Para além da cor da pele: O racismo estrutural e a violência policial

Em setembro de 2019, Agatha Félix, uma menina de oito anos de idade, voltava para casa com a mãe quando foi baleada. O tiro que matou Agatha foi disparado por policiais que desconfiaram que dois ocupantes de uma moto que passava eram criminosos. O incidente aconteceu no Complexo de Favelas do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, onde Agatha morava. Em maio de 2020, em plena pandemia, um adolescente de 14 anos foi baleado dentro de casa, na região metropolitana do Rio de Janeiro, pela polícia. Foram disparados 72 tiros dentro da residência. Nesses casos, a alegação invariavelmente é a guerra às drogas. No Rio de Janeiro, em 2019, seis casos de crianças mortas pela polícia, no trajeto de ida ou dentro de escolas, dentro ou em frente a suas casas tornaram-se manchete nacional e deixaram a todos comovidos. 

Manifestantes com cartazes contra o racismo estrutural
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Manifestantes com cartazes contra o racismo estrutural em Belo Horizonte

Os casos acima não são incomuns. Mas o que perpetua toda essa violência do Estado, que atinge crianças e adolescentes em casos que deixam a todos estarrecidos? O que legitima um agente público de usar sua arma para atirar indiscriminadamente nesses espaços? O que garante a ele que o que fizer ficará impune? A resposta não é simples, e com certeza terá muitas arestas e conjuntos de explicações. No entanto, há um fenômeno na base da formação da sociedade brasileira que tem um papel fundamental nessas ações: o racismo estrutural. O que significa dizer que o racismo está dentro das instituições brasileiras e se perpetua a partir de práticas de coerção e hierarquização, que aprofundam as desigualdades, mantendo os negros e negras em lugares de subalternidade, em detrimento de outro grupo que se mantém no poder. O racismo estrutural, então, cria condições materiais para que se mantenham estáticas as posições de poder de um grupo sobre o outro, como por exemplo uma educação de baixa qualidade para essa parcela da população, a negação de direitos em relação à moradia, à saúde e à segurança. É alijar 55% da população dos benefícios dos quais ela também deu sua contribuição para construir. Com isso, o racismo estrutural normaliza essas hierarquias e desigualdades. Aceitamos porque faz parte do modo como a sociedade “funciona”, não é uma relação meramente individual, de alguém racista, mas todo um conjunto de ações que vão normalizando situações que são violações claras de direitos de um conjunto substantivo da sociedade.

A polícia com isso se sente autorizada a utilizar a força extrema nesses lugares, sem medir as consequências. Ela precisa eliminar os inimigos, criados a partir de estereótipos sociais e raciais.  É impensável a polícia, com qualquer tipo de alegação, disparar 72 vezes dentro da casa de pessoas desarmadas, que não ofereceram resistência, nas zonas mais ricas da cidade. Para esses locais se normaliza perguntar antes e só atirar caso seja extremamente necessário, ou seja, se segue o regulamento. 

Neste sentido, a sociedade brasileira engendrou um racismo sofisticado, velado em suas relações sociais, que se sustenta a partir da violência e da desagregação das identidades negras desde seus primórdios. Assim quando olhamos a violência policial percebe-se que a vida tem um valor diferenciado entre os “matáveis” e os “cidadãos de bem”. Os perfis serão bastante definidos, matáveis são em sua esmagadora maioria os jovens negros, que são os trabalhadores invisíveis, subempregados no mercado informal, aqueles sem garantias assistenciais, vivendo em moradias precárias que estão longe do local de trabalho e sem aparelhos públicos de lazer.  Os “cidadãos de bem” são homens e mulheres brancas, muitos de classe média, com bom grau de educação, com empregos de renda média e morando nas zonas mais seguras das cidades, que possuem números de violência comparáveis a países europeus. A geografia da morte também não é surpresa, é na periferia, nas favelas e subúrbios das cidades, lugares possíveis para as moradias dessa população e é onde a polícia mais mata. Parte do papel da polícia é garantir a proteção material das classes favorecidas, como mais um elemento para assegurar esse lugar de privilégio frente às classes “perigosas”, utilizando para isso a violência física e simbólica. Mesmo para aqueles negros e negras que conseguiram atingir patamares mais altos na pirâmide econômica o desafio de confrontar-se com uma sociedade racista irá persegui-los. 

Mas voltemos ao fenômeno da violência nas cidades brasileiras. O Brasil é o segundo país da América do Sul em taxas de homicídio. Aqui a polícia também mata mais pessoas. Foram 11.520 pessoas mortas pela polícia em 2018-2019. O Rio de Janeiro, cartão postal do Brasil, vive assolado por tiroteios cotidianos entre polícia, traficantes e milicianos. Em 2018 e 2019 foram 4.549 tiroteios com envolvimento de agentes do estado. A polícia aqui também é a que mais morre. Mas as autoridades não parecem ver problema em toda essa matança. A não ser que ela possa ser usada como moeda eleitoral. 

