Lutar, Criar, Reciclagem Popular

Em agosto de 2020, a lei brasileira da Política Nacional de Resíduos Sólidos completou 10 anos. Esse período foi significativo para que o país saísse de um limbo normativo sobre o gerenciamento dos resíduos sólidos, além de trazer esperança em relação à proteção do meio ambiente. Muito pode ser dito sobre esse período, especialmente no tocante ao não cumprimento da lei em todo o território brasileiro. No entanto, um ponto relevante da lei é o reconhecimento do trabalho de milhares de catadoras e catadores de materiais recicláveis, tratados legalmente como profissionais integrantes do sistema de gerenciamento dos resíduos sólidos.

Não é exagero dizer que os Catadores são verdadeiros alquimistas ao ressignificar a função dos resíduos sólidos, que até então eram tratados como “lixo”. Para os catadores, “lixo” não existe. Ao inventar uma profissão, a categoria mostra que seu papel social é complementar a economia e se insere em um contexto de necessidade da transição do modelo produtivo.

Existem cerca de 800 mil catadoras e catadores em atividade no Brasil, a maior parte nas ruas e nos lixões. Além disso, são cerca de 1.700 cooperativas e associações organizadas em todo o país repartindo de maneira igualitária o resultado da venda dos recicláveis entre seus membros. O cooperativismo não é apenas uma alternativa ao modelo capitalista de distribuição de riqueza, é um modelo de autogestão que coloca o bem-estar do trabalhador e da trabalhadora em primeiro plano.

Desde a aprovação da PNRS a categoria vem lentamente saindo da informalidade. Cerca de 100 mil catadoras e catadores estão hoje trabalhando formalizados, o que implica ter uma jornada de trabalho de oito horas diárias e seguridade social. No entanto, ainda são poucas as Prefeituras que pagam corretamente o serviço dos catadores e, portanto, cumprem a lei.

O funcionamento da cadeia produtiva da reciclagem é outro problema estrutural, pois está baseada na exploração da mão de obra precarizada dos catadores. O mercado atravessador trabalha na informalidade sonegando impostos e a alta tributação sobre a matéria prima da reciclagem a torna pouco competitiva frente a matéria prima de origem virgem, ou seja: é mais barato derrubar árvores, extrair petróleo ou minério do que reintroduzir um material na cadeia produtiva.

O valor da Reciclagem
Vivendo do lixo
Existe um amplo espectro de empreendimentos informais de coleta de lixo. Todos dependem do processamento e venda de resíduos como fonte básica de renda.

Os materiais plásticos representam 17% do total de resíduos processados pelas cooperativas e associações de catadores e 38% do valor comercializado em 2017 e 2018, atrás apenas dos papéis, segundo o Anuário da Reciclagem 2017-2018 . Apesar da cifra significativa, muitos plásticos colocados no mercado têm dificuldade para serem reciclados e acabam terminando em aterros ou lixões como rejeito. Entre os fatores está a falta de indústrias recicladoras em todo território nacional. No ano de 2018, a porcentagem do montante que organizações de catadores conseguiriam arrecadar pela reciclagem do plástico foram de 5% no norte, 9% no centro-oeste e 13% nordeste.

Algumas embalagens, apesar da indicação no rótulo de que são feitas de materiais recicláveis, na prática não conseguem ser recicladas. Isto porque não há um mercado comprador e indústrias de transformação para reintroduzir os resíduos na cadeia produtiva. Outras embalagens que têm comércio fácil nas regiões sul e sudeste, dificilmente serão comercializadas nas outras regiões, visto que em muitos casos o preço pago pelo resíduo não cobre o transporte até uma indústria recicladora. Há ainda as embalagens lançadas no mercado mas que ainda não têm tecnologia disponível para transformação: são produtos não-recicláveis e por isso não deveriam ser produzidos. Muito do que é classificado como rejeito são, na verdade, embalagens que não foram reintroduzidas na cadeia produtiva.

O marco dos 10 anos da PNRS também está impactado por grandes retrocessos. O Brasil corre o risco de ver inviabilizado o processo de edificação de uma economia circular, pelo lobby das empreiteiras de incineração de resíduos, que tiveram o processo de regulamentação facilitado no Governo Bolsonaro e despontam como prioridade na política pública para os resíduos – o que contraria o artigo da PNRS que impõe uma hierarquia de tratamento dos resíduos. Primeiro é preciso reduzir, reutilizar e reciclar. A queima dos materiais recicláveis prejudica o trabalho dos catadores, além de destruir matéria-prima.

Os catadores correm risco também com a uberização do trabalho, pois já existem dezenas de aplicativos que prometem ser uma solução para a reciclagem, mas que tem por pano de fundo o uso da mão de obra barata da categoria, sem direitos sociais e estimulando a dependência e o individualismo. São ferramentas tecnológicas que não consideram as décadas de lutas por direitos e o esforço para reunir a categoria, promovendo o desenvolvimento humano pelo trabalho coletivo.

Em resposta às dificuldades, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) vem acumulando propostas que visam criar um fluxo virtuoso que alie a economia circular à inclusão socioprodutiva das catadoras e catadores de materiais recicláveis. Significa transformar a cadeia produtiva da reciclagem superando as desigualdades regionais com pequenas unidades de transformação dos resíduos administradas pelas organizações de catadores em regime de autogestão e distribuídas em todo o território nacional. A reciclagem popular é um projeto produtivo que visa a distribuição da riqueza, do poder e dos conhecimentos gerados a partir dos resíduos. Para avançar é preciso efetivar a desoneração e investimento em infraestrutura, mas acima de tudo, é preciso reconhecer de fato as catadoras e catadores como atores essenciais.