A Constituição Federal de 1988 é um marco nos direitos e garantias destinados aos povos indígenas e comunidades tradicionais na Amazônia. A partir dela, foram asseguradas políticas públicas dedicadas ao reconhecimento de seus territórios, a fim de criar mecanismos que respeitassem o apossamento coletivo destes grupos sociais. Entretanto, o governo brasileiro vem criando medidas que cada vez mais invisibilizam o reconhecimento dos direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais, assim como o cumprimento dos mandamentos constitucionais que asseguram a diversidade social de acesso à terra.
Pode-se dizer que uma delas é a Lei nº 13.465 de 2017, que expandiu ainda mais as possibilidades de apropriação ilegal de terras públicas[1] e modificou de forma significativa o processo de regularização dos assentamentos de reforma agrária. Suas inovações possuem o claro objetivo de facilitar a emancipação dos assentamentos e desobrigar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a manter qualquer assistência, facilitando que os lotes titulados entrem no mercado de terras rapidamente[2].
Além disso, em fevereiro de 2021 o Governo Federal lançou o “Programa Titula Brasil”, que teoricamente tem como objetivo principal “apoiar a titulação de assentamentos e de áreas públicas rurais da União passíveis de regularização por meio de parcerias com os municípios”[3].
A ideia parece simples, os municípios que possuem terras públicas federais passíveis de regularização fundiária assinam um acordo de cooperação com o INCRA. Em comum acordo estabelecem um plano de trabalho. A prefeitura instala o Núcleo Municipal de Regularização Fundiária e disponibiliza espaço físico e servidores públicos municipais, que serão treinados pelo órgão fundiário federal. Cabe ao INCRA propiciar as soluções tecnológicas para a execução do Programa[4]. Na prática o Núcleo Municipal se torna um escritório avançado do INCRA, e o ônus financeiro e de pessoal é de responsabilidade da prefeitura. No dia a dia o prefeito é quem decidirá que imóvel rural será titulado. Contudo, a regularização fundiária ocorrerá conforme os comandos normativos estabelecidos pela Lei 11.952/2009 e as modificações trazidas pela Lei nº 13.465/2017.[5]
Para Sérgio Sauer e Acácio Leite[6] a Lei nº 13.465/17 possui como principal objetivo instrumentalizar novas áreas para o mercado de terras, sem se preocupar com sua função socioambiental. É possível afirmar que esta lei não garante o acesso à terra para os povos e comunidades tradicionais ou a agricultura familiar, pelo contrário, favorece processos de grilagem e aumenta as situações de violência contra pequenos produtores, agricultores familiares e populações tradicionais.
Importante sublinhar aqui as modalidades de assentamentos ambientalmente diferenciados, quando há o reconhecimento de uma ocupação preexistente, ou seja, aquela na qual a população tradicional não foi transferida para a área do assentamento, pois o grupo social já ocupava as terras, de modo que há apenas um reconhecimento oficial do apossamento coletivo já existente. Estão inseridos nesta categoria o Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE), o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) e o Projeto de Assentamento Florestal (PAF), modalidades de regularização fundamentais, tanto por atender às singularidades existentes na Amazônia como por promover a defesa das comunidades tradicionais.
Conforme pontua Ana Luisa Rocha[7], tais modos de assentamento “são mais adequados à realidade regional da Amazônia e ao modelo de uso da terra e dos recursos naturais das populações tradicionais, especialmente por incorporarem o apossamento coletivo, isto é, reconhecem e legitimam a posse agroecológica[8]”. Cabe ressaltar que o apossamento dos povos e comunidades tradicionais vai além da noção de posse civil e agrária, que exige um poder de fato sobre alguma coisa material. A posse agroecológica inclui o componente cultural, tendo sido reconhecida pela Corte IDH a partir do caso da Comunidade Indígena Yakye Axa, em 2005, no Paraguai.
