O conceito de desinformação enfatiza a produção de informações comprovadamente falsas ou enganadoras. Elas seriam criadas e divulgadas visando vantagens econômicas ou políticas, com a intenção deliberada de enganar a população. Essa definição tem um ponto fraco: ela assume que as pessoas estão sendo enganadas e por isso não confiam nas instituições. A desinformação estaria minando a confiança nas instituições e nos meios de comunicação tradicionais.
Essa relação, porém, é mais complexa. Vivemos uma crise de confiança que atinge em cheio as instituições. Até a ciência é afetada, como vemos agora na pandemia do novo coronavírus, em que surgem contestações a protocolos científicos em países como Estados Unidos, Brasil e França. A ascensão da extrema-direita expressa uma onda de negacionismos e movimentos anticiência que estão aparecendo como tragédia na pandemia.
Após a crise pandémica do COVID-19, será ainda mais urgente mobilizar mais gente contra o colapso climático. Mas diante do quadro de negação que nos assola não será suficiente invocar o consenso científico sobre mudanças climáticas provocadas pelo homem. Depois de décadas pesquisando e participando ativamente da costura de acordos internacionais pelo clima, é preocupante que a causa ambiental não seja popular no Brasil. Culpar os atuais governantes e a desinformação não basta. O desinteresse de governos, mesmo progressistas, em relação ao tema reflete a indiferença da maior parte da população, confirmada pela total ausência de debate ambiental nas campanhas eleitorais. No governo atual, porém, a situação está piorando, tendo o negacionismo como instrumento de uma gestão criminosa da área ambiental.
Negacionismo ambiental
Durante a campanha eleitoral, Jair Bolsonaro ameaçou tirar o Brasil do Acordo de Paris, a exemplo de seu ídolo, Donald Trump. Desde então, vem instrumentalizando o temor infundado de internacionalização da Amazônia. O presidente voltou atrás dessa decisão, mas nomeou Ricardo Salles ministro do Meio Ambiente, alguém que flerta com think tanks negacionistas, e um chanceler que considera o aquecimento global um complô de inspiração marxista. Em vídeo de uma reunião ministerial,[1] Salles disse textualmente que o governo deve aproveitar a pandemia para aprovar desregulamentações ambientais.
No Brasil, fica cada vez mais evidente que a ascensão da extrema direita tem relação direta com o negacionismo climático, alçado à política de Estado por Bolsonaro. Sabemos que existe uma ação concertada de organizações negacionistas para contestar verdades produzidas pela ciência do clima: os “mercadores da dúvida”, que começaram a agir nos anos 1990.[2] Como era impossível negar o aquecimento global antrópico, a única saída era travesti-lo de controvérsia. Usavam, ainda, um argumento similar ao que tem sido defendido pelo governo Bolsonaro: sob o disfarce das causas verdes, haveria um complô internacional para diminuir a liberdade de escolha dos cidadãos e o poder de empresas que beneficiam o povo (pois produzem riquezas e geram empregos) e garantem a soberania do país.
Se em países como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido o negacionismo climático é alimentado por agentes financiados pela indústria dos combustíveis fósseis, no Brasil é principalmente o agronegócio que ajuda a disseminar as contestações aos dados ambientais. Trata-se justamente do setor econômico que mais contribui para o aquecimento global em nosso país.
Em agosto de 2018, o presidente Jair Bolsonaro pediu a cabeça de Ricardo Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por divulgar dados corretos sobre a explosão do desmatamento na Amazônia. Em 2019, parlamentares da base de apoio de Bolsonaro convidaram Luiz Carlos Molion, meteorologista aposentado da Universidade Federal de Alagoas e um dos mais conhecidos negacionistas brasileiros, para uma série de palestras sobre Amazônia. Molion se vale de mentiras há muito desacreditadas pela ciência do clima, sempre amparadas por gráficos e jargões técnicos. Os parlamentares são os mesmos que defendem um projeto de lei para acabar com a reserva legal prevista no Código Florestal – a área das propriedades rurais que os produtores são obrigados a manter preservada.
O agrônomo Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa,[3] conseguiu espalhar, por meio dos canais oficiais do órgão e das redes sociais, o argumento falso de que a extensão da floresta deixa pouco espaço para a agropecuária. Segundo ele, unidades de conservação, áreas indígenas, assentamentos de reforma agrária e florestas preservadas em imóveis rurais inviabilizariam o desenvolvimento nacional. Além disso, pitadas conspiratórias tornam seu argumento sedutor: a agenda ambiental vigente seria parte de um plano de países desenvolvidos para expandir suas próprias economias agrícolas, bloqueando o potencial competitivo do Brasil nesse setor. As inverdades na argumentação de Miranda já foram amplamente denunciadas (pelo Observatório do Clima no vídeo “Fatos Florestais”).[4] Ainda assim, ele se mantém bastante influente no governo.
É preocupante que um governo mentiroso a tal ponto conte com apoio razoável da população. Mesmo que uma gestão catastrófica da pandemia venha minando lentamente a popularidade de Bolsonaro, precisamos entender as razões que o fizeram ganhar as eleições e manter um apoio considerável. Apontar a ignorância é um equívoco, pois o presidente mantém apoio significativo entre os grupos mais escolarizados. Uma pesquisa do Datafolha,[5] divulgada em dezembro de 2019, mostra que o Meio Ambiente, mesmo já desmontando nossa infraestrutura de proteção ambiental, era considerado ótimo ou bom por 27 por cento dos entrevistados, e regular por 38 por cento. Os números são altos, principalmente depois das queimadas na Amazônia e do vazamento de óleo em nossa costa, sem nenhum plano de contenção à altura.
Crise de confiança
O negacionismo frutifica em um tecido social desgastado pela descrença da população nas instituições. A engenhosidade da extrema direita foi vampirizar essa desconfiança para legitimar governantes com posições anticientíficas e inserir o negacionismo na máquina estatal.
A pesquisa do Wellcome Global Monitor, um levantamento britânico de 2018, já alertava para uma crise de confiança na ciência. No grupo em que o Brasil se enquadra –o de países com renda de média para alta– 54 por cento dos habitantes confiam apenas medianamente na ciência.[6] Há uma correlação nítida entre a desconfiança na ciência e o descrédito de outras instituições: quem duvida do conhecimento científico geralmente desconfia também dos governos, das forças armadas ou da justiça. Esse sentimento é coerente com uma contestação mais geral ao establishment –ao sistema político e às instituições– que vem crescendo no país e ajudou a eleger Bolsonaro. Além disso, pesa bastante o modo como a população percebe o impacto dos resultados científicos em sua vida cotidiana. No Brasil, o grupo dos que acham que a ciência não o beneficia pessoalmente (nem beneficia a maioria da sociedade) representa 23 por cento da população. Um resultado alarmante, em sintonia com a média das Américas do Sul e Central, e que independente da faixa de renda. O fundamentalismo religioso tem se expandido, mas não explica o fenômeno. A importância crescente da religião na vida cotidiana deve-se ao vácuo deixado pelas instituições e pelo Estado. Muita gente tem somente a igreja como apoio material, moral e quotidiano para suas angústias com a falta de trabalho, de renda, de cuidados básicos com sua saúde geral e, principalmente, com a ausência de perspectivas de futuro.
A pesquisa do Wellcome Global Monitor mostrou ainda que um terço dos brasileiros não confia muito nos funcionários das organizações não governamentais, sendo que quase metade da população confia apenas em alguns deles. Isso influencia diretamente as políticas para a Amazônia, pois Bolsonaro e seus ministros vêm atacando frontalmente as ONGs, principalmente as que atuam na área ambiental. Eles chegam a insinuar que estariam por trás das queimadas na Amazônia ou do derramamento de óleo que atingiu as praias do Nordeste.[7] A desconfiança nas ONGs ajuda a entender por que essas alegações sem fundamento não geram reação ou chegam a ser aceitas por uma parte considerável da população.
A soberania sobre a Amazônia dialoga com uma tradição nacionalista brasileira, o que facilita a adesão ao discurso conspiratório. As ONGs são vistas como mecanismos internacionais para intervir em assuntos internos. Por outro lado, as pessoas não enxergam as vantagens econômicas do discurso de preservação ambiental em suas vidas. De fato, é complexo convencer as pessoas de que o modelo extrativista irá, na verdade, empobrecer os brasileiros, desprovendo-os de suas riquezas naturais. Benefícios intangíveis parecem abstratos demais para uma população que sofre quotidianamente com a falta de acesso a renda e a políticas básicas de bem-estar. É assim que as pessoas interiorizam os discursos conspiratórios, esperando tirar alguma vantagem material ou moral. Essa interiorização garante liderança ao governo. Ou seja, as pessoas não são enganadas por informações falsas: elas são incitadas a ajudar na deslegitimação pública das instituições.
Por tudo isso, dois alertas são importantes. Primeiro, a agenda ambiental deve conseguir mobilizar mais gente, principalmente nas camadas mais vulneráveis, o que só será possível se apontar saídas para suas aflições no presente. Mudanças em hábitos de consumo e locomoção, padrões alimentares, novas perspectivas de trabalho ou de futuro para os filhos –essas pautas são centrais e se conectam a transformações políticas profundas. Segundo, medidas para evitar o colapso climático não podem se restringir a cúpulas de especialistas. Também não basta se apoiar em dados e no consenso científico. Atualmente, jornalistas, intelectuais, professores, experts, além de cientistas, têm sido questionados, dificultando sua atuação como mediadores entre o poder político e o público em geral. Isto porque, ao estabelecer uma relação cada vez mais direta com a população, o negacionismo tem deslegitimado o papel dos intermediários: cada vez mais lideranças desprovidas de qualquer credencial técnica ou acadêmica reivindicam autoridade para enunciar verdades, pois têm contato direto com o público pelas redes sociais. É assim que novos formadores de opinião conquistam milhões de seguidores e disputam a prerrogativa de influenciar o poder público. No Brasil, chegam a participar ativamente do governo. Esses novos líderes conquistam a confiança de parte da população, convencendo-a mais do que a constrangendo. Isso produz um descrédito dos profissionais da verdade, cujas afirmações costumavam ser legitimadas a priori, com base na autoridade para lidar com informações não acessíveis a todos.
Por todas essas razões, ultrapassar barreiras, convencer, conquistar e dialogar com quem tem estado apartado do debate público é condição para neutralizar o discurso negacionista. Para isso, devemos combater a tendência de manter a conversa apenas em nossas bolhas ou nichos de convertidos.
[1] CNN-Brasil: “STF divulga ÍNTEGRA do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril” (vídeo), YouTube, 22 de maio de 2020. Disponível em: https://youtu.be/TjndWfgiRQQ (Acesso: 23 de Abril de 2020).
[2] Oreskes, Naomi; Comway Erik M. (2010): Merchants of Doubt, New York, Bloomsbury Press.
[3]A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) é uma empresa de inovação tecnológica, focada na geração de conhecimento e tecnologia para agropecuária brasileira, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
[4] Observatório do Clima: “Fatos Florestais” (vídeo), 29 de abril de 2019. Disponível em: http://www.observatoriodoclima.eco.br/mitos-producao-conservacao-no-pais/ (Acesso: 23 de Abril de 2020).
[5] Globo: “Pesquisa Datafolha aponta Moro com aprovação de 53%, acima de Bolsonaro”, 9 de Dezembro de 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/12/09/pesquisa-datafolha-aponta-moro-com-aprovacao-de-53percent-acima-de-bolsonaro.ghtml (Acesso: 23 de Abril de 2020).
[6] Gallup (2019): Wellcome Global Monitor- First Wave Findings. How Does the World Feel about Science and Health? 2018. Disponível em: https://wellcome.ac.uk/sites/default/files/wellcome-global-monitor-2018.pdf (Acesso: 23 de Abril de 2020).
[7] Mazui, Guilherme: “Bolsonaro diz que ONGs podem estar por trás de queimadas na Amazônia para 'chamar atenção' contra o governo”, Globo, 21 de agosto de 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/21/bolsonaro-diz-que-ongs-podem-estar-por-tras-de-queimadas-na-amazonia-para-chamar-atencao-contra-o-governo.ghtml (Acesso: 23 de Abril de 2020).