A espiral dos agrotóxicos: saídas por dentro da democracia e por fora do agronegócio

Plantação de soja

Quantos novos registros para agrotóxicos foram emitidos no Brasil desde o início de 2019? Por mais bem informado que você seja, é grande a chance de sua resposta já estar desatualizada (o mesmo vale para os números aqui apresentados). Isso porque o ritmo dessas aprovações tem sido intenso e difícil de ser acompanhado por qualquer um que não seja leitor assíduo do Diário Oficial da União. Em meio a uma enxurrada de liberações, este texto procura discutir algumas das causas e consequências de tal fenômeno e apontar possíveis alternativas.

Há pelo menos cinco décadas, setores do hoje chamado agronegócio divulgam a ideia de que o combate à fome passa necessariamente pelo uso de agrotóxicos. Mas apesar da promessa de longa data, o caminho apontado pelo agronegócio já demonstrou não ser resposta para se garantir alimentação adequada para todos. Fome e desnutrição são problemas que persistem no Brasil, somados a obesidade, diabetes e outras doenças decorrentes de uma má-alimentação. Ainda assim, continua sendo promovida a mensagem de que não é possível produzir alimentos fora do modelo convencional de agricultura, que tem como pilar as monoculturas e o uso de agrotóxicos.

Argumentos usados pelo agonegócio

O modelo agrícola que hoje é dominante tem suas raízes num longo processo de privatização das sementes e da pesquisa, de comoditização da comida e da terra e de desregulação como parte do crescente controle corporativo e desconsolidação da democracia, que segue até os dias atuais. A enxurrada de novos registros para agrotóxicos é prova disso. Mais de 400 agrotóxicos foram liberados desde o início de 2019.

O Atlas do Agronegócio, de 2018, informa que um número cada vez menor de empresas globais controla a produção e o mercado de insumos (sementes, agrotóxicos, fertilizantes e máquinas) utilizados na produção agrícola. A economia neoliberal favoreceu a concentração corporativa, e uma sequência de acordos de aquisições e de fusão fizeram convergir a produção e o desenvolvimento tecnológico nas áreas de sementes, fármacos e petroquímica (agrotóxicos), reforçando a concentração.

Hoje, a compra de insumos corresponde à principal fatia dos recursos empregados pelos agricultores. O próprio sistema de crédito vincula o empréstimo aos agricultores à compra  desses produtos, por um lado assegurando mercado para as empresas, por outro reforçando a ideia de que a aplicação de insumos é garantia de produção e, assim, de recebimento da dívida pelo banco. Os agricultores deixaram de reproduzir a maior parte de seus meios de produção – sementes e  formas orgânicas de fertilizar a terra – que com o apoio da ciência foram convertidos em commodities controladas pelas grandes empresas. Parte significativa dessas commodities, como sementes melhoradas e transgênicas, fertilizantes químicos e agrotóxicos, é convertida novamente em outras commodities: soja, milho, trigo e algodão, por exemplo. Tanto é assim que, segundo dados das empresas do setor, o Brasil é o país que mais usa agrotóxico no mundo[1] (e é o maior importador mundial de agrotóxicos e um dos maiores exportadores mundiais de grãos e de (grãos convertidos em) carne. Nesse giro de transformação de commodities, o Brasil assume o custo socioambiental do modelo.

De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2007 e 2014 foram registrados mais de 68 mil casos de intoxicação por agrotóxicos, o que daria uma média de 23 intoxicações por dia no país. Pesquisa recente mostrou que a água do abastecimento público de 454 municípios brasileiros apresentou contaminação por uma mistura de diferentes agrotóxicos acima dos limites permitidos. Enxames de abelhas estão sendo dizimados aos milhares por inseticidas do tipo neonicotinoides, somados a desmatamento e queimadas. Além de afetar economicamente a produção de mel e derivados, a matança das abelhas reduz a polinização da vegetação nativa e ameaça a própria produção agrícola. Produtores de uva no Rio Grande do Sul estão falando em “cemitério de parreiras” causado pelo herbicida 2,4-D aplicado nas lavouras de soja, estimando prejuízo em mais de R$ 100 milhões. Os herbicidas à base de glifosato, que são usados nas lavouras transgênicas, já não controlam 15 espécies de ervas daninhas que desenvolveram resistência ao produto.

A população tem acompanhado a questão. Pesquisa do Datafolha revelou que 78% dos entrevistados consideram os agrotóxicos inseguros para a saúde humana e que 72% avaliam que os alimentos produzidos no Brasil têm mais agrotóxicos do que deveriam. A preocupação se justifica. Pesquisa realizada pelo Instituto Butantã a pedido da Anvisa mostrou que não há doses seguras para os agrotóxicos mais usados no país, entre eles o campeão de vendas glifosato. A resposta à crescente confirmação de efeitos adversos do uso de agrotóxicos deveria levar a controles mais rigorosos e maior regulação, mas os governos – elemento central na definição da política agrícola e de saúde de um país – inversamente, respondem com incentivos às empresas e afrouxamento das leis.

