Desmonte da reforma agrária aprofundará a concentração fundiária no país

Desmonte da reforma agrária aprofundará a concentração fundiária no país - Mídia NINJA

Dados referentes à concentração fundiária no Brasil são, por si só, reveladores do processo histórico de exclusão da maioria dos cidadãos do acesso à terra.  Análises preliminares dos dados do Censo Agropecuário de 2017[1], divulgadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que metade dos 5.072.152 estabelecimentos rurais existentes no país tem 10 hectares ou menos e juntos detém apenas 2,28% das terras utilizadas para agropecuária. Enquanto 50.865 propriedades – que correspondem a cerca de 1% do total de estabelecimentos rurais – concentram 47,52% das terras agrícolas[2]. Esses indicadores, ao passo que atualizam o sentido social e político da reforma agrária, demonstram que antes de serem descontinuadas, as políticas de redistribuição da terra, de apoio à agricultura familiar e de reconhecimento de direitos territoriais precisam ser intensificadas para que o país supere suas persistentes desigualdades.

No entanto, sob o governo de Jair Bolsonaro,  assistimos à paralisação das políticas de reforma agrária seja por meio de drásticas reduções orçamentárias no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)[3], da diminuição do número de seus servidores[4], da suspensão de vistorias[5] e da desistência de desapropriações ou o cancelamento de títulos de dívida agrária, mesmo após longo período de tramitação pela autarquia[6].

Essas medidas projetam um cenário de extinção da reforma agrária e de consequente aprofundamento da concentração fundiária no país, agravada pela diminuição –  também drástica –  de políticas de apoio à agricultura familiar e camponesa[7]. Desde 2016, políticas, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA),  que representa uma das principais fontes de financiamento para o setor ao garantir o acesso a mercados institucionais aos produtos da agricultura familiar, vêm sofrendo perdas orçamentárias progressivas: naquele ano, o PAA experimentou uma redução de 66% em seu orçamento e, em 2018, a previsão de cortes foi ainda mais severa: segundo o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentária (PLDO) foram previstos apenas R$ 750 mil ao PAA contra R$ 330 milhões destinados em 2017[8]. Durante o governo de Jair Bolsonaro, os recursos do PAA além de se manterem reduzidos, sequer têm sido integralmente executados: em 2020, dos R$ 500 milhões então destinados ao programa, R$ 240 milhões não chegaram a ser gastos; em 2021, a previsão orçamentária ao programa foi reduzida para apenas R$ 101 milhões. Em sentido semelhante, o Programa  Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) experimentou no PLDO um corte de 35% em relação ao ano anterior, caindo de R$ 3,85 bilhões para R$ 2,5 bilhões[9]. Em relação ao Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE) – que representa outra importante iniciativa de fomento à comercialização de produtos da agricultura familiar –, as propostas já aprovadas na Câmara de Deputados por meio do Projeto de Lei (PL) 3.292/2020, deverão resultar na sua descaracterização: foi excluída a prioridade de compra dos povos indígenas, comunidades quilombolas e assentados da reforma agrária[10]

A desestruturação desses programas já tem afetado as possibilidades de reprodução social e econômica de milhares de famílias assentadas. Um exemplo é o Assentamento Roseli Nunes em Mirassol D’Oeste (MT), onde 331 famílias assentadas lutam para manter sua produção e comercialização agroecológica em um contexto de desestruturação das políticas de reforma agrária e de incentivo à produção e comercialização camponesa.  Por meio da produção familiar de base agroecológica, os assentados (as) cultivam uma diversidade de alimentos e conservam os bens comuns ali existentes (nascentes, sementes, biodiversidade, fertilidade do solo, etc.). Os Sistemas Agroflorestais (SAF) implementados pelas famílias representam fontes de alimentos eficientes na recuperação e conservação do solo e das águas. Nas roças, hortas e quintais produtivos – familiares e de gestão coletiva –, se cultivam cerca de 45 espécies, garantindo grande parte do autoconsumo com diversidade alimentar. Há ainda uma grande diversidade de sementes tradicionais, conservadas e guardadas em bancos familiares de sementes e trocadas entre as famílias camponesas. Os/as assentados/as comercializam sua produção em feiras locais e, desde 2005, vinham abastecendo, com alimentos saudáveis livres de agrotóxicos, os mercados institucionais (escolas, creches, asilos, etc.) dos municípios da região por meio do PAA e do PNAE[11]. Os sucessivos cortes orçamentários e a desestruturação desses programas reduziram as possibilidades de comercialização para os agricultores (as) do assentamento que vêm experimentando uma redução progressiva de suas rendas familiares, agravada pela crise econômica decorrente da pandemia.

