Quintais agroecológicos: Territórios de autonomia das mulheres e de combate aos agrotóxicos

“Eu quero pedir para que cada uma de vocês bata o pé bem forte no chão e diga seu nome e de onde você vem. Vamos fazer isso para afirmar nossa presença, já que estar neste mundo não é fácil para a maior parte das mulheres”. Foi o que falou Camilla Lima, professora do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE), para um grupo de 30 mulheres da comunidade rural Marrecos, em Lagoa de Itaenga, e de Paulista, região metropolitana de Recife. O encontro realizado em abril foi parte de um projeto da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), em parceria com a Fundação Heinrich Böll, que busca incidir contra o uso de agrotóxicos..

Mulher em quintal agroecológico

Segundo o Atlas dos Agrotóxicos, publicado recentemente na Alemanha pela Fundação Heinrich Böll, o número de pessoas afetadas por envenenamento por pesticidas a cada ano no mundo aumentou para 385 milhões, e o uso dessas substâncias é reconhecido como uma das principais razões para o declínio da fauna e flora. Os agrotóxicos podem ser encontrados em tudo - no mel, nas frutas e legumes, na grama dos jardins e até na urina e no ar. O Mapa da Água, publicado pela Repórter Brasil e Agência Pública, com apoio a Fundação Heinrich Böll, revelou que há presença de agrotóxicos – em níveis acima do que é considerado seguro pelo Ministério da Saúde – na água de diversas cidades do Brasil. Uma pesquisa do IDEC, por sua vez, afirma que há pesticidas em 60% dos alimentos ultraprocessados, como nos pães bisnaguinha.

No Brasil, desde 2020, não há informações sobre a quantidade de resíduos de agrotóxicos nos alimentos vendidos em supermercados e feiras porque o programa de monitoramento público - Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, parou de divulgar os resultados das coletas a partir do início do governo Bolsonaro. Foi também no governo vigente que se iniciou a enxurrada de aprovações de agrotóxicos no País, alcançando uma média anual de aprovação de 500 novos agrotóxicos, segundo um relatório da organização Amigos da Terra, realizado pelos pesquisadores Larissa Mies Bombardi e Audrey Changoe.

Essa situação grave tem impactos perversos em diversos campos: na saúde humana, na diminuição da biodiversidade de diferentes ecossistemas e na contaminação dos solos e das águas, por exemplo. Mas também tem consequências diretas na vida das mulheres e é neste campo que o projeto “Construção de territórios livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia” atua.

Mulheres e agrotóxicos

Primeira formação em PE – Construção de Territórios Livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia promovido pela ABA, em parceria com a Fundação Heinrich Böll
Primeira formação em PE – Construção de Territórios Livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia promovido pela ABA, em parceria com a Fundação Heinrich Böll

Segundo pesquisadores da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), agricultoras que se expõem a pesticidas sem equipamentos de proteção individual (EPIs) podem desenvolver tipos mais agressivos de câncer de mama, que apresentam mais dificuldades para o tratamento. Mesmo as mulheres que não trabalham diretamente na aplicação dos agrotóxicos muitas vezes entram em contato com essas substâncias ao lavar os EPIs de seus companheiros ou por residirem próximo às áreas onde são usados os agrotóxicos – aplicados, às vezes, através de pulverização aérea. São as mulheres também as responsáveis por cuidar daqueles que se intoxicam com os agrotóxicos.

A agricultora, Gêlda Maria Moura, uma das participantes do projeto na Paraíba, trabalhou dos 7 aos 22 anos em lavouras de tomate, pimentão e outros alimentos no município de Boqueirão (PB). Moura lembrou que achava bonita as cores da luz do sol refletida na “chuvinha” que se formava com os agrotóxicos sendo aplicados na lavoura. Diagnosticada com intoxicação recorrente por agrotóxicos, hoje a agricultora luta contra uma enfermidade do sistema nervoso central, uma doença autoimune, além de um câncer. Para Marina Tauil, advogada, Coordenadora do Grupo de Trabalho Mulheres da ABA e uma das Coordenadoras do projeto, os agrotóxicos matam aos poucos as pessoas porque tiram a qualidade de vida em um processo contínuo e sofrido.