Um dos exemplos desse paradoxo foi a mudança na metodologia do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), da Anvisa. Em 2016, o programa passou a avaliar apenas a presença de resíduos de agrotóxicos que apresentam risco agudo para a saúde. A partir de então a Anvisa concluiu que quase 99% das amostras de alimentos analisadas, entre 2013 e 2015, estão livres de resíduos de agrotóxicos que representam risco agudo para a saúde. Em 2012, ano do último relatório divulgado antes da nova metodologia, 29% das amostras foram classificadas como “não satisfatórias”. Em 2011, as amostras insatisfatórias somaram 35% do total. Cabe lembrar que o PARA não analisa resíduos de herbicidas nem a presença de agrotóxicos na água.

Na mesma linha desreguladora, a Anvisa acabou de aprovar novo marco regulatório para os agrotóxicos no intuito de acelerar suas aprovações, coisa que os ruralistas do Congresso tentam há alguns anos mas ainda não haviam conseguido. A medida visa “modernizar os produtos usados nas plantações brasileiras”. Numa lista de 410 agrotóxicos liberados apenas 7, entretanto, podem ser considerados novos (os demais são genéricos ou similares), sendo que desse total 111 não são autorizados na União Europeia. O novo marco ainda impôs mudanças na classificação de risco para esses produtos. Efeitos crônicos não são mais considerados. Só produtos que causam morte quando ingeridos, inalados ou em contato com a pele serão classificados como extremamente tóxicos. Resultado: dos 2.356 produtos formulados com registros, 702 eram classificados como “extremamente tóxicos”, agora esse número caiu para 43 (menos de 2%).

Essas duas medidas juntas, mudança no PARA e rebaixamento da classificação de risco dos agrotóxicos, produzem uma informação pública que visa tranquilizar a população, mas que resultam de manobras burocráticas e não de mudanças concretas no modelo agroalimentar. Ou seja, produzem o efeito de maquiar a realidade, negligenciar a saúde e proteger o agronegócio e suas exportações.

A aceleração recorde das aprovações de agrotóxicos produz ainda efeitos em cascata sobre o descontrole em relação a tais produtos. Por um lado, a Anvisa descolocou funcionários de outras áreas para a avaliação dos pedidos de registro de agrotóxicos e buscou reforço externo de técnicos da Embrapa. Por outro, não se tem notícias de esforços similares para dar conta de fiscalizar nem os produtos já em circulação nem os novos que se multiplicam. A fiscalização deveria incluir as fábricas, os pontos de importação e de venda, a emissão de receituários agronômicos, o transporte, a produção a campo e as fronteiras do país, já que estima-se que 20% dos agrotóxicos comercializados no Brasil são contrabandeados.

A justica tem um papel a cumprir

A depender do ponto de vista, o quadro aqui exposto pode sugerir uma situação de descontrole ou de normalidade. Descontrole do ponto de vista da saúde pública, do meio ambiente, da segurança alimentar e da justiça social. Normalidade se considerada a manutenção das condições políticas e econômicas a partir das quais o modelo agrícola dominante se reproduz ou, sem as quais o modelo não se reproduz.

Do ponto de vista técnico, é no clima tropical, usado como justificativa para o elevado consumo de agrotóxicos, que está a chave para uma mudança de curso na agricultura brasileira. Justamente a partir da incorporação nos sistemas agrícolas da megabiodiversidade que o clima tropical proporciona, que se poderá atingir maior estabilidade ecológica (entre pragas, doenças e inimigos naturais) com consequente dispensa dos agrotóxicos. Resultados dessa natureza são observados em sistemas agroecológicos de norte a sul do país.

Os consumidores cada vez mais têm condições de atuar diretamente fazendo-se valer da multiplicação de feiras orgânicas e agroecológicas e de diversas outras modalidades de acesso direto a produtos sem agrotóxicos, frescos e locais. Comer é um ato político, como diz a consigna.

Na política institucional, por mais que o Congresso seja de maioria ruralista, aumenta o número de iniciativas promovidas por estados e municípios em defesa de  outra agricultura. Resultado de experiências concretas e de participação popular, em diversas regiões estão sendo aprovadas leis e políticas de agroecologia e produção orgânica, de incentivo à alimentação orgânica, de polos de produção agroecológica, de casas e bancos de sementes crioulas, de áreas livres de agrotóxicos, de proibição de pulverização área e de tributação de agrotóxicos, entre outros. Isso nos demonstra que saídas existem e estão por dentro da democracia e por fora do agronegócio.


[1] Dados atuais apontam mais de 1 bilhão de litros por ano, cf.: O País dos Agrotóxicos. Super Interessante: https://super.abril.com.br/especiais/brasil-o-pais-do-agrotoxico/