Com a aprovação e implementarem da lei n°13.465, em 2017, a qual criou mecanismos que facilitam os critérios de titulação e antecipam a consolidação[12] dos assentamentos, alguns assentados do PA Roseli Nunes (que, por força dessa lei, já teriam acesso à titulação de seus lotes), começam a considerar a venda de suas terras em decorrência da diminuição das possibilidades de produção e comercialização causadas pela drástica diminuição de políticas em apoio à agricultura familiar[13]. Trata-se de uma região onde existem outras dezenas de assentamentos, cuja conquista, após anos de luta, significou concretamente uma desconcentração da propriedade da terra na região. Assim, são graves os retrocessos que se estabeleceriam se, por falta de alternativas econômicas, a tendência de venda dos lotes vier a se consolidar: além de um processo de reconcentração fundiária, também cairão por terra anos de investimentos públicos que viabilizaram o fortalecimento de circuitos curtos de comercialização – que, além de potencializarem as relações entre produtores e consumidores, são mais eficientes do ponto de vista energético e econômico –  e o abastecimento com alimentos saudáveis, livres de agrotóxicos, dos mercados institucionais, com resultados positivos à economia local e à segurança alimentar e nutricional dos moradores da região.

De fato, enquanto um conjunto de políticas voltadas para o campesinato tem sofrido profundos cortes orçamentários a ponto de serem inviabilizadas, vêm sendo progressivamente ampliados os recursos do INCRA para emissão de títulos de posse, provisórios e definitivos, para assentados da reforma agrária.  Em 2017, o Programa de regularização fundiária do INCRA recebeu o maior aporte de recursos desde sua criação[14]. Como consequência, foram emitidos 123 mil títulos, um recorde em relação aos governos anteriores, cuja média entre 2003 e 2016 girou em torno de 20 mil títulos/ano[15]. Naquele ano, enquanto as titulações cresciam exponencialmente, nenhuma família foi assentada[16].  Durante o governo de Jair Bolsonaro, a manutenção da prioridade orçamentária para execução de ações de titulação, ao lado da criação do Programa Titula Brasil, que tem com o objetivo promover a entrega de títulos em assentamentos e áreas públicas da União, indica o alteamento dessa tendência. Segundo o relatório de gestão do INCRA relativo ao exercício da autarquia em 2020, excluídos os custos relativos ao pagamento dos servidores (que correspondeu a 66% do orçamento executado), a principal despesa (correspondente a 13% do orçamento) refere-se a atividades de consolidação de assentamentos rurais que, segundo o próprio relatório, “se destacam em virtude das metas de titulação traçadas pela autarquia junto ao Governo Federal”[17].

Com efeito, durante o ano de 2020 e o primeiro semestre de 2021, somente as três superintendências regionais do INCRA no Pará emitiram 50.162 documentos de títulos, sendo 47.234 para assentados da reforma agrária e 2.924 de ocupantes de glebas públicas federais[18]. Além de se afastar do que estabelece o artigo 188 da Constituição Federal quanto à prioridade que orienta a destinação de terras públicas e devolutas[19], os objetivos dessas ações evidenciam que a prioridade da atual política agrária é produzir mais proprietários e menos assentados, com o intuito de dispor as terras destinadas à reforma agrária ao mercado de terras. Antes, o INCRA só emitia títulos aos assentados depois de comprovar a autossuficiência dos assentamentos com o objetivo de justamente evitar que essas terras voltassem rápido ao mercado e gerassem reconcentração fundiária. A tendência da atual política vai em sentido inverso. Ao conceder títulos de domínio sem que sejam aferidas as condições de reprodução econômica do assentamento, o que o governo faz é se isentar de um eixo estruturante da reforma agrária: garantir políticas de infraestrutura e apoio para que os agricultores produzam e permaneçam na terra. Ao se tornar proprietário, o assentado perde o acesso a diversas políticas públicas fundamentais que garantiriam sua permanência no campo. Um exemplo é o financiamento a juros baixos por meio do PRONAF. Com o título da terra, o agricultor passa a ter que buscar crédito junto aos bancos, a juros mais altos, o que pode levar a um endividamento e a consequente perda de sua terra.

Na verdade, quando um assentamento é criado, a legislação (Lei Nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993; Instrução Normativa nº 15 de 30/03/2004 / INCRA) estabelece as etapas que precisam ser cumpridas pelo governo (cadastramento das famílias; demarcação dos lotes; construção das estradas de acesso; liberação de créditos de apoio; construção das moradias, escolas  e instalação da energia elétrica; assistência técnica para desenvolvimento estratégias de produção e a elaboração de projetos para acesso ao PRONAF; implementação de políticas em apoio à comercialização) para que os/as agricultores/as estejam aptos a receber seus títulos de propriedade. Embora a lei 13.465/17 tenha substituído a obrigatoriedade do cumprimento dessas etapas para a entrega do título pela definição de um marco temporal de 15 anos de criação do assentamento, é inequívoco que sem que as condições para permanência na terra estejam estabelecidas, a titulação poderá levar à venda dos lotes e à consequente reconcentração das terras destinadas à reforma agrária.

É assim que, além da gravíssima paralisação da reforma agrária, o esvaziamento de políticas em apoio à agricultura familiar ao lado da titulação massiva nos assentamentos demonstram mais que um descompromisso do atual governo com a democratização do acesso à terra. Revelam uma estratégia institucional de reestruturar o mercado formal de terras a fim de liberar, de maneira acelerada, terras públicas ao mercado, impulsionando, na contramão do que estabelece os preceitos constitucionais, uma nova dinâmica de concentração fundiária.

 

 

[2]Mais análises sobre estes dados podem ser encontradas em    https://www.brasildefato.com.br/2018/07/26/no-brasil-2-mil-latifundios-ocupam-area-maior-que-4 milhoes-de-propriedades-rurais, acesso em 20/07/2021

[4] “Se aprovado, PL da Grilagem coroa processo de sucateamento do Incra”. Disponível em https://apublica.org/2021/07/se-aprovado-pl-da-grilagem-coroa-processo-de-sucateamento-do-incra/, acesso em 22 julho de 2021

[5] “Governo federal suspende vistorias rurais e emperra reforma agrária no país”. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/03/28/governo-federal-suspende-vistorias-rurais-e-emperra-reforma-agraria-no-pais.htm. Acesso em 20 julho de 2021

[6] “Governo Bolsonaro paralisa reforma agrária e demarcação de territórios quilombolas.” Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/governo-bolsonaro-ordena-paralisar-a-reforma-agraria-no-pais.shtml , acesso em 22 de julho de 2021

[7] “Agricultores temem extinção do Programa de Aquisição de Alimentos”. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2017/10/contag-teme-extincao-do-programa-de-aquisicao-de-alimentos/ ,  acesso em 22 de julho de 2021

[9]Orçamento da União 2021 revela descaso com Agricultura Familiar”. Disponível em

https://www.fetaesc.org.br/noticia/orcamento-da-uniao-2021-revela-descaso-com-agricultura-familiar , acesso em 22 de julho de 2021

