O Metaverso e as metas de Zuckerberg

Espaço de trabalho no Metaverso. Reunião em realidade virtual.

Hoje, mais do que nunca, podemos afirmar que diversas mídias funcionam como extensões do corpo humano. Em sua obra Understanding media: The extensions of man, Marshall McLuhan, teórico da comunicação, já abordava o assunto de forma premonitória: Há mais de 50 anos se estreitavam as relações entre o corpo humano e as tecnologias. McLuhan apontava que algumas mídias tinham potencial de expandir a percepção do usuário a um determinado meio, como no caso da expansão da visão e audição de uma pessoa que assiste um programa de televisão ou a extensão da fala através da distância em uma conversa no telefone[1]. Ao transpor as ideias do estudioso para os dias atuais, o livro continua contemporâneo e algumas dessas conexões têm grande potencial danoso.

Este artigo pretende abordar a trajetória do Facebook desde sua criação até o momento atual, onde a empresa é cercada por escândalos políticos, trazendo a necessidade de rebranding para a Meta.

Big techs e Big brother

Nas últimas décadas, o crescimento exponencial de grandes empresas do ramo tecnológico atingiu um patamar histórico. A Apple é a atual líder das gigantes da tecnologia - as big techs-, atingindo o marco dos US$ 3 trilhões em valor de mercado. A fabricante do iPhone é seguida pela Amazon de Bezos, a Alphabet (que detém o Google), a Microsoft, a Meta de Zukerberg e a Tesla, de Musk[2]. Alguns desses nomes têm virado figurinha repetida nas manchetes dos últimos anos em uma competição acirrada rumo ao espaço, significando uma nova era de passeios e excursões por valores milionários, enquanto a humanidade padece em energias renováveis e os recursos naturais da Terra se tornam cada vez mais escassos.

Em tempo, as Big techs vêm buscando se atualizar cada vez mais para manter sua relevância no mercado global. Das empresas mencionadas, uma vem chamando a atenção nos últimos anos, mas o motivo não as atualizações da plataforma – inclusive criticadas pelos usuários, que têm deixado sua antiga plataforma principal.  A Meta, antiga Facebook Inc., foi criada por Mark Zuckerberg inicialmente apenas como um fórum online onde as aparências de alunos da Harvard University eram avaliadas, mas conforme cresceu, passou a ser um dos maiores centros de vigilância de dados que se tem notícia: Em 2019, 533 milhões números de celular de usuários do Facebook e dados pessoais foram vazados online, indo parar em fóruns de hackers.

O “TheFacebook” utilizava a base de dados da da Harvard University sem autorização para conseguir as fotos e informações dos alunos que tinham a aparência avaliada pelos usuários. A prática fez com que Mark, então apenas um estudante de graduação, fosse obrigado a tirar o site do ar, se desculpar publicamente, além de receber uma advertência[3]. Alguns anos depois, o projeto foi retomado como uma rede social onde os

usuários podiam compartilhar experiências diversas. No início dos anos 2010, o facebook já era a rede social mais popular que se tinha notícia. A partir daí seus reflexos sociais começaram a ser vistos.

Em 2010, os protestos da Primavera Árabe ganharam grande repercussão por sua grande mobilização de jovens no facebook, sendo o primeiro grande chamariz dos efeitos da rede no mundo real; No Brasil em 2013, os protestos contra o aumento de passagens de ônibus tomaram proporções surpreendentes muito devido à mobilização social de diversas camadas sociais novamente no facebook. As manifestações brasileiras, porém, ganharam dimensões que, na época, eram difíceis de prever. Ali nascia uma insatisfação social com os rumos da política, culminando no impeachment da presidente Dilma Rousseff, com certo apoio popular, novamente mobilizado massivamente através de redes sociais, em especial os grupos e páginas de facebook.

O que estes acontecimentos têm em comum? Eles não ganharam toda a sua força no espaço digital por acaso. Com certa exceção dos dois primeiros casos, os mais recentes ocorridos com implicância social que têm ligação direta com as redes sociais são muito afetados pela ascensão de uma extrema direita altamente engajada, a criação de bolhas digitais e, principalmente, a permissividade das redes em relação a certos tipos de conteúdo agressivos e potencialmente danosos. O Facebook tem estado no centro de escândalos sociopolíticos desde as eleições estadunidenses de 2016, que terminaram na vitória de Donald Trump através de propaganda eleitoral difamatória e notícias falsas disseminadas na rede. Uma delas, inclusive, associava a concorrente de Trump, Hillary Clinton, e o partido democrata a uma suposta rede de pedofilia internacional com sede no porão de uma pizzaria comum em Nova York. A história se disseminou através do Facebook, Twitter, 8Chan e 4chan, estes últimos amplamente utilizados pela direita alternativa.

O caso ficou conhecido como Pizzagate e foi um dos pontapés iniciais do fortalecimento de teorias conspiratórias e ideais extremistas na sociedade civil dos EUA, dando origem a uma maior desconfiança no governo e popularizando mais teorias da conspiração como o QAnon e as ideias antivacina. A chegada da internet para o grande público trouxe a suposta promessa de um ambiente totalmente horizontal e democrático, teoria que acabara por cair por terra. Como aponta Schradie (2019), conservadores possuem recursos chaves para a disseminação do seu pensamento no ambiente digital, como: dinheiro, tempo livre, tecnologia, expertise e tradição com a tecnologia[4]. Aliamos a isto a capacidade de camuflagem da extrema direita em espaços digitais: renegados às margens da sociedade em um momento pós-Segunda Guerra Mundial, esta ala desenvolveu códigos próprios onde são capazes de se identificarem entre si sem que outras pessoas, necessariamente, os entendam. Casos como os copos de leite tomados por Bolsonaro em suas lives diárias (no Facebook, onde se concentra a maior parte de seu público), ou o símbolo feito com as mãos por um de seus assessores podem passar batido para a maior parte das pessoas como um simples ok ou apenas uma bebida, e são, na verdade, fatores de autoidentificação com possível fundo eugenista e de celebração ao “poder branco” e homem hétero cisgênero.

O catalisador de todos esses eventos é uma certa “vista grossa” da administração do Facebook. A empresa foi acusada por estudiosos e ex-funcionários[5], que afirmaram que, devido ao alto engajamento gerado por este tipo de conteúdo, eles não são retirados do ar e os algoritmos da plataforma os entregam aos usuários que têm maior chance de “curtir” o tema, gerando maiores lucros à empresa.  Em suma, o Facebook sabe do que acontece em cada canto seu, sabe dos efeitos de danos sociais e do uso indevido de dados dos usuários com potencial nocivo. Zuckerberg foi chamado no Tribunal dos EUA em 2018 para responder a acusações a respeito do tema e da venda de dados de usuários para a empresa Cambridge Analytica em 2014, sendo pressionado até o extremo de deletar completamente a rede por outros multibilionários como Elon Musk com a #DeleteFacebook[6]. O CEO assumiu os erros se desculpou, mudando políticas de dados dos usuários. Mas será que isso foi o suficiente?

Isso é muito Black mirror!

Após todas as mencionadas controvérsias, Mark Zuckerberg anunciou em outubro de 2021, que o Facebook passaria por algumas mudanças. Nada de mudanças no armazenamento de dados dos usuários ou algo do tipo, mas sim uma mudança na marca Facebook, que passou a se chamar Meta por se tratar agora de um conglomerado de empresas, especialmente de redes sociais, como o Instagram e o Whatsapp. Além disso, a empresa está passando por um processo de rebranding para sua inserção em outros mercados “do futuro”: a realidade virtual.

Em março de 2020, o mundo mudou.  A pandemia de Covid obrigou cidadãos de todo o mundo a restringir sua interação social quase que totalmente por meios digitais por boa parte do ano. Nesse cenário, alguns fenômenos vêm crescendo a níveis assustadores, como os YouTubers Virtuais ou VTubers. O termo é relativo a criadores de conteúdo online que interagem com seu público por meio de avatares que são controlados por realidade virtual, captando os movimentos, expressões e a voz de seu interlocutor através de tecnologia parecida com a de um filtro de Instagram. Apesar da concentração no nicho infanto juvenil, os VTubers movimentam milhões de dólares através de plataformas de exibição de livestreaming, sendo um dos destaques do YouTube Report 2020 e chamando a atenção para o crescimento da tendência em realidade virtual.

Empresas especializadas em lançar VTubers começaram a crescer por todo o mundo, ao ponto de que em fevereiro de 2022 a VTuber Ironmouse, da empresa americana VShojo, alcançou os mais de 92.000 inscritos pagantes mensais, tomando o lugar do brasileiro Casimiro Miguel e se tornando a maior streamer da Twitch , uma plataforma de transmissões ao vivo. A tendência da realidade virtual se expande há alguns anos e ganhou notória atenção dos usuários após o início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, e do anúncio do Metaverso. Desde então, ambos os termos apresentam crescimento de pesquisas no Google.