Gêlda Maria Moura em um quintal agroecológico
Gêlda Maria Moura em um quintal agroecológico

Apesar da notificação sobre intoxicações por agrotóxicos no Brasil ser compulsória, obrigatória, ao entrar no Sistema de Saúde, os dados oficiais não demonstram o real impacto dessas substâncias na saúde humana. Diferentes fatores desde a automedicação, dificuldade de acesso às unidades de saúde locais, formação dos profissionais de saúde não dirigida a aspectos de toxicologia humana até notificações preenchidas parcialmente ou incorretamente, colocam os números oficiais muito abaixo da realidade. Além disso, os dados oficiais se baseiam em sua imensa maioria, nas intoxicações agudas. Intoxicações crônicas ainda são pouco evidentes, uma vez que há uma série de implicações na consolidação de laudos. Por isso há um destaque dos dados focado na exposição masculina, pois é mais evidente a sua participação na aplicação e manipulação desses produtos. Por outro lado, muitas doenças decorrentes da exposição contínua aos agrotóxicos sem manifestam em mulheres, como tipos de canceres na mama, colo do útero, assim como infertilidades e abortamentos espontâneos, má formação fetal, obesidade, diabetes, explicou Tauil.

Quintais agroecológicos como espaços de liberdade

Rosa Maria Ferreira, moradora da comunidade 15 de novembro, em Paulista (PE), em fala. Dona Rosa fez de um pequeno corredor nos fundos de sua casa um quintal agroecológico cheio de diversidade. Além disso, também vende sabonetes feitos com produtos naturais (foto).
Rosa Maria Ferreira, moradora da comunidade 15 de novembro, em Paulista (PE), em fala. Dona Rosa fez de um pequeno corredor nos fundos de sua casa um quintal agroecológico cheio de diversidade. Além disso, também vende sabonetes feitos com produtos naturais em uma pequena loja dentro de casa.

Historicamente as mulheres são parte da solução e da resistência aos impactos causados pelo uso de agrotóxicos. Segundo Tauil, as mulheres são guardiãs da agrobiodiversidade porque em seus quintais elas trabalham através de técnicas que não reproduzem o modelo convencional, mas perpetuam tradições, costumes e tecnologias sociais passadas de geração em geração. Elas também promovem segurança alimentar e nutricional da família através dos alimentos cultivados e colhidos de suas hortas. Além disso, nos arredores de suas casas, elas criam um espaço de autonomia porque tomam decisões sobre o que será cultivado, o local a ser plantado e o modo de produção a ser implementado.

“O meu quintal tem vários tipos de fruteiras, mas se eu for falar o nome de todas vamos passar a manhã toda aqui. Lá tem manga, cajá, abacate, acerola, tamarindo. Minha mãe sempre fala que o nosso quintal é a nossa fábrica, uma fábrica de alimentos”. A descrição é de Auda Pereira, agricultora e bolsista da ABA. Auda conta que em um levantamento realizado em seu quintal, foram identificadas mais de 30 espécies. Marina explica que um quintal agroecológico é aquele onde as mulheres fazem plantações com uma rica biodiversidade nos arredores da casa – também podem ser considerados cultivos feitos em recipientes, como baldes. Mas eles são mais que isso, representam espaços de liberdade e acolhimento e por isso muitas mulheres afirmaram nas entrevistas do projeto que “meu quintal é tudo”.

Algumas frutas colhidas de um quintal agroecológico
Algumas frutas colhidas de um quintal agroecológico

É importante destacar que os quintais são territórios diversos, inclusive nos seus desenhos produtivos. Cada região do país, cada cultura, comunidade, modo de vida, geram quintais completamente diferentes inclusive entre vizinhas. Os quintais da Paraíba e de Pernambuco, que fizeram parte do projeto, têm suas semelhanças, mas algumas diferenças, como a forma de cria-los e as espécies prioritárias. “Essa diversidade que é a raiz desses sistemas produtivos caracteriza a oposição absoluta aos sistemas hegemônicos preconizados pelo agronegócio que se fundamenta na padronização completa dos sistemas agroalimentares, desde a forma de produzir ao ato de consumir e comer. Portanto, reafirmamos que as mulheres e seus quintais agroecológicos são a manifestação mais radical do enfrentamento e resistência ao agronegócio no campo”, concluiu Tauil.

