Nosso objetivo nesse artigo é fazer uma relação entre a experiência cotidiana de produção agroecológica das mulheres camponesas[4] e sua luta nacional e global pela soberania alimentar. Da mesma forma que é preciso pensar a produção de alimentos saudáveis a partir de cada unidade de produção é necessário organizar uma política de Estado que possibilite que os alimentos saudáveis produzidos pelas camponesas e camponeses cheguem a quem não produz alimentos, a cada trabalhadora e trabalhador que vive na cidade. É isso que chamamos de soberania alimentar, a produção e distribuição de alimentos saudáveis e culturalmente adequados entre as/os camponesas/es e as/os trabalhadoras/es que vivem na cidade, construção que se dá a partir de uma agroecologia que é necessariamente feminista, antirracista e anticapitalista.
As camponesas e a produção de alimentos saudáveis
O Movimento de Mulheres Camponesas organiza uma diversidade de mulheres que tem na produção de alimentos saudáveis, na preservação das sementes, na produção e uso das plantas medicinais, na valorização do modo de vida camponês e dos conhecimentos das camponesas, o seu modo de construir a agroecologia. Esse não foi um processo simples. A negação do conhecimento das camponesas acontece a partir das relações patriarcais existentes na própria família e comunidade, mas é ampliada por uma assistência técnica que chegou às famílias camponesas para implementar um pacote de produção baseado na dependência dos insumos externos a unidade de produção e em relações de mercado.
As camponesas resistiram de várias formas. Como demonstra Catiane Cinelli[5] ao estudar a construção do Programa de sementes crioulas do MMC, para as mulheres preservarem suas sementes foi necessário muita luta e muitas estratégias individuais e coletivas, como plantar escondido no quintal, usar espaços da unidade de produção que ninguém usava, enfrentar diretamente os técnicos, os filhos e os maridos às vezes também, pois a forma como eram tratadas, era como se elas não tivessem direito a produzir da forma que queriam, a manter seus costumes.
Assim as camponesas conseguiram preservar sementes de plantas, mas também de animais e o quintal foi se tornando uma grande estratégia de preservação da diversidade produtiva e cultural das mulheres camponesas.
A preservação das sementes de um ano para o outro é uma prática camponesa milenar, mas em 2001 o Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA)[6] estruturou um programa de resgate de sementes, com ações de cunho organizativo e formativo. Essa experiência exitosa de Santa Catarina, após a nacionalização do MMC[7], juntou-se ao reconhecimento de que essa era uma prática que ocorria em todos os estados onde o MMC estava presente. Percebendo então a necessidade de fazer o debate da soberania alimentar na prática, o movimento nacionalizou um processo organizativo de resgate de sementes[8] e de valorização da produção das mulheres camponesas, em 2007, a partir da Campanha Nacional de Produção de Alimentos Saudáveis (CNPAS)[9].
Sobre a campanha, escreveu Laeticia Jalil[10] que:
Para as mulheres, a Campanha representa seu trabalho, seus saberes, seus conhecimentos, seus valores e suas verdades. Elas não só reconhecem a Campanha, elas se reconhecem nela, com ela e para ela; ao praticarem, ao construírem os bancos de sementes crioulas, ao trocarem sementes, ao plantarem as plantas medicinais, trocarem receitas e mudarem os hábitos alimentares, elas resgatam, divulgam e fortalecem suas práticas milenares.
A campanha se materializa nas experiências, e em cada estado em que o MMC está organizado ela mobiliza e se organiza a partir das realidades locais: grupos de produção, bancos de sementes, associações formais e informais etc. Sendo que todas passaram por inúmeras formações e capacitações: sobre agroecologia, feminismo, políticas públicas voltadas à agricultura camponesa. Assim, foram melhorando suas práticas agroecológicas a partir da troca de conhecimento entre elas e conseguiram, a partir da análise de sua própria realidade, perceber as injustiças que o patriarcado, o capitalismo e o racismo traziam a suas vidas.