Na última eleição o tema da segurança pública foi bandeira para muitos candidatos. No estado do Rio de Janeiro, o governador eleito Wilson Witzel declarou publicamente que a polícia deveria “abater” quem estivesse de fuzil, mesmo que não demonstrasse resistência ou risco, segundo ele era: “mirar na cabecinha e... fogo”. A política do “abate”, como ficou conhecida foi recebida com aceitação por parte da população e consolidava o cotidiano da polícia de práticas brutais em comunidades pobres do estado. Em 2019 houve vários casos de policiais dentro de helicópteros atirando indiscriminadamente em suspeitos nesses locais. Todas essas ações são vistas como parte da política de segurança.  

Não só no Rio de Janeiro, mas no governo federal o projeto vencedor foi aquele que pregava a violência, numa fórmula de limpeza daqueles que se interponham em seu caminho. O presidente Jair Bolsonaro ratifica a todo momento seu desejo de que a população esteja armada. Durante seu governo foi flexibilizada a legislação referente à venda e posse de armas de fogo. Em 2016 foram importadas 2.390 armas, já em 2019 esse número subiu para 37.589. Também em 2019 houve uma alta de 18% na venda de munições. A indústria de armas passou a vender 46,1% a mais para lojas de armamentos nos cinco primeiros meses de 2020. Políticas como essas reforçam as práticas de uma sociedade que permite a violência, desde que seja contra os “suspeitos” de sempre. 

Esses discursos encontram eco também no Parlamento, com tentativas e algumas vitórias na flexibilização da legislação na área da segurança pública, impulsionada pela “bancada da bala”, frente parlamentar formada por ex-policiais e ex-militares que defendem o armamento civil e endurecimento das ações do Estado contra criminosos.  

Assim, vivemos a agudização da necropolítica, um conceito desenvolvido pelo filósofo negro e historiador camaronense Achille Mbembe que questiona os limites da soberania do Estado. Segundo Mbembe o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer, pois “ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder.”. Para Mbembe, o que acontece é a negação da humanidade do outro permitindo-se assim qualquer violência, de agressões até a morte. Nos últimos anos a necropolítica virou então, bandeira eleitoral não apenas de parlamentares e gestores com menos importância no cenário político, mas elemento essencial de discursos e políticas que não estão mais fantasiadas de outras iniciativas. 

A luta antirracista e seus novos formatos 

Vivemos um tempo em que as condições materiais da vida estão se transformando completamente. O mundo do trabalho é um bom exemplo, no qual a uberização da vida está construindo novos formatos de atividade econômica. Ao mesmo tempo, se agudizou um mal-estar social baseado na ideia de que se perdeu o controle sobre os corpos e os desejos. As conquistas sociais e políticas dos últimos anos no Brasil e no mundo colocaram uma camada da população “fora do armário”, reforçadas pela atuação dos movimentos antirracista, do movimento LGBTQI+ e das mulheres, para citar os mais representativos. Uma parte da sociedade está se insurgindo cotidianamente contra seu lugar de subalternidade e obediência. É nesse mundo em decomposição material e simbólica que os movimentos antirracistas vão tomando força. Há um remeximento das forças sociais, tanto à esquerda quanto à direita, o que significa que o futuro imediato é de conflito permanente e reivindicação. 

É importante ressaltar que a luta antirracista não é nova, mas toma sempre novos formatos e atores, a partir das circunstâncias materiais que se põem ao seu dispor. Nesse caso, um ativismo que possui as ferramentas tecnológicas do seu tempo, as redes sociais. Esses movimentos são fragmentados, de liderança múltipla, trazem novos rostos, portanto, eles também são produto dessas dinâmicas sociais da fragmentação que o neoliberalismo causou.  Não por acaso o Black Lives Matter (BLM) é fundado por três mulheres negras:  Alicia GarzaPatrisse Cullors e Opal Tometi. As ativistas se conheceram na Organização Negra para Liderança e Dignidade e uma delas escreveu no Facebook “Nossa vida é importante, a vida é negra” e daí saiu a ideia do slogan do BLM. O movimento se expandiu e realizou milhares de manifestações inclusive fora dos Estados Unidos. Movimentos como esse confrontam as instituições, o Estado, querem uma mudança já, agora. 

