo têm se organizado para lutar por seus direitos. Ao redor do mundo, campanhas e movimentos como Reclaim Your Face (Europa) e No nos vean la cara (México) têm pressionado autoridades para conter o avanço das TRFs por forças de segurança pública.
Um relatório de inteligência mostrou que sistemas de reconhecimento facial foram utilizados para identificar manifestantes contra o assassinato de George Floyd. Entretanto, após pressão da sociedade, a cidade de Minneapolis baniu o sistema e empresas fornecedoras da tecnologia, como IBM e Microsoft, interromperam a venda desses sistemas para forças policiais.
Na Argentina, a campanha ConMiCaraNo junto aos seus parceiros alcançou uma vitória importante no fim de 2022: a Justiça reconheceu a ilegalidade do sistema de reconhecimento facial empregado para identificar fugitivos, ordenando a destruição dos registros já coletados pela polícia.
No Brasil, existem iniciativas empenhadas na causa de banimento do reconhecimento facial na segurança pública. A mobilização Sai da Minha Cara, por exemplo, incentivou parlamentares a proporem projetos de lei pelo banimento do reconhecimento facial em espaços públicos. Já a Sem Câmera na Minha Cara! tem atuado para impedir a prefeitura do Recife (PE) de espalhar relógios inteligentes com reconhecimento facial pela cidade.
A Campanha Tire Meu Rosto da Sua Mira se posiciona pelo banimento dessa tecnologia lesiva que tem se alastrado com rapidez pelo Brasil. Alcançar o banimento a nível nacional é um desafio do tamanho do nosso país, por isso, acreditamos na colaboração e na capilaridade do debate e iniciativas de banimento em cada região do país. Temos muito trabalho pela frente, mas sabemos que um presente sem reconhecimento facial na segurança pública é possível.
Se você quiser aprender mais sobre o tema, leia nosso miniguia para juristas sobre reconhecimento facial na segurança pública, produzido com apoio da fundação Heinrich Böll Brasil.
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