É possível dizer que esses processos são fortalecidos por políticas públicas como o Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e a ampliação do Programa Nacional da Alimentação Escolar (PNAE), que possibilitavam o escoamento da produção das camponesas a partir das suas próprias organizações ou mesmo individualmente, tornando o debate da alimentação saudável não apenas uma pauta da família, mas possibilitando virar realidade nas escolas da comunidade e outros espaços assistenciais nos municípios. O Programa de Cisternas[11] foi também potencializador desse processo na medida que, em especial no semiárido, mas também em outras regiões, possibilitou o acesso à água para o consumo humano e para produção nos quintais[12].
A partir das reflexões e ações da CNPAS as camponesas percebem que parte significativa da produção dos grupos produtivos das mulheres vinha de um espaço de produção importante historicamente para garantir a alimentação das famílias camponesas. Usado nas estratégias de preservação das sementes e da diversidade produtiva, mas que não era visto, nem valorizado, o quintal reaparece como a afirmação do potencial produtivo, cultural e feminista da realidade das camponesas.
Em 2017, como resposta à já instalada conjunção de crises econômica, ambiental, política, institucional que para o MMC iria se transformar rapidamente em fome na vida do povo, o movimento busca, dentro da CNPAS, ampliar o resgate das sementes a partir do processo de instituição da Campanha Nacional Sementes da Resistência: camponesas semeando esperança, tecendo transformação. A campanha orientou todos os grupos de camponesas em cada estado a buscar uma nova semente da sua região para resgatar e ampliar a diversidade de sementes crioulas e buscar diminuir o impacto da fome nas comunidades em que o MMC está presente.
Trazemos essas experiências de luta, resistência das camponesas para mostrar que essas experiências não acontecem de forma automática, sem que o debate político baseado em uma concepção de mundo que tem a soberania alimentar como horizonte aconteça.
A construção da soberania alimentar é pressuposto da igualdade
A soberania alimentar, como se entende no MMC, é o primeiro passo na possibilidade de que todas as pessoas do mundo tenham acesso à alimentação saudável, adequada culturalmente, em qualidade, quantidade e regularidade como propõe os que defendem a segurança alimentar e nutricional. O acesso a um alimento de qualidade e nutricional, também é fundamento para a promoção da saúde humana e também da natureza, pois a manifestação ou ausência de doenças está ligada com o modo de produção no campo, o uso ou não de agrotóxicos, de transgênicos ou uma produção agroecológica, o acesso das pessoas a alimentos saudáveis e nutritivos, o acesso à terra, água potável e tratada, acesso e uso das sementes para a produção diversificada de alimentos, todos estes fatores têm efeitos sobre a vida humana e sobre a sua condição de saúde.
Assim, o MMC compreende que a soberania alimentar antecede a segurança alimentar, na medida que apenas em um país onde camponesas e camponeses, com apoio de políticas de Estado, tenham autonomia e capacidade produtiva de abastecimento e distribuição do alimento que produzem, seja possível pensar em alimento para todos.
É pressuposto, porque já é uma constatação científica que o problema da fome e da desnutrição não está relacionado com a falta de produção de alimentos, mas com o fato de um direito humano universal[13] ser tratado como mercadoria, o acesso somente se dá a partir das possibilidades individuais de se pagar pelo alimento.
A fome tem relação direta com o investimento dos estados nacionais em produção para aumentar os seus Produto Interno Bruto (PIB) e não na criação e fortalecimento de uma produção voltada para o atendimento dessa que é uma necessidade básica de qualquer ser humano[14].
A soberania alimentar para as mulheres camponesas é entendida como o conjunto de direitos dos povos de decidir sobre suas próprias políticas de produção agrícola e de alimentação, assim como as políticas que organizam a distribuição e o consumo dos alimentos. Incluído de maneira profunda neste processo a valorização do trabalho histórico das mulheres na produção de alimentos promovendo a sua qualidade de sujeitas e cidadãs de direitos[15].