Atenta para sua possível futura obsolência, em 2014, a então Facebook comprou a empresa Oculus[7], especialista em aparelhos de realidade virtual, a fim de ter a garantia de atualização no mercado caso caísse em desuso como o MySpace e Orkut. A ação foi bem pensada, considerando que dentre as mencionadas Big Techs, a Meta é a única a possuir um produto que pode ter data de validade, sendo essencial se atualizar e acompanhar as tendências dos usuários. Nesse sentido, foram anunciadas as mudanças a fim de se adaptar às necessidades de atualizar as redes sociais mais uma vez, trazendo a possibilidade de se integrar a um Metaverso, um espaço em realidade virtual onde seria possível fazer compras, frequentar reuniões de trabalho ou com amigos e até mesmo ter sua casa, decorada com NFTs, é claro.

A notícia não correu tão bem como o esperado. Além dos memes fazendo graça com o anúncio, preocupações em relação ao acesso que a Meta teria com mais dados – desta vez expressões faciais, voz e hábitos dos usuários- têm sido debatidas. O caso também gerou comparações com a série Black Mirror, da Netflix, onde os episódios narram futuros distópicos quase sempre relacionados ao mau uso de tecnologias avançadas. A Meta é uma tentativa de repaginação do Facebook em um momento delicado onde a rede social já não desponta mais tão relevante quanto no início da década passada, sendo necessária sua reformulação a fim de se desvencilhar da antiga imagem, além dos escândalos de uso indevido de dados.

Desta forma, antes que acabemos em um momento como os episódios de Waldo ou em Queda livre , onde a tecnologia supera a humanidade, se faz mais necessária do que nunca a regulação do uso de dados. O Metaverso pode funcionar também como um escapismo da realidade atual, visto as previsões de caos climático para as quais caminhamos, aliada à ascensão do neofascismo e de regimes autoritários ao redor de todo o mundo, sendo os óculos de realidade virtual a venda necessária para a distração de problemas do mundo real que devem ser resolvidos agora, como o agravamento da crise climática e a manutenção das democracias.

Zuckerberg tem o potencial de deter em mãos boa parte das conexões e comunicações que os usuários têm[8], o que, a partir do Metaverso, pode se tornar sem precedentes. Além de Zuckerberg, outras Big Techs, como a Microsoft, anunciaram sua entrada no Metaverso, adaptando recursos já existentes para a construção de um mundo em realidade virtual. O início de uma corrida das Big Techs por um espaço virtual que toma mais dados dos usuários em realidade expandida está longe de ser o progresso tecnológico que precisamos hoje, se dando muito às custas de democracias e populações sociais mais frágeis. O saldo tem potencial social cancerígeno a escala global, alçando a vigilância a outro patamar.

Retomando McLuhan em uma de suas frases mais famosas, se “O meio é a mensagem”, a mensagem deixada pelo Facebook e seu Metaverso é de desconfiança, além da clara falta de neutralidade nas redes sociais. Em fala à Böll no mês passado, Sérgio Amadeu pontuou que conforme aumentem os avanços de tecnologias holográficas, mais teremos experimentos de 3D como o Metaverso e diversos videogames já existentes em realidade aumentada e possibilidades de interação diversas. Acrescento aqui que para que a ideia de Zuckerberg se torne possível, é necessária a ampliação do acesso deste tipo de tecnologia às diversas camadas sociais, como aconteceu com os smartphones. No entanto, no caso de tecnologias de realidade virtual, este processo pode se tornar um pouco mais difícil, devido ao alto custo destes produtos, por exemplo.

Mesmo em um cenário da popularização do Metaverso, é essencial a mobilização popular pela garantia de seus direitos digitais, pela proibição do armazenamento de dados como reconhecimento facial e de voz, que podem ser usados para mapeamento de marketing ou a criação de bolhas virtuais cada vez mais fechadas e profundas.


[4] SCHRADIE, Jen. The Revolution That Wasn’t: How Digital Activism Favors Conservatives. Harvard University Press, 2019


[1] MCLUHAN, M. (1969). Os meios de comunicação como extensões do homem (understanding media). Editora Cultrix.