[10]Câmara aprova retirar prioridade de compra da produção de assentamentos”. Disponível em

https://www.poder360.com.br/congresso/camara-aprova-retirar-prioridade-de-compra-da-producao-de-assentamentos/ , acesso em 22 de julho de 2021

[11] OLIVEIRA. S. S.; ASEVEDO, T. R.A.de. “Do latifúndio ao assentamento: recriando a agricultura camponesa no Mato Grosso”. Rio de Janeiro: Rev. Agriculturas, v. 11 - n. 2, julho de 2014 e OLIVEIRA, Siumara Santos. “(Des) caminhos da resistência camponesa nos assentamentos de reforma agrária: avaliação da sustentabilidade socioeconômica e ambiental no assentamento Roseli Nunes – Município de Mirassol D'Oeste-MT”. Dissertação de mestrado. UFSC. Florianópolis, 2015.

[12] Um assentamento é considerado emancipado (ou consolidado) quando se torna autossuficiente do ponto de vista social e econômico, sendo capaz de se manter sem a ajuda de políticas públicas destinadas a Reforma Agrária (como políticas de crédito, de infraestrutura, assistência técnica, etc.). A emancipação se dá por ato do INCRA, os assentados podem vender a terra decorridos 10 anos do recebimento do título, conforme previsto pelo art. 189 da Constituição. Segundo a lei agraria n° 8.629/93 e a NORMA DE EXECUÇÃO/INCRA/Nº 09, de 06 de abril de 2001, o INCRA considera que um Projeto de Assentamento estaria consolidado e pronto para ser emancipado quando as obras e políticas previstas por lei estivessem implantadas e concluídas (residências, estradas, rede de energia, etc.) e pelo menos 50% dos beneficiários tivessem recebido o título de domínio da terra. O artigo 47 do Decreto n° 9.311/18 que regulamenta a lei n° 13.465/17 passou a considerar como consolidado/emancipado o projeto de assentamento que conte com 15 anos de implementação, independentemente do cumprimento dos requisitos de concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos previstos pelas legislações anteriores que foram alteradas pelo referido decreto. O que determinará a consolidação será somente o prazo de 15 anos de criação, retirando, portanto, a obrigação do Poder Público de oferecer, por meio de políticas públicas, as condições para que os assentamentos se desenvolvam e tornem autossuficientes.

[13] Denúncia encaminhada pela Associação dos moradores do PA Roseli Nunes ao Tribunal Permanente dos Povos que está organizando uma sessão especial sobre as violações de direitos aos povos do Cerrado. O Tribunal Permanente dos Povos é um tribunal étnico internacional não governamental que determina se os direitos fundamentais dos povos foram violados, examina as causas das violações e faz denúncias dos autores dos tais crimes perante a opinião pública internacional. Ele é composto por 130 membros, de alta reputação moral, indicados pelos Conselho da Fundação Internacional Lélio Basso e a Liberação dos Povos.

[14] “Regularização fundiária um dos caminhos para o crescimento do país”, disponível em  https://www.agrolink.com.br/noticias/regularizacao-fundiaria--um-dos-caminhos-para-o-crescimento-do-pais_402213.html , acesso em 23/07/2021.

[15]Incra bate recorde em empréstimo aos assentados”. Disponível em http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,incra-bate-recorde-em-emprestimo-a-assentados,70002211832 , acesso em 26/07/2021.

[17] Confere INCRA. “Relatório de gestão. Exercício 2020”. p. 79.  Disponível em https://www.gov.br/incra/pt-br/acesso-a-informacao/auditorias/relatorio_gestao_Incra_2020.pdf , acesso em 26/07/2020

[18]Assentados recebem mais de 50 mil títulos de terra no Pará”. Disponível em https://www.gov.br/pt-br/noticias/agricultura-e-pecuaria/2021/06/mais-50-mil-titulos-de-terra-sao-entregues-no-para , acesso em 26/07/2021.

[19] Segundo ao art. 188 da CF “a destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária”.