Mesmo as mulheres produzindo bastante é necessário evidenciar que existe uma desigualdade estrutural no acesso aos recursos produtivos. É fundamental garantir o direito de igualdade no acesso à renda e dos recursos que entram na unidade de produção, fruto do trabalho de todos os seus membros. E para isso é preciso a superação da ideologia da divisão sexual do trabalho, que separa o trabalho de homens e de mulheres, hierarquiza e supervaloriza o trabalho considerado do homem, além de esconder que as camponesas realizam todos os tipos de trabalho na unidade de produção[16].
Portanto, para as camponesas, a proposta da soberania alimentar implica mais do que o direito à produção de alimentos saudáveis, mas uma ampla agenda de reparações e transformações nas relações desiguais entre os gêneros em todas as dimensões das relações sociais. A soberania alimentar para as mulheres não se restringe ao âmbito produtivo, mas em diálogo com ele, se expande pelo conjunto das relações sociais, principalmente no que tange à autonomia, à soberania sobre as sementes, à defesa da terra e dos territórios e à busca pela liberdade sobre a vida e os corpos das mulheres camponesas. Soberania alimentar só se consegue com justiça de gênero, a partir do feminismo e da agroecologia.
Solidariedade cidadã na pandemia
No ano de, 2020, quando se iniciou a pandemia da COVID-19, além das perdas humanas[17], agravou-se uma crise política, econômica, social e ambiental já vivenciada pelo Brasil. Dentre uma das mazelas, que o país já tinha extinguido, retornou de forma avassaladora a fome e a má nutrição[18].
E frente a esta situação de fome, foram as camponesas e camponeses que se mobilizaram para realizar ações de solidariedade e de doação de alimentos para as famílias nas periferias das cidades. Buscaram fazer um “isolamento social produtivo”[19] e
produzir ainda mais em seus quintais produtivos, para levar alimentos saudáveis e de qualidade aos que estavam precisando nas cidades, mas também em alguns espaços rurais.
Cabe ressaltar, que estas ações de solidariedade se deram em meio à condição de restrição de comercialização dos alimentos dos camponeses/as, especialmente pelo fechamento das feiras livres e das escolas, que muitas camponesas tinham como mercado para seus produtos, como os programas de compra institucional, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). As restrições de mobilidade devido à pandemia também impactaram no aumento da dificuldade de transporte dos alimentos para comercialização, no aumento dos gastos e do trabalho para novos formatos de comercialização, como por exemplo, via entrega direta nos domicílios dos consumidores/as. E corrobora com essa situação o aumento do desemprego, que diminuiu a capacidade de compra dos brasileiros/as, restringindo o tamanho e a qualidade da cesta básica de milhões de famílias.
O Estado é central para potencializar que o campesinato cumpra sua tarefa, que entende a produção de alimentos como parte do seu modo de vida, e não como uma atividade empresarial.
Mas pensar a soberania alimentar é cobrar que o Estado, que sempre usou suas leis e recursos públicos em favor dos grandes donos de terras (ou de empresas), volte parte do fundo público para resgatar a potencialidade de produção de alimentos por inúmeras famílias que não possuem ou têm pouca terra e mesmo as que têm terra, mas enfrentam inúmeras outras dificuldades.
[1] Engenheira em Agroecologia pelo Instituto Universitário de Agroecologia Paulo Freire - IALA (Barinas/Venezuela) - Mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no estado de Minas Gerais. E-mail: iridianigs@yahoo.com.br.
[2] Agrônoma, Mestre em serviço social pela UFPE, doutoranda em Ciências Sociais (UFCG). Militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no estado do Rio Grande do Norte. E-mail: michela.calaca@gmail.com
[3] Formada em Ciências contábeis, Militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) no estado de Santa Catarina. E-mail: noemikrefta@yahoo.com.br
[4] Quando mencionamos o termo camponês e camponesa nesse artigo estamos falando de uma diversidade de modos de vidas e identidades que são parte da classe que vive do seu trabalho, em relação com a natureza no campo, nas florestas e nas águas. Podendo ser: trabalhadoras/es rurais, indígenas, mulheres e homens quilombolas, povos de matriz africana, pescadoras/es, sem-terra, assentadas/os da reforma agrária, quebradeiras de coco, agricultoras/es familiares, atingidas/as por barragens, faxinalenses, entre inúmeras outras identidades.
