Titulação para privatização: O Programa Titula Brasil e seus desdobramentos na Política Fundiária e na Reforma Agrária

Titulação para privatização: O Programa Titula Brasil e seus desdobramentos na Política Fundiária e na Reforma Agrária - Mídia Ninja

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabeleceu a reforma agrária como política de Estado. Entre os artigos 184 e 191 a Carta Magna construiu um desenho institucional muito parecido com aqueles da política de educação, saúde e seguridade social, prevendo, além da competência para a sua execução, instrumentos jurídicos, orçamento e o princípio orientador fundamental de Função Social da Propriedade Rural[1].

Para mais, tem ganhado fôlego junto a especialistas a tese de que a reforma agrária está intimamente ligada ao objetivo fundamental da República de redução de desigualdades sociais, à vista da expressiva vinculação da concentração da propriedade rural com a má distribuição de renda e de riquezas. Por essa razão, é bastante perceptível que a reforma agrária seja também meio para efetivação de direitos fundamentais como moradia, educação, alimentação, trabalho, renda, previdência social etc[2].

No entanto, a previsão constitucional não tem sido suficiente para garantir a continuidade de sua política pública. Desde a promulgação da Constituição a reforma agrária tem sido constantemente reelaborada a partir dos interesses de cada governo, e, principalmente, do grau de proximidade desses governos com o setor do agronegócio. Têm sido recorrentes, por exemplo, alterações legislativas promovendo uma verdadeira burocratização para aquisição e destinação de novas terras para o Programa Nacional de Reforma Agrária. Cortes orçamentários inviabilizam a execução do programa e geram até mesmo inércia quanto à elaboração de um novo plano nacional de reforma agrária como instrumento de planejamento da política.

Em que pese o cenário já bastante preocupante em governos anteriores, é no governo de Jair Bolsonaro que se percebe um aprofundamento dos problemas em torno da política pública de reforma agrária. Conforme apresentado na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental-ADPF 769, proposta conjuntamente pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares - CONTAG, Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil - CONTRAF, PT, PSOL, PSB, PCdoB e REDE no Supremo Tribunal Federal - STF, há uma série de atos do Governo Federal que sinalizam para a total paralisação da política de reforma agrária[3].

Enquanto isso, em razão de alterações legislativas anteriores, o atual governo tem priorizado ou defendido como política apenas a distribuição massiva de títulos individuais, tornando as terras destinadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária mais suscetíveis de comercialização. O tema da titulação no âmbito da reforma agrária não é recente, pois a própria Constituição da República estabelece que: “os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos” (art. 189). No entanto, a partir da Medida Provisória 759/2016, convertida na Lei Federal n° 13.465/2017, a titulação individual retornou ao debate público com mais força e tem se convertido no principal objetivo do Governo Federal e do Instituto de Colonização e Reforma Agrária - INCRA. O que fragiliza a reforma agrária na medida em que a aquisição de novas terras não é considerada para continuidade do Programa Nacional de Reforma Agrária, as terras dos assentamentos se tornarão de domínio privado e estarão disponíveis para o mercado, precariza os assentamentos que não mais contarão com os investimentos públicos e inviabiliza o desenvolvimento socioeconômico das famílias assentadas que não contarão mais com os créditos disponíveis para beneficiários da reforma agrária.

Isso pode ser constatado com a investida do INCRA em promover a titulação individual nos assentamentos de todo o Brasil, embora o caso dos assentamentos do extremo sul da Bahia mereça especial atenção. Episódios como a autorização da Força Nacional de Segurança Pública e a criação de uma força-tarefa com o intuito de padronizar a titulação dos lotes cedidos aos beneficiários nos municípios de Prado e Mucuri, demonstram o empenho do Governo Federal em relação à pauta da titulação individual e o consequente esvaziamento da reforma agrária[4] como a conhecemos.

No entanto, é com a criação do Programa Titula Brasil que se pode perceber um maior interesse do Governo federal nessa pauta. Criado mediante a Portaria Conjunta nº 1, de 2 de dezembro de 2020, da Secretaria Especial de Assuntos Fundiários - SEAF/MAPA e o INCRA, o programa permite aos municípios implementar núcleos de regularização fundiária para executar atribuições do INCRA nos assentamentos de reforma agrária[5].

Prevê ainda que os municípios que possuem, em seu território, projetos de reforma agrária do INCRA ou terras públicas federais passíveis de regularização fundiária possam voluntariamente firmar acordo de cooperação técnica com o INCRA. Dessa forma, os municípios, por meio dos Núcleos de Regularização Fundiária (NMRF), serão responsáveis pela execução do programa, cabendo-lhes, por exemplo, a coleta de requerimentos, declarações e documentos afetos aos procedimentos de regularização fundiária e titulação de projetos de reforma agrária do INCRA ou terras públicas federais, além da instrução dos referidos processos. Como competência do INCRA caberia principalmente a supervisão do trabalho realizado pelo NMRF e a emissão e expedição dos títulos[6].

O programa Titula Brasil aponta duas direções para a regularização fundiária de terras públicas federais e áreas de assentamento:  primeiro, a municipalização da política pública, e, portanto, maior influência do poder local; e segundo a simplificação dos processos de regularização com a possibilidade dos próprios interessados apresentarem os documentos ao NMRF, sem avaliação prévia da existência de conflitos possessórios.

Segundo dados do próprio site do INCRA, até o momento 402 municípios em todo o Brasil aderiram ao programa. Curiosamente, os estados de maior adesão são aqueles em que predominam o agronegócio e os conflitos de ordem fundiária, agrária e ambiental, como Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Bahia[7]. Dessa maneira, o INCRA tem publicizado que, entre 2019 e 2021, distribuiu 158.172 títulos provisórios e definitivos, com previsão de até o fim do ano emitir mais 50 mil documentos[8].