Outra adesão necessária vista durante as manifestações contra a violência policial nos Estados Unidos é a da população branca. Não por acaso pessoas brancas famosas nas mídias: celebridades, ativistas, políticos e autoridades, por conta do assassinato de George Floyd fizeram doações financeiras, cederam espaço em suas redes sociais ou participaram das manifestações nas últimas semanas que levaram milhares às ruas da cidade convocadas pelo Black Lives Matter. Policiais brancos participaram de várias manifestações antirracistas, o que causou estranheza a muitos. No Brasil celebridades e jogadores de futebol brancos com milhões de seguidores nas redes sociais também cederam espaço à ativistas e pensadores negros que trouxeram os debates sobre o racismo no Brasil. Autoras negras de sucesso, como Djamila Ribeiro, aumentaram suas vendas de livros que abordavam a temática racial, o que demonstra o interesse do público.

A luta antirracista cobrará um custo simbólico e material a essas pessoas. Pois, se o racismo é constitutivo do sistema sobre o qual todos construímos nossas vidas, ele, portanto, tem mecanismos para repudiar aqueles que se insurgem ao seu papel determinado. Entender que sua situação não é dada pela meritocracia e sim, pelo fenômeno da branquitude, que o coloca num lugar de acesso à privilégios simbólicos e materiais está sendo também reforçado nesses tempos e tem encontrado adesão. Com isso também podemos afirmar que ficar ao lado de projetos políticos que fragilizam a vida, a cidadania, que desconsideram os direitos daqueles que nesse momento histórico continuam alijados dos espaços de poder é também ser racista. Assim, o combate ao racismo não pode ser tarefa apenas dos negros. Superá-lo, deslegitimá-lo é tarefa de todos. 

Os movimentos contra a violência, seja nos EUA ou no Brasil reforçam mais uma vez que a regulação da sociedade pela violência, para manter os subalternos em seus lugares não pode mais ser naturalizada sem resistência.  É isso o que aponta o fortalecimento dos movimentos de mães de vítimas da violência policial, as passeatas dentro das comunidades, os coletivos de jovens jornalistas, o crescente e fortalecido movimento de mulheres negras, para citar os mais emblemáticos aqui no Brasil. Mas as resistências antirracistas não estão apenas nos movimentos organizados. Estão também naqueles espaços que concentram a ancestralidade e a identidade negra: os terreiros e centros das religiões de matriz africana, nas comunidades quilombolas, nas manifestações culturais dos recônditos e periferias brasileiras. 

Essa luta de séculos, em anos mais recentes trouxe avanços importantes a partir da Constituição de 1988, como por exemplo, o reconhecimento e titulação das comunidades quilombolas, as cotas e programas de inclusão nas universidades públicas e privadas, cotas também nos concursos públicos, criação de secretarias de governo dedicadas à promoção da igualdade racial etc. Infelizmente, o atual governo nega o racismo, inclusive o próprio presidente dá declarações de cunho racista e sexista, e continua promovendo o desmonte de instituições e políticas ligadas ao tema. 

O que esses movimentos apontam é que um caminho está sendo pavimentado. Já é possível observar diversas instituições da sociedade civil reorientando suas práticas, não só para uma disputa política externa, o que muitas já faziam, mas também para o diálogo interno sobre essa temática. Sabemos que o impulso decisivo é dado por aqueles e aquelas que sentem cotidianamente as consequências do racismo. Portanto, as redes de cuidado e solidariedade devem ser ampliadas e fortalecidas. Para acolher aqueles que chegam, direcionar o debate e cobrar mudanças e posicionamentos. 

Isso significa também continuar uma longa história de cobrança ao conjunto de atores à esquerda do espectro político para que a luta antirracista seja um eixo prioritário, tanto em relação a disputa política quanto para o reposicionamento de quadros negros dentro dos espaços de poder. É necessário irrigar os campos para que novas Marielles possam florescer mais rapidamente. Porque elas farão seu papel ao exigir novas políticas e posicionamentos. Não à toa duas pautas eram prioridade no trabalho desenvolvido por Marielle Franco, a vereadora carioca assassinada por milicianos, que se tornou um símbolo no Brasil da luta antirracista e das mulheres: a segurança pública e a pauta de promoção dos direitos das mulheres. 

Mas a vida não é simples. Quase nada é, na verdade. Uma grande liderança, a feminista antirracista americana Angela Davis, nos alerta: “numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista". Para o caso brasileiro então, ela acerta em cheio. Heinrich Böll disse a frase que para mim reflete parte constitutiva do ideário da Fundação Heinrich Böll, em sua atuação pelo mundo: “envolver-se é a única forma de enfrentar a realidade”. Eles nos exigem pensarmos em soluções para além da sociedade individualizada e consumista em que vivemos. Nos aliarmos aqueles e aquelas que afirmam que #VidasNegrasImportam.  

Este texto foi publicado originalmente no site da Heinrich Böll sede em 05/08/2020. 

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