Uma rede em campo

Primeira formação em PE – Construção de Territórios Livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia promovido pela ABA, em parceria com a Fundação Heinrich Böll
Primeira formação em PE – Construção de Territórios Livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia promovido pela ABA, em parceria com a Fundação Heinrich Böll

O projeto Construção de Territórios livres promoveu formações na Paraíba e Pernambuco com a participação das agricultoras, docentes parceiras no projeto e também com mulheres residentes de uma ocupação urbana. Além disso, um dos grandes resultados do projeto foi a inauguração do Espaço Agroecológico Territórios Livres, no Instituto Federal de Pernambuco - IFPE campus Paulista, no IFPE campus Vitória de Santo Antão (PE) e na Praça da Bandeira, Campina Grande (PB). Como aponta Marina Tauil, “as feiras são oportunidades para a comunidade ter acesso a esses alimentos e para as agricultoras estarem presentes, não só trazendo os seus produtos, mas também os seus conhecimentos”.

Em Pernambuco, as parcerias estabelecidas com o IFPE, a Universidade Federal Rural de Pernambuco e a Marcha Mundial das Mulheres resultaram em ações na Comunidade 15 de novembro, no município de Paulista. As participantes do projeto criaram uma horta comunitária, que atenderá diversas famílias em uma região bastante afetada por insegurança alimentar. A iniciativa fortalece a comunidade e a formação de jovens acadêmicos: “O envolvimento dos jovens com o projeto é intrínseco. Os estudantes do IFPE participam da construção do projeto de extensão e envolvem também os jovens das comunidades onde as atividades são executadas”, explicou a professora Camilla Lima.

Tratar a questão da violência contra a mulher tornou-se parte importante das ações do projeto, no sentido da perspectiva de um lema da agroecologia - “Sem feminismo não há agroecologia”.  Durante as formações muitas participantes narraram casos de violência e houve trocas importantes sobre como se proteger, procurar ajuda e sair do ciclo da violência.

O micro que transforma realidades

 

Mulheres do projeto Territórios Livres reunidas
Primeira formação em PE – Construção de Territórios Livres: mulheres e seus quintais produtivos no combate ao uso de agrotóxicos e referência da Agroecologia promovido pela ABA, em parceria com a Fundação Heinrich Böll

O cenário do uso agrotóxicos no mundo é preocupante e esforços para reduzir o uso e seus efeitos nocivos sobre as pessoas e o meio ambiente precisam de vontade política, mas quase nenhum país do mundo tem uma estratégia ambiciosa de redução. Segundo o Atlas dos Agrotóxicos, a razão é monetária, uma vez que o mercado de agrotóxicos é muito lucrativo. Mas os quintais mostram que há resistência que podem ser fortalecidas e multiplicadas.

Para Marina Tauil, as mulheres agricultoras dos quintais são protagonistas na luta contra agrotóxicos, pois suas práticas refletem isso. “Elas resistem ao modelo convencional, fazem justiça com as próprias mãos indo contra ao modelo que é imposto para agricultores e agricultoras, são agentes de seus direitos”. Por meio de quintais, essas mulheres geram produção e transformam suas propriedades. Para além do já conhecido fato que as mulheres são desproporcionalmente afetadas por injustiças socioambientais – sendo mais impactadas pelas mudanças climáticas e pelos chamados desastres naturais, por exemplo -, o caso dos quintais agroecológicos mostra como sustentabilidade, justiça ambiental e de gênero estão inter-relacionadas e devem ser promovidas juntas, como defende a ex presidente da Fundação Heinrich Böll, Barbara Unmüßig. “Minha expectativa é que mude a realidade daquelas mulheres que têm os quintais porque a gente não precisa de muito. Elas já têm força de vontade. A maioria das mulheres que a gente está acompanhando já tem uma trajetória e precisam de mais conhecimento. Juntar as pessoas dá aquele gás. Aquela alegria. Dizer que a gente não está só”, falou com animação Auda Pereira.

Saiba mais sobre agroecologia e agrotóxicos

Conheça o podcast O veneno mora ao lado, de Giovanna Nader. O projeto é uma parceria de O tempo virou com a Fundação Heinrich Böll Brasil e traz em 6 episódios tudo o que você precisa saber sobre agrotóxicos e alternativas sustentáveis ao uso destes produtos. Confira!