No entanto, a legislação de 2017 promoveu alterações substanciais na Lei nº 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, e modificou comandos normativos que tratam especificamente dos assentamentos, criando um novo documento de reconhecimento de ocupação da terra pública. Um de seus efeitos é que o órgão fundiário fica desobrigado de garantir a permanência dos beneficiários por meio de investimento em infraestrutura, concessão de créditos e prestação de assistência técnica. Além disso, a obtenção da emancipação em um curto período coloca como alternativa econômica mais viável a venda dos lotes em assentamentos que gozaram de pouco ou nenhum investimento do INCRA.
No Gráfico 1 é possível identificar a quantidade de projetos de assentamentos agroextrativistas e de desenvolvimento sustentável criados no estado do Pará nos últimos anos. A partir da análise das informações, podemos inferir que durante os dois governos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ocorreu a maior quantidade de titulação de territórios coletivos nesses moldes. Nos governos do ex-presidente Michel Temer e do atual presidente da República, Jair Bolsonaro, houve uma queda substancial nos números de regularização fundiária desses assentamentos.
Gráfico 1 - PAE e PDS criados no estado do Pará[9]
A legislação atual determina que a distribuição de lotes de assentamentos tradicionais seja realizada em caráter provisório por meio de Contrato de Concessão de Uso (CCU) ou em caráter definitivo por meio de Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) ou Título de domínio (TD) para cada família (cliente da reforma agrária), conforme previsto no art. 24 do Decreto 9.311/2018 (BRASIL, 2018). Portanto, a titulação nos assentamentos tem dois momentos distintos: o primeiro é a concessão do CCU para cada família; e o segundo, a titulação do contrato CDRU, ou título definitivo, individual ou coletivo.
Nas modalidades de assentamento ambientalmente diferenciado, o ideal é que seja emitido um Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) coletivo para a associação, e que posteriormente cada família receba o Contrato de Concessão de Uso, já que a emissão do CCDRU garante segurança fundiária às famílias beneficiadas e impede a transformação da terra em título de propriedade individual. Quando se emite um CCU para cada família nesta modalidade de assentamento, sem que esteja vinculado ao CCDRU da associação do assentamento, o poder público está reconhecendo a forma provisória da posse do imóvel para o beneficiário, estimulando a desestruturação das dinâmicas coletivas do território tradicional. Com isso, abre-se caminho para que, futuramente, os assentamentos ambientalmente diferenciados sejam convertidos em lotes familiares.
Diferentemente, a emissão de CCDRU coletiva garante segurança fundiária às famílias beneficiadas e impede sua transformação em título de propriedade, seja ele individual ou coletivo. A assinatura deste contrato faz-se essencial para que o acesso à terra seja de fato proporcionado a essas famílias e garante autonomia no uso dos recursos naturais, uma vez que “o CCDRU tem o mesmo valor dos outros documentos de titulação concedidos pelo INCRA para efeito de acesso aos créditos instalação do PNRA e aqueles decorrentes do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf”[10].
A falta de agilidade na entrega do CCDRU está intrinsecamente relacionada ao caos fundiário nas áreas de assentamentos. Neste contexto, é importante mencionar o PAE Lago Grande, oficialmente instituído por meio da portaria INCRA/SR 30/ n° 31, que sofreu grande pressão por parte do INCRA para que as famílias beneficiadas celebrassem contrato individual. Ou seja, o instituto tencionava substituir o CDRU coletivo pelo CCU familiar, de modo que o assentamento perdesse o caráter coletivo, estimulando assim a venda da terra e, consequentemente, a desestruturação de sua dinâmica social[11].
Lembremos que os projetos de assentamentos ambientalmente sustentáveis (PAE, PDS e PAF) não foram pensados como algo provisório, mas como um instrumento jurídico para assegurar os direitos territoriais das comunidades tradicionais, e por isso não se enquadram como assentamentos com lotes individuais, mas como espaço coletivo.
O reconhecimento do apossamento das comunidades tradicionais se estabelece como condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão sustentável da terra e do meio ambiente. Por isso, a forma peculiar de regularização forjada pelos assentamentos ambientalmente diferenciados deve ser respeitada. Aqui, não apenas os novos reconhecimentos de territórios tradicionais estão em questionamento, mas também os já demarcados, impactados com a emissão de contratos individuais, em claro desrespeito à autonomia das populações tradicionais em reconhecer seus espaços como lugar de ação coletiva, expondo-os à pressão especulativa do mercado de terras.
Acesse o Webdossiê Flexibilização da Legislação Socioambiental Brasileira - 3ª edição na íntegra
[1] BRASIL. Lei nº 13.465, de 11 de julho de 2017. Dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2017].
[2] SAUER, Sérgio; LEITE, Acácio Z. Medida Provisória 759: descaminhos da reforma agrária e legalização da grilagem de terras no Brasil. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 20, p. 14-40, 2017.
[3] BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Titula Brasil. INCRA, [on-line], [20--]. Disponível em <https://www.gov.br/incra/pt-br/titulabrasil>. Acesso em: 19 out. 2021.
[4] Idem.
[5] O objetivo da Lei 11.952/2009 é assegurar a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. A Lei nº 13.465/2017 modifica a Lei 11.952/2009 e tem como escopo a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal; institui mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União.
[6] SAUER, Sérgio; LEITE, Acácio Z. Medida Provisória 759: descaminhos da reforma agrária e legalização da grilagem de terras no Brasil. Retratos de Assentamentos, Araraquara, v. 20, p. 14-40, 2017, p. 17.
[7] ROCHA, Ana. Luisa Santos. Populações Tradicionais: Avanços constitucionais x dia-a-dia marcado pelo conflito. In: CAMPELLO, Livia Gaigher Bosio; PADILHA, Norma Sueli; MELEU, Marcelino. (Org.). Direito ambiental e socioambientalismo I. Florianópolis: CONPEDI, 2015. p. 533.
[8] A posse agroecológica desenvolvida pelas comunidades tradicionais em suas relações com solo e os recursos naturais pode ser dividida em três espaços ecológicos e sociais distintos, interligados entre si e onde essas comunidades desenvolvem suas formas particulares de vida: a casa, a roça e a mata (no espaço geográfico “mata” estão incluídos também os rios, igarapés, lagos e campos naturais). Nesses espaços, eles exercem atividades familiares e coletivas, as áreas de apropriação familiar e as de uso comum. Para mais informações ver: BENATTI, José Heder. Posse agroecológica & manejo florestal. Curitiba: Juruá Editora, 2003.
[9] Esses dados foram obtidos a partir do quadro geral de criação dos assentamentos do INCRA: BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projetos de Reforma Agrária Conforme Fases de Implementação (1900-2021). Brasília, DF: MAPA, 2021. Disponível em: <tinyurl.com/4c2z5b46>. Acesso em: 20 set. 2021.
[10] BRASIL. Norma de Execução DD/INCRA nº 93, de 19 de julho de 2010. Dispõe sobre a aprovação de modelos de contrato de concessão de direito real de uso para os projetos de assentamento ambientalmente diferenciados - Projeto de Assentamento Agroextrativista - PAE, Projeto de Desenvolvimento Sustentável - PDS e Projeto de Assentamento Florestal - PAF. Brasília, DF: INCRA, [2010]. Art. 11º.
[11] MÁXIMO, Paula. Lei 13.465/17, Privatização de Terras Públicas e Coletivas na Amazônia Legal e o Projeto de Assentamento Agroextrativista da Gleba Lago Grande (Santarém - Pa). Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente - PUC-Rio, [on-line], 2019. Disponível em: <tinyurl.com/2dxssr4s>. Acesso em: 4 ago. 2021.