Um caminho holístico para um problema complexo

"Levante a mão quem aqui acha que devemos reciclar mais!”. Assim a ativista Bea Johnson iniciou uma TEDx Talk que já alcançou mais de 200 mil visualizações no YouTube. Quase todos os participantes suspenderam as mãos, mas o pedido foi uma “pegadinha”. A ativista diz logo em seguida que discorda, no sentido de que apenas aumentando a reciclagem não resolveremos as questões do lixo, é preciso agregar mais estratégias. Diminuir a produção de plástico é uma delas. O movimento (e também o conceito) Lixo Zero vem ganhando força como uma saída inovadora que engloba um conjunto de ações para combater o desperdício e diminuir a produção de resíduos na origem.

Atividades desenvolvidas em diferentes níveis

A Zero Waste International Alliance explica o conceito Lixo Zero como uma meta ética, econômica, eficiente e visionária para guiar as pessoas a mudar seus modos de vidas e assim, incentivar os ciclos naturais sustentáveis, em que todos os materiais deverão ser projetados para permitir recuperação e uso pós-consumo. O conceito é abraçado pelo Instituto Lixo Zero Brasil, organização brasileira parte dessa Aliança, que inclui em sua abordagem o termo social, já que no ciclo dos resíduos há os catadores de material reciclável, pessoas que prestam valioso serviço para a sociedade e dependem dessa coleta para sobreviver. A incorporação da ideia de ética trata da responsabilidade pelo resíduo desde o design até o descarte. Lixo zero também é um estilo de vida no qual os cidadãos se importam com o resíduo pós consumo e modificam suas escolhas de compra. Há ainda uma sinergia com a Economia Circular, na qual os produtos seguem um design do Berço ao Berço. Os recursos são geridos em uma lógica circular de criação e reutilização constante, seguindo uma analogia com a própria natureza, que tem ciclos sem descarte.

Uma gestão baseada no lixo zero cria estratégias para que não seja gerado lixo, isto é: a mistura de resíduos orgânicos, recicláveis e rejeitos. As ações seguem uma trilha composta por cinco erres: repensar – refletir sobre as ações em relação ao lixo; reutilizar — roupas e objetos podem ser reutilizados antes de serem encaminhados para descarte; reduzir — gerar o mínimo de rejeitos possíveis; recusar; e reciclar — realizar processos de mudança ou tratamento para reutilização do bem, evitando de encaminhá-lo para aterros sanitários e incineração.

Estratégias de lixo zero não são apenas possíveis, como estão acontecendo em todo o mundo, em capitais, cidades pequenas, nos países do Norte e países em desenvolvimento. Na Europa já há quase 400 municípios que aderiram ao movimento. Um dos exemplos mais significativos e inspiradores é Capannori, com cerca de 40.000 habitantes, localizada na Itália, no norte da região Toscana, a primeira cidade europeia a criar uma política pública de Lixo Zero, em 2007.

A estratégia de Capannori tem uma abordagem holística, proativa e envolve os moradores em todos os estágios da política pública. Entre as ações estão incluídas a minuciosa separação de diferentes tipos de resíduos, incentivos econômicos para reduzir a produção de resíduos e um esforço coletivo para reduzir o que não é considerado lixo não-reciclável. Há lojas sem embalagem, fontes públicas de água, um centro para reunir doações de roupas com oficina de conserto. Fraldas laváveis são subsidiadas, e realizam-se desafios de Lixo Zero para engajar os cidadãos. Essas ações têm gerado resultados positivos: até 2013 a quantidade de resíduos gerados diminuiu 39%, de 1,92 kg para 1,18 kg por pessoa por dia. A taxa de lixo não reciclável por pessoa caiu de 340 kg por ano em 2006 para apenas 146 kg em 2011. No mesmo ano, cada pessoa na Dinamarca descartava, em média, 409 kg de resíduos.

No Brasil, em 2010, foi estabelecida a Política Nacional de Resíduos Sólidos, com o objetivo de reduzir a quantidade de resíduos encaminhada para aterros e lixões, além de depósitos irregulares. A legislação inclui a gestão de resíduos domiciliares, industriais, corrosivos e tóxicos, com exceção dos radioativos. A lei prevê ainda responsabilidade compartilhada pelos resíduos dos produtos, incluindo fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores. Mas dez anos depois, o Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU) mostrou que, dos 3.313 municípios analisados, 49,9% ainda enviam resíduos para lixões; 17,8 milhões de brasileiros não têm coleta de lixo em suas residências; apenas 3,8% dos resíduos são reciclados. Dessa forma, o Brasil ainda está longe de ter em seu território políticas de Lixo Zero em escala.