[5] CINELLI, C. Programa de sementes crioulas de hortaliças: experiência e identidades no movimento de mulheres camponesas. INUJUI. Ijui. 2012.
[6] Movimento que comporia o MMC a partir de 2004.
[7] Em 2004, essas experiências que aconteciam articuladas, mas dispersas em diversos movimentos estaduais, se uniram em uma proposta política nacional e criaram o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) que já nasce carregando essas reflexões e se dispondo a enfrentar o modelo do agronegócio a partir das experiências das mulheres e das ações políticas.
[8] Em 2017, como respostas à crise econômica que na vida do povo se transforma em fome, o MMC transforma esse processo na Campanha Nacional Sementes da Resistência: camponesas semeando esperança, tecendo transformação, como forma de ampliar o resgate de sementes e diminuir o impacto da fome nas comunidades que o MMC está presente.
[9] MMC, Movimento de Mulheres Camponesas, Mulheres camponesas em defesa da saúde e da vida, Passo Fundo, [Cartilha], 2008.
[10] JALIL, L. M. Mulheres e soberania alimentar: a luta para a transformação do meio rural brasileiro (Trabalho de conclusão de curso) Metrado no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade do UFRRJ. 2009.
[11] Política do Programa Fome Zero, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à fome, que no semiárido foi majoritariamente implementado pela Articulação no Semiárido Brasileiro e no resto do país foi feito em parceria com entidades locais.
[12] SANTOS, M. K. C. A. Rompendo a cerca do isolamento: as relações entre a agroecologia e as questões de gênero. Trabalho de conclusão de curso (Mestrado). Departamento de Serviço Social. Recife, Universidade Federal de Pernambuco. 2012.
[13] Códigos e pactos no âmbito internacional definem alimentação como um direito universal: No artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. No artigo 11 Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais Comentário Geral nº 12 da ONU e em vários países contam com leis especificas nesse sentido.
[14] Segundo estimativas da CONAB a produção de grãos no Brasil deve bater novo recorde na safra 2020/21, com uma produção de 268,9 milhões de toneladas, o que representa um aumento de aproximadamente 5% em relação à safra anterior, mas essa produção é vendida para quem pagar mais e deixa o povo brasileiro fora desse mercado.
[15] LEON, I.; SENRA, l., Las mujeres gestoras de la Soberania Alimentaria. In: Las mujeres alimentan al mundo: Soberanía alimentaria en defensa de la vida y el planeta, Ed. Entrepueblos, 2009, pp. 16-39.
[16] CONTE, I.; CALAÇA, M.; TABORDA, N. Divisão sexual do trabalho. In: Feminismo Camponês Popular: Experiências e Reflexões a partir do Movimento de Mulheres Camponesas. São Paulo. Expressão Popular. 2020, p. 114-123.
[17] Chegando ao patamar de mais de 550 mil mortes nos últimos dias do mês de julho de 2021. Dados obtidos em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/07/28/brasil-tem….
[18] Segundo levantamento de dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), nos primeiros meses deste ano, 19 milhões de pessoas passam fome no país e no final de 2020, 55, 2% dos domicílios, o que abrange um total de mais de 116 milhões de pessoas vivenciam algum tipo de insegurança alimentar.
[19] Segue algumas matérias jornalistas sobre essas ações: https://www.sul21.com.br/colunas/mauri-cruz/2020/05/solidariedade-com-d… ; E matérias dos próprios movimentos: https://www.facebook.com/watch/?v=245006186564196 ; Campanha de solidariedade ao povo Pancariry no estado de Sergipe, disponível em: https://www.mmcbrasil.com.br/site/node/440 ; Desde o início da pandemia, MST já doou 3400 toneladas de alimentos disponível em: https://mst.org.br/2020/09/09/desde-o-inicio-da-pandemia-mst-ja-doou-3400-toneladas-de-alimentos/