No entanto, é necessário compreender o que podem significar os números citados. Os títulos provisórios, por exemplo, correspondem aos Contratos de Concessão de Uso, instrumento que o INCRA deve obrigatoriamente firmar com os agricultores para a formalização do acesso à política de reforma agrária, conforme a Lei Federal 8.629/93 e o Decreto Federal 9.311/2018.

Quanto ao instrumento definitivo, faz-se necessário tecer maiores considerações sobre as consequências de suas alterações para o regime dos assentamentos. A Lei Federal 13.465/2017 define que deve ocorrer a consolidação de assentamentos de reforma agrária após a concessão de créditos de instalação e a conclusão dos investimentos, bem como a outorga do instrumento definitivo de titulação. O objetivo central da chamada consolidação é declarar a “independência” dos assentamentos em relação ao INCRA, tornando suas terras de domínio privado. Além disso, o Decreto Federal 9.311/2018 evidencia que após o ato de consolidação o Poder Público deixará de promover investimentos em infraestrutura nos assentamentos. 

A consolidação de assentamentos também pode ocorrer após 15 (quinze) anos de sua implantação, independentemente de concessão de créditos de instalação e conclusão de investimentos, de acordo com a mencionada lei. Nesse sentido, não é difícil perceber que promover a distribuição de títulos individuais em assentamentos nessas condições é condenar o retorno de suas terras ao mercado, uma vez que o Estado não terá nenhuma responsabilidade de conceder créditos, investir em infraestrutura etc. A outorga do instrumento definitivo de titulação consiste na entrega de Título de Domínio (TD) ou Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU). No entanto, enquanto o TD transfere a propriedade para o domínio privado, com o CCDRU o domínio continua sendo do INCRA. Ambos são inalienáveis por dez anos, mas o CCDRU apenas pode ser transferido a outro particular após autorização do INCRA e é aplicável apenas aos assentamentos ambientalmente diferenciados, não sendo possível aos demais assentados a escolha de um instrumento mais adequado à sua realidade[9]

A partir do exposto acima, pode-se inferir que o Titula Brasil faz parte de uma série de medidas com o objetivo de expandir o agronegócio e a privatização de terras públicas federais, incluindo as localizadas na Amazônia Legal e as destinadas ao Programa Nacional de Reforma Agrária, cujo ápice ocorreu com a edição da Medida Provisória 759[10].

Nesse sentido, fica evidente que a distribuição massiva de títulos de domínio sem os investimentos necessários para os assentamentos, como quer o Governo Federal com a criação do Programa Titula Brasil, conduzirá a uma situação de empobrecimento dos assentamentos e o consequente retorno dessas terras ao mercado a partir da comercialização em massa dos territórios destinados à reforma agrária. Sendo tal processo, vale reiterar, um desvirtuamento daquilo que se preconiza a Constituição da República como princípios orientadores da política de regularização fundiária e de reforma agrária: função Social da Propriedade e compatibilização entre a Reforma Agrária e a Política Agrícola.

 

[1]  A função social exige que toda propriedade rural cumpra com os requisitos elencados no art.186 da Constituição da República. Tais requisitos estão mais bem detalhados na Lei n.º 4.504/64 (Estatuto da Terra) e na Lei n.º 8.629/93. (Aqui seria interessante citar os requisitos)

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:  I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

[2] MITIDIERI, Leandro. Reforma Agrária como Objetivo Fundamental Constitucional de Redução de Desigualdades Sociais. Brasil. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. A reforma agrária e o sistema de justiça – Brasília: MPF, 2019. 473 p. Disponível em:  <http://www.mpf.mp.br/pfdc/midiateca/nossaspublicacoes/a-reforma-agraria…;

[3] Em 10 de junho de 2021, o Ministro Marco Aurélio negou seguimento à ADPF 769 alegando que não é cabível ao Supremo Tribunal Federal substituir o Executivo na implementação de política pública. No entanto, a ação ainda está para ser apreciada pelo STF em razão de recurso interposto pelos autores. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/>

[4] Mais informações podem ser encontradas na nota técnica produzida pela Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais-AATR e pelo Coletivo de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra da Bahia. Disponível em <https://www.aatr.org.br/publicacoes-proprias>

[5] Em junho de 2021 a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – órgão do Ministério Público Federal (MPF) – lançou ação coordenada, voltada ao acompanhamento do Programa Titula Brasil, a fim de assegurar a observância dos princípios da administração pública, o reconhecimento de territórios tradicionais e o respeito à destinação constitucional das terras públicas federais. Disponível em <http://www.mpf.mp.br/pfdc/temas/acoes-coordenadas/acao-coordenada-programa-titula-brasil-guia>

[6] Por meio da Instrução Normativa n° 105/2021 o INCRA estabeleceu o procedimento para a celebração de parcerias com os municípios e implementação dos Núcleos Municipais de Regularização Fundiária - NMRF para a execução do Programa Titula Brasil.

[9] A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) também lançou em 2021, o guia Reforma Agrária e Formalização do Acesso à Terra. Disponível em http://www.mpf.mp.br/pfdc/midiateca/nossas-publicacoes/guia-reforma-agraria/view.

[10] Tramitam no STF a ADI n. 5787 e a ADI n. 577, que apontam a incompatibilidade da MP (hoje lei 13.465/2017) com a Constituição da República, mais precisamente com o capitulo que dispõe sobre a Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária.