Aspectos institucionais e políticos da governança digital no Brasil

Análise

 

Cadeado sobre teclado de computador

I – As características sociais do mercado digital no Brasil

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística divulgou em agosto de 2020 os dados sobre a população brasileira; somos 211,8 milhões de habitantes de 5.570 municípios distribuídos em 26 estados e distrito federal, do que emergem complexidades e perplexidades que desafiam o pleno exercício de direitos de diversos segmentos da sociedade, especialmente em virtude das dimensões continentais do Brasil e da extrema desigualdade social não só entre classes sociais, mas também entre as regiões do país, o que implica em um significativo e desafiador fosso digital entre os mais ricos e os mais pobres.

De acordo com o ranking mundial de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas (ONU) divulgado em dezembro de 2020, de 2016 para cá o Brasil passou da 79ª para a 84ª posição, entre 189 países avaliados, sendo a queda atribuída a falta de avanços na educação, com alertas para a grande desigualdade de renda e de gênero.

O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) informa que a parcela de 1% dos mais ricos da população brasileira detém 28,3% da renda, enquanto os 10% mais ricos possuem 42,5%. Já os 40% mais pobres detêm 10,4% da renda brasileira.

Essa desigualdade gritante se acentuou com o cenário da pandemia da COVID-19, principalmente no setor da educação, pois o ensino na realidade do isolamento social demandou maior acesso a infraestrutura de telecomunicações, a serviços de acesso a Internet e a serviços digitais tanto públicos quanto privados, o que falta para os mais pobres das periferias das grandes cidades como São Paulo e nas localidades mais pobres das regiões norte e nordeste do país.

II – O cenário do mercado digital no Brasil

Esses números, no cenário estabelecido já há mais de duas décadas da economia e da administração pública cada vez mais estruturadas sobre a lógica do big data e do crescimento acelerado do uso da Internet, bem como pela digitalização dos meios de fornecimento de produtos e prestação de serviços, tanto pela iniciativa privada quanto por órgãos públicos, impõem políticas públicas eficientes voltadas para o desenvolvimento de mecanismos de governança capazes de acomodar uma enorme gama de interesses e direitos sociais, econômicos e culturais, de modo que se possa garantir a manutenção das conquistas democráticas e civilizatórias alcançadas a partir do processo de redemocratização do país, que se deu a partir de 1985.

Na era da Sociedade da Informação, assim denominada por Manuel Castells[1], o uso intensivo de dados pessoais de consumidores e cidadãos e a disputa acirrada entre gigantes econômicos transnacionais pela atenção dos usuários das redes para direcionar a venda de produtos e serviços digitais, potencializam os riscos de danos à direitos da personalidade em escala individual, coletiva e difusa, fragilizando também estruturas institucionais que deveriam funcionar em harmonia com as bases do Estado de Direito estabelecidas para sustentar a democracia.

A despeito de o Brasil sofrer com entraves decorrentes da insuficiência de infraestrutura de telecomunicações que dá suporte ao acesso a Internet e barreiras burocráticas para o desenvolvimento pleno do crescimento dos mercados digitais, o país ainda representa ambiente economicamente relevante e que tem atraído investimentos[2]. O Brasil é o terceiro mercado do Facebook, o quinto do Google e, mesmo com muitas incertezas, a Amazon passou a realizar investimentos fortes no país a partir de 2019. O Brasil tem tido um crescimento bastante significativo do e-commerce, principalmente em virtude da pandemia da COVID-19 e das políticas de isolamento social, beneficiando largamente empresas como a Microsoft, a Apple e Amazon, assim como os serviços educacionais da Google, gerando também crescimento do comércio pela web realizadopor empresas nacionais.

Serviços públicos digitais também vem crescendo significativamente no país, na esfera Federal, Estadual e Municipal, com o uso cada vez mais intenso de dados pessoais para análise de big data, como mostram os dados da pesquisa TIC Governo Eletrônico de 2019, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br)[3]

III – Aspectos institucionais da governança da Internet e governança digital

III.1 – O Comitê Gestor da Internet no Brasil

Para entender como os direitos envolvidos pela exploração das novas tecnologias da informação para a prestação de serviços públicos e privados afetam cidadãos e consumidores, é importante resgatar aspectos institucionais relevantes desenvolvidos especialmente a partir de 1995 no Brasil, voltados para a governança da Internet e, a partir de 2016, voltados mais especificamente para a governança digital, regulando atividades da administração pública relacionadas ao uso e compartilhamento de bancos de dados para o desenvolvimento de políticas públicas, assim como os desdobramentos decorrentes da falta de implementação ou implementação comprometida e prejudicada por aspectos de natureza política e conjunturais ocorridos a partir de 2016, com a quebra de preceitos estabelecidos com o pacto constitucional de 1988.

Nesse sentido, é fundamental abordar a edição da Portaria Interministerial nº 147, de 31 de maio de 1995  – pelos Ministérios das Comunicações e da Ciência, Tecnologia e Inovações, por meio da qual se instituiu o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) – organismo multissetorial, com representação de membros do governo, da academia, do setor empresarial e do terceiro setor, que recebeu como atribuições acompanhar a disponibilização de serviços de Internet no país; estabelecer recomendações relativas a estratégia de implantação e interconexão de redes, análise e seleção de opções tecnológicas, e papéis funcionais de empresas, instituições de educação, pesquisa e desenvolvimento; emissão de pareceres sobre a aplicabilidade de tarifa especial de telecomunicações; recomendação de padrões, procedimentos técnicos e operacionais e código de ética de uso, para todos os serviços Internet no Brasil; coordenação da designação de endereços IP (Internet Protocol) e o registro de nomes de domínios; recomendação de procedimentos operacionais de gerência de redes; coleta, organização e disseminação de informações sobre o serviço Internet no Brasil, entre outras.

Na mesma data os mesmos ministérios editaram a Portaria nº 148, de 31 de maio de 1995, que instituiu a Norma nº 4, vigente até hoje, com as diretrizes regulatórias para o uso das redes públicas de telecomunicações para dar suporte ao serviço de conexão a Internet.

Em 2003, depois de eleito o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o CGI.br, ganhou peso institucional com a edição do Decreto 4.829, de 3 de setembro de 2003, que aperfeiçoou o modelo de representação dos segmentos governamentais e da sociedade civil no Comitê e acrescentou atribuições relativas à governança da Internet no Brasil. Essas normas foram decisivas para a evolução da governança da Internet no país, com influências importantes para a edição da Lei 12.965/2014 – o Marco Civil da Internet (MCI), que é uma referência internacional –, e da Lei 13.709/2018 – a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).

Entre as mais importantes contribuições do CGI.br para a governança da Internet está a edição em 2009 do Decálogo de Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil, estando entre eles o reconhecimento do caráter universal do acesso a Internet, a liberdade, privacidade e direitos humanos, a diversidade, a neutralidade da rede, a inovação, a inimputabilidade da rede, a funcionalidade, segurança e estabilidade, padronização e interoperabilidade, o ambiente legal e regulatório e a governança democrática e colaborativa[4]. O fato de esses princípios terem sido definidos sobre uma base de consenso num ambiente multistakeholder foi determinante para que todos tenham sido incorporados pelo processo legislativo de construção do Marco Civil da Internet e também parte deles pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei 13.709/2018.

Outra contribuição fundamental do CGI.br foi a organização do Encontro NetMundial[5] ocorrido em São Paulo, no Brasil, em abril de 2014, do qual participaram mais de 110 países. Isto porque, considerando que a governança da Internet implica na coordenação de uma série de interesses, direitos, soberanias, num ecossistema complexo envolvendo agentes públicos e privados, nacionais e internacionais, foi fundamental o consenso obtido no NetMundial, que ficou expresso na Declaração de São Paulo[6] constituindo-se como o “resultado não vinculativo de um processo de baixo para cima, aberto e participativo que envolveu milhares de pessoas de governos, setor privado, sociedade civil, comunidades técnica e acadêmica de todo o mundo”.

O CGI.br teve papel de destaque na promoção do Encontro NETmundial, que foi o primeiro de seu tipo convocado para discutir dois aspectos importantes para a evolução do futuro Internet, de forma aberta e multissetorial: princípios para a governança da Internet; e um roteiro para a evolução futura do Ecossistema com vistas a viabilizar a governança, tendo como premissa o consenso para a definição de critérios comuns, seja nos espaços multissetoriais, seja nos espaços multilaterais e como finalidade garantir que a Internet se mantenha como “uma rede de redes globalmente coerente, interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um conjunto comum de identificadores únicos e que permita que datagramas e informação fluam livremente de ponta a ponta independentemente de seu conteúdo legal”, como ficou expresso na Declaração de São Paulo.

Fatores no campo da política nacional brasileira, ocorridos a partir de 2015 e que resultaram na corrosão das instituições democráticas culminando com o impeachment da então Presidenta eleita Dilma Rousseff, levaram ao Poder Executivo Michel Temer, ligado a forças políticas retrógradas e que de imediato alteraram a representação governamental no CGI.br, que passou a atuar para reduzir o protagonismo do comitê nas esferas legislativas e regulatórias.

Posteriormente, com a eleição do Presidente ex militar Jair Bolsonaro, comprometido com forças conservadoras e anti-democráticas, espaços institucionais de representação social como conselhos relacionados à esfera federal do poder, instituídos nos governos Lula e Dilma, só não foram extintos por meio de Decreto, em virtude de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em ação judicial promovida pelo Partido dos Trabalhadores[7].

A despeito da decisão do STF, o certo é que o atual governo vem atuando para desarticular os conselhos representativos, tendo influência determinante também na representação governamental no CGI.br, que hoje tem na coordenação um militar pouco afeito à cultura da Internet e ao papel decisivo que o CGI.br por muitos anos veio desempenhado tanto no campo legislativo e regulatório nacional, quanto nos espaços multissetoriais e multilaterais de governança da Internet.

III.2 – As Políticas Públicas de Governança Digital no Brasil

III.2.a – Plataforma de Cidadania Digital

No campo da governança digital, os atos do governo federal têm sido erráticos.  Isto porque editam-se normas para definir uma base regulatória para estruturar a governança digital; porém a implementação dessas normas tem sido negligenciada ou mesmo desrespeitada abertamente por organismos da administração pública. Um exemplo disto é o Decreto 8.936/2016, por meio do qual foi instituída a Plataforma de Cidadania Digital, dispondo sobre a oferta dos serviços públicos digitais, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta. O objetivo da plataforma é ampliar e simplificar o acesso aos serviços públicos digitais, sem precisar de deslocamento, passar tempo em filas ou ter de autenticar documentos.

Mais de 1.250 serviços públicos federais já foram integrados à plataforma, dos quais mais de 40% são totalmente digitais, em que a prestação do serviço ocorre por meio eletrônico, sem a necessidade de atendimento presencial.

Entretanto, os problemas de acesso a Internet que o Brasil enfrenta, especialmente para os cidadãos de baixa renda e para as localidades e municípios mais pobres, reduzem a efetividade desta política pública, como se pode constatar pelo gráfico abaixo.

Para maior eficiência seria importante que as políticas públicas de governança digital estivessem integradas com as políticas de ampliação de infraestrutura de telecomunicações para dar suporte aos serviços de conexão a Internet; mas não é o que tem acontecido no Brasil e, como resultado, tem-se deixado de lado a maior parcela da população brasileira, que se concentra nas classes C, D e E.

Ou seja, a despeito da existência de normas voltadas para ampliar o acesso a serviços públicos digitais, o certo é que a ineficiência regulatória por parte dos Ministérios das Comunicações, do Planejamento, da Ciência, Tecnologia e Inovação, bem como da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) para estimular novos investimentos em redes de alta capacidade, aptas a criar condições de ampliação do acesso ao serviço de conexão a Internet, termina por impactar negativamente a efetividade das políticas de governança digital tanto na esfera federal, quanto nas esferas estaduais e municipais.

Esse quadro tem como resultado o acirramento do fosso social e da desigualdade entre cidadãos de alta e de baixa renda, comprometendo o exercício da cidadania como decorrência do acesso restrito a serviços públicos, como se pode concluir do gráfico abaixo[8]:

Gráfico de barras mostrando a quantidade de usuários de internet que utilizaram governo eletrônico nos últimos 12 meses, por área, faixa etária, grau de instrução e classe (2019)
Fonte: TIC DOMICÍLIOS – Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros – 2019. CGI.br – CETIC.br https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20201123121817/tic_dom_2019_l…

 

III.2.b – A Estratégia de Governo Digital e a Autoridade Nacional de Proteção de dados pessoais

O Governo Federal editou em abril de 2020 o Decreto nº 10.332/2020, estabelecendo a “Estratégia de Governo Digital para o período de 2020 a 2022, no âmbito dos órgãos e das entidades da administração pública federal”, que contará com um Comitê de Governança Digital formado por representantes exclusivamente do governo, sem nenhuma participação da sociedade civil, o que por si só já implica no risco de baixa efetividade deste plano, tendo em vista  a já mencionada enorme diversidade socioeconômica que marca as regiões do país, assim como os direitos impactados pela não implementação dessas políticas públicas.

As políticas públicas estabelecidas com os decretos referidos também ficam comprometidas por conta da forma como foi instituída a Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), bem como do ritmo lento de implementação deste órgão, criado para regular e fiscalizar os direitos estabelecidos com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei 10.309, de agosto de 2018, que entrou em vigor em setembro de 2020, sem que a agência esteja estruturada e sem que até agora tenha editado qualquer regulamento para viabilizar a aplicação plena da lei ou tenha atuado para evitar desrespeitos aos direitos dos titulares dos dados pessoais[9].

Isto porque a ANPD, ao invés de se constituir como autarquia com autonomia administrativa e independência política, como ocorre nos países democráticos, por força das Medidas Provisórias 869/2018 e 870/2019, esta convertida na Lei 13.844/2019, passou a integrar a estrutura institucional da Presidência da República, com interferências do Gabinete de Segurança Institucional para a definição dos termos do regimento interno da entidade. Ou seja, órgãos públicos que também estão sujeitos ao cumprimento da LGPD e ao poder regulatório e fiscalizatório da ANPD, estarão praticamente no comando da entidade, configurando claro conflito de interesses.

Para piorar a situação, foram nomeados pela Presidência da República militares para a direção da ANPD com mandatos de 6 e 5 anos. Além disso, apesar de a ANPD contar com o Conselho Nacional de Proteção de Dados, órgão multissetorial com a participação do governo e da sociedade civil, o Presidente da República é quem definirá quais serão os representantes de cada segmento. Portanto, o baixo grau de autonomia e independência do organismo que atuará no papel regulador e fiscalizador da proteção da privacidade e dos dados pessoais, que está intrinsecamente relacionado com a segurança dos serviços prestados na Internet, seja pela iniciativa privada, seja pelos órgãos públicos, levam ao comprometimento grave das finalidades legais da ANPD.

Prova da falta de compromisso do atual governo com a privacidade e com a  proteção de dados pessoais é a edição do Decreto nº 10.046 de outubro de 2019, que unifica 51 bases de dados da administração pública federal com dispositivos que contrariam frontalmente os direitos estabelecidos com a LGPD, especialmente quanto a dados sensíveis como os dados biométricos e biográficos. Este conflito levou a que a Ordem dos Advogados do Brasil tenha apresentado ao Supremo Tribunal Federal no mês de dezembro de 2020 uma ação de inconstitucionalidade contra este Decreto, afirmando que a norma se configura como “ferramenta de vigilância estatal extremamente poderosa”.

II.2.c – As Estratégias Brasileiras de Segurança cibernética e de IA

Considerando que estamos tratando de governança digital, é imprescindível considerarmos todas as políticas públicas que envolvem o tratamento de dados. Nesse sentido, oportuno trazer à baila que o Governo editou o Decreto 10.222, em 5 de fevereiro de 2020, aprovando a Estratégia Nacional de Segurança Cibernética, com validade até 2023, cujo objetivo é definir as principais ações em termos nacionais e internacionais nesse campo. Já há análises consistentes[10] a respeito desta política pública, evidenciando o aspecto genérico do decreto, assim como inconsistências quanto à linguagem utilizada para se referir a segurança cibernética e digital, o que dificulta a integração do país no contexto de uma convergência global entre os sistemas de segurança de diversos países. Há críticas também quanto à inexistência de uma cultura jurídica específica e compartilhada entre os diversos órgãos da administração pública e ausência de uma articulação efetiva envolvendo todas as atividades públicas que lidam com dados privados e estratégicos.

Essas preocupações são ainda maiores no contexto político que o Brasil enfrenta hoje, com o exercício da administração pública federal extremamente militarizada – temos hoje mais de 6.500 militares ocupando cargos importantes do Poder Executivo – o que tem criado riscos graves às instituições democráticas conquistadas desde 1988 com a Constituição Federal Cidadã e que têm sido objeto de decisões do Supremo Tribunal Federal, que tem tido um papel importante no reconhecimento da proteção de dados pessoais e privacidade como um direito fundamental, mostrando que não há dicotomia entre interesse público e proteção de dados pessoais e que conflitos envolvendo estas duas vertentes devem ser resolvidos com base nos princípios do equilíbrio e da proporcionalidade[11].

Devemos também considerar os termos da Portaria nº 4.617, de 6 de abril de 2021, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações[12], que estabeleceu a Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA), tema extremamente sensível, tendo em vista os efeitos determinantes que essa nova tecnologia pode ter para o desenvolvimento da humanidade a depender de como venha a ser aplicada nos diversos âmbitos da personalidade e dos governos.

A preocupação se deve desde o modo como se deu a consulta pública para a edição dessa normativa, sem o envolvimento dos diversos segmentos da sociedade, sem subsídios com documentos que respaldassem o debate que pudesse capacitar a sociedade como um todo, reduzindo assimetrias de informação, sem debates presenciais, de modo que houve um desvirtuamento do processo e a redução do resultado das contribuições.

Um tema como este demandaria audiências públicas e o envolvimento com organismos como o CGI.br e centros universitários de pesquisa que pudessem ajudar a aprofundar o debate público. Ainda que várias entidades tenham contribuído, o fato é que o modo como o processo foi encaminhado, impediu que as contribuições pudessem de fato surtir efeitos; tanto assim que o documento sequer faz referência às contribuições recebidas.

A Portaria não passa de uma dissertação superficial a respeito do tema e, como está dito no próprio texto, trata-se de considerações a respeito de perspectivas futuras, apresentando um diagnóstico da situação atual da IA no mundo e no Brasil, destacando os desafios a serem enfrentados; oferece uma visão de futuro; e apresenta um conjunto de ações estratégicas para os nove eixos temáticos caracterizados como os pilares do documento, sem, porém, definir atribuições e cronograma.Como um instrumento norteador do Estado brasileiro para a utilização da tecnologia com vistas a promover o avanço científico e solucionar problemas concretos do País, bem como seu uso consciente e ético.

Ou seja, o documento carece de substância. Se o próprio documento reconhece a necessidade de se proteger dados pessoais, desenvolver mecanismos para evitar viés e discriminação na aplicação de sistemas algorítmicos associados a IA, seria fundamental que estabelecesse mecanismos de articulação com a ANPD, CGI e Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor (SENACON); mas não há atribuição de competências para o desenvolvimento das ações que indica como necessárias.

A edição da Portaria sobre IA mais parece o cumprimento de um dos requisitos formais exigidos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que prevê como necessária esta etapa institucional para habilitar os países para fazerem parte do "clube", como pretende o Brasil.

III – A supervisão das políticas públicas de governança da Internet e governança digital

No Brasil o Tribunal de Contas da União (TCU) – órgão de assessoramento do parlamento brasileiro –, tem entre suas atribuições a supervisão da atuação de órgãos da administração pública federal e das políticas públicas desenvolvidas por estes órgãos, bem como da eficiência dessas atividades de modo a contribuir para o desenvolvimento do país.

Com este propósito o TCU realiza auditorias e julgamentos, com foco na eficiência ou não nas etapas de planejamento, coordenação entre organismos envolvidos, dada a transversalidade de muitas das políticas públicas que serão enfocadas, gestão de riscos e segurança, transparência e accountability. Foi com esse objetivo que o TCU realizou levantamento sobre as políticas públicas relacionadas ao governo digital tendo concluído que, apesar de haver “consistência interna na lógica de intervenção da política pública: há encadeamento entre recursos, ações, produtos e efeitos; o público-alvo foi precisamente delimitado; o planejamento identificou e estabeleceu os resultados esperados pela política; (...) No entanto, não foi explicitado o estágio de referência inicial; não há cronograma atualizado, detalhando os marcos e prazos para a realização das etapas intermediárias; não foram previstos meios de controle ainda na fase de planejamento; e as partes interessadas e os atores responsáveis pela execução da política não possuem pleno conhecimento de suas atribuições. No tocante aos objetivos, embora as diretrizes estratégicas de governo que norteiam a política existam, (...) não há uma visão estratégica de longo prazo. Além disso, não foram identificadas as competências próprias de cada ator nem realizados estudos para a definição dos objetivos da política”[13].

O TCU aponta a necessidade de se implementarem medidas que proporcionem a disponibilização em formato aberto, com o objetivo de se viabilizar a utilização direta e compartilhada de dados de interesse público, de maneira que a sociedade civil possa realizar o controle social, garantido constitucionalmente, sobre as políticas públicas.

O quadro indicado pelo TCU é o resultado da conjuntura política que o país enfrenta desde 2016, com um retrocesso significativo quanto às conquistas democráticas construídas a partir de 1985 – quando o país entrou na fase de redemocratização depois de mais de 20 anos de ditadura militar.

As garantias de direitos fundamentais e sociais que ficaram expressas na Constituição Federal de 1988, vêm sendo descumpridas com resultados catastróficos no campo econômico, social e cultural, como tem sido constatado pelos organismos oficiais de pesquisa e afetam negativamente também as políticas públicas de governança digital, como está oficialmente constatado pelo TCU.

IV – Efeitos adversos decorrentes da insuficiência dos mecanismos de governança digital

O relaxamento quanto às garantias constitucionais de direitos fundamentais e dos direitos expressos no Código de Defesa do Consumidor e no Marco Civil da Internet, que está relacionado a uma baixa valorização das políticas públicas de governança da Internet e de governança digital, revela a insuficiência de compromisso dos atuais agentes governamentais com esses temas, trazendo resultados adversos e que têm contribuído para o enfraquecimento das instituições democráticas do país, bem como para o crescimento da desigualdade social. Há recentes e graves acidentes de segurança de dados, revelando a atuação ineficiente da administração pública no tratamento de volumosos dados pessoais sensíveis.

Nos últimos dias de 2020 ocorreram dois eventos de vazamentos de dados pelo Ministério da Saúde. O primeiro vazamento foi causado pela exposição indevida de login e senha de acesso ao sistema do Ministério, que expôs 16 milhões de cidadãos que foram acometidos pela Covid-19. Em janeiro de 2021 foi revelado um megavazamento de 223 milhões de dados pessoais (entre eles pessoas já mortas), sem que até agora – abril do mesmo ano – as autoridades tenham conseguido apurar a origem dos dados, sendo que os indícios levam a crer que a violação tenha ocorrido em base de dados pública[14].

Para além dos eventos de vazamento, têm ocorrido também o uso de dados pessoais por órgãos de segurança da Presidência da República e dos Ministérios das Comunicações e da Justiça para a elaboração de relatórios que identificam jornalistas, comunicadores, intelectuais e funcionários públicos como apoiadores ou detratores do governo[15] ou integrantes de movimentos anti-facistas[16]. O uso indevido de dados pessoais tem ocorrido fartamente também por grupos organizados para a promoção de campanhas de desinformação e discursos de ódio nas plataformas privadas de aplicações na Internet, causando prejuízos de larga escala no campo das eleições, como tem sido apurado pela Justiça Eleitoral e Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as fake news, que tramita no Congresso Nacional desde 2019.

 

Vale destacar que todos esses eventos podem ser considerados graves e ilegais, tendo em vista garantias estabelecidas no ordenamento jurídico do país. Entretanto os mecanismos de governança digital encarregados de fazer valer as leis que tratam desses temas têm sido negligenciados, expondo a vulnerabilidade inaceitável dos cidadãos brasileiros nas relações que mantêm seja com os poderes públicos seja com empresas privadas que exploram atividade econômica na Internet.

 

 

V – Aspectos críticos do arranjo institucional brasileiro para a governança digital

A constatação dos problemas indicados pelo TCU e revelados pelos acidentes de vazamento e ilegalidades no uso de dados pessoais por órgãos públicos e empresas privadas, demonstram que existem aspectos críticos da governança digital que precisam ser enfrentados com urgência, diante da aceleração do uso da Inteligência Artificial associada ao Big Data utilizados pelos setores públicos e privados e que têm revertido no que Shoshana Zuboff denomina de Capitalismo de Vigilância[17].

Com o objetivo de propor diretrizes institucionais e de organização política com vistas ao envolvimento da sociedade civil e suas entidades representativas para o fortalecimento de uma rede transversal de sustentação dos direitos fundamentais como base democrática das políticas públicas, faz-se fundamental que o Governo se comprometa com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) à qual o Brasil aderiu[18] e que traz objetivos diretamente relacionados com a Governança Digital, entre eles especialmente o Objetivo 16 que inclui “instituições fortes”.

A obra de Cathy O’Neil[19] mostra a importância da organização social e política da sociedade para enfrentar os riscos que as novas tecnologias baseadas em modelos algorítmicos e big data, voltadas para orientar processos decisórios no âmbito público e privado, que “não tratam apenas de logísticas, lucros e eficiência”, mas que são também “fundamentalmente morais”, com efeitos determinantes para conquistas civilizatórias no campo dos direitos humanos.

Se no começo da ampliação do acesso a Internet havia a esperança de que as novas tecnologias da informação contribuiriam para o aperfeiçoamento da democracia, hoje já é incontestável o fato de que o espaço público da Internet tem sido apropriado por interesses privados monopolistas globais, que terminam por promover através de seus sistemas algorítmicos resultados enviesados, privilegiando ideologias hegemônicas em detrimento da diversidade, como bem destacado por Luiz Valério Trindade, ao tratar das Mídias Sociais e a Naturalização de Discursos Racistas no Brasil[20].

É essa realidade que reforça a necessidade de que a Governança Digital se estabeleça sobre modelos multissetoriais e multidisciplinares, valorizando a participação e o controle social, de modo que os processos regulatórios sejam permeados pela mediação e consenso entre os diversos setores da sociedade, evitando-se a perpetuação de discriminações raciais, sociais e de diversidade sexual e de gênero, fortalecendo as instituições democráticas e o respeito aos direitos humanos fundamentais, bem como a confiança de consumidores e cidadãos nos processos de tratamento de dados, de modo que alcancemos desenvolvimento sustentável e ético.

 

[1] . O Poder da Comunicação, 2ª. Ed, Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz e Terra, 2017.

[2]. https://www.infomoney.com.br/economia/brasil-sobe-no-ranking-e-e-o-quarto-principal-destino-de-investimentos-no-mundo-em-2019/

“Segundo relatório divulgado hoje (20) pela Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o Brasil recebeu US$ 75 bilhões em investimentos externos no ano passado, contra US$ 60 bilhões em 2018.

Os três primeiros lugares do ranking de destino de investimentos ficaram com os Estados Unidos, com US$ 251 bilhões no ano passado; a China, com US$ 140 bilhões, e Cingapura, com US$ 110 bilhões. Os US$ 75 bilhões que chegaram ao Brasil equivalem a mais da metade dos US$ 119 bilhões que a América do Sul recebeu no ano passado.

[7] . Supremo suspende regra de decreto   presidencial que extingue conselhos federais previstos em lei https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=413987

[8] . TIC DOMICÍLIOS – Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros – 2019. CGI.br – CETIC.br https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20201123121817/tic_dom_2019_livro_eletronico.pdf

[10] .   Cibersegurança no Brasil: uma análise da estratégia nacional – Publicação do Instituto Igarapé de 15 de abril de 2021

 https://igarape.org.br/ciberseguranca-no-brasil-uma-analise-da-estrategia-nacional/

[11] . STF suspende compartilhamento de dados de usuários de telefônicas com IBGE

 http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=442902

[17] . O Big Other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização de informação, in Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. Organização Fernanda Bruno, Bruno Cardoso, Marta Kanashiro, Luciana Guilhon e Lucas Melgaço. São Paulo. Editora Boitempo. 2018.

[18] . A participação do Brasil na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável decorre da Resolução A/Res 70/1, de 25.09.2015, da Assembleia Geral das Nações Unidas

[19] . Algoritmos de destruição em massa. Como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. São Paulo. Editora Rua do Sabão. 2020.

[20] . Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: Olhares Afrodispóricos. Organização: Tarcízio Silva. São Paulo. Editora LiteraRua. 2020.