Por outro lado, o movimento Lixo Zero já existe no Brasil em muitas localidades e com uma concepção diferenciada de quase todo o resto do mundo, já que há a participação dos catadores. O Instituto Lixo Zero trabalha para desmistificar a ideia de que o Lixo Zero é uma utopia e mostra que essas estratégias são realidade em muitas cidades brasileiras, ou seja, existem caminhos.

A região Sul do Brasil se destaca nos melhores índices de destinação correta e reciclagem, segundo o ISLU 2020, e em ações de Lixo Zero. Florianópolis é a capital que mais recicla no País. Em 2018, a cidade criou o Programa Florianópolis Capital Lixo Zero (decreto municipal nº 18.646 ) com o objetivo de ser, até 2030, a primeira capital do Brasil considerada Lixo Zero, com reciclagem de 60% dos resíduos secos e 90% de orgânicos descartados. Segundo a prefeitura de Florianópolis, os materiais separados pelos cidadãos são doados para 14 associações de catadores, que fazem a triagem e destinação para empresas de reciclagem. Essa doação gera R$ 4,5 milhões por ano em renda para 842 pessoas direta e indiretamente na Grande Florianópolis.

A prefeitura de Florianópolis também tem investido na coleta de vidro com a criação de Pontos de entrega voluntária, e na coleta de orgânicos, pois estima-se que 50% do nosso lixo sejam de orgânicos, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. A coleta exclusiva de vidro por entrega voluntária aumentou 19% e a compostagem de orgânicos aumentou 135%, em 2019. No mesmo ano foi sancionada a lei 10.501 que determina que estabelecimentos comerciais, condomínios e prédios públicos devem separar os resíduos orgânicos e destiná-los para a compostagem.

A fim de evitar um oceano com mais plástico que peixes, o arquipélago de Fernando de Noronha, Patrimônio Natural Mundial da Unesco, é o primeiro território a banir o plástico descartável no Brasil. Em abril de 2019 passou a vigorar o decreto do “plástico zero” , que determina a proibição de entrada, comercialização e uso de recipientes e embalagens descartáveis de material plástico, como sacolas, canudos, garrafas e embalagens de isopor e garrafas PET, de até 500 ml, no Distrito Estadual de Fernando de Noronha. O decreto faz parte da política pública Noronha Plástico Zero , um conjunto de ações integradas de educação e comunicação que buscam sensibilizar, engajar e mobilizar moradores e turistas de Fernando de Noronha para o banimento do plástico.

Responsabilidades compartilhadas

Segundo dados da Administração do Distrito de 2018, Fernando de Noronha produz diariamente cerca de 14 toneladas de lixo, dos quais 20, 84% são recicláveis, 12,50% são produtos orgânicos e 67% são rejeitos. O que não pode ser aproveitados na ilha é enviado para o continente em uma viagem que acontece em média quatro vezes por mês e leva cerca de 40 horas . A missão do projeto é dividida em quatro campos: repensar, baseada nas atividades de um centro de engajamento; regenerar, conduzida por jovens locais, chamados de Agentes de Transformação; reutilizar, promovida por um Kit Reutilizável; e ressignificar, proposta do projeto Caminho do Vidro. A política pública foi desenvolvida com uma metodologia participativa que envolveu os moradores, a administração de Fernando de Noronha, o governo do estado de Pernambuco e a iniciativa privada. Os negócios de impacto, como Menos 1 Lixo e Iönica são desenvolvedores, além do Grupo Heineken, que é patrocinador. Assim, o projeto tem um financiamento híbrido que conta com a infraestrutura do Estado, financiamento privado e execução da comunicação e gestão pelo Menos um Lixo e Iönica. O Estado é anfitrião do território, realiza a administração pública e é responsável pela fiscalização. Segundo os idealizadores, trata-se de um projeto de inovação de política pública com recursos financeiros buscados na iniciativa privada, sem uso do orçamento público e com ações em consonância com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

As ações de comunicação se concentram no Centro de Engajamento, e há ações de porta em porta, nas quais os chamados Agentes de Transformação, formados pelo projeto, visitam casas e igrejas para coletar informações sobre o andamento das ações e tiram dúvidas. O decreto do plástico zero em Noronha prevê multas que podem chegar a seis salários mínimos e até cassação de alvará, no caso de estabelecimentos. Os valores variam de acordo com categorias do infrator, como, por exemplo, se este é morador ou visitante.

As estratégias de lixo zero consideradas bem-sucedidas engajam os consumidores em suas ações, mas isso não quer dizer que o problema do lixo se resuma a responsabilizar o consumidor pelo desperdício e o Estado pela má gestão dos resíduos. O setor privado escolhe os materiais de seus produtos e deve ser responsável pelos resíduos; já os cidadãos têm poder de escolha de compra e minimização da necessidade do descarte. Entre os muitos desafios, há a mudança de comportamento das indústrias, mas também há uma pressão crescente pela transparência, pela vontade de gestores públicos com modelos mentais inovadores e por consumidores que queiram justiça socioambiental.