Criminalização dos movimentos sociais, campanhas de difamação, ondas de violência e assassinatos de ativistas - essas são algumas formas para a diminuição dos espaços da sociedade civil. Este fenômeno global, que atinge diversos países do mundo, restringe os direitos fundamentais dos indivíduos e afeta diretamente a sociedade crítica. Quais medidas e estratégias devemos tomar a partir desse cenário de crescente autoritarismo e intolerância?
No dia 26 de maio o BRICS Policy Center, o Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e a Fundação Heinrich Böll promoveram a roda de conversa “Desafios globais em tempos de conservadorismo e intolerância”. O debate contou com a participação de Barbara Unmüßig, presidenta mundial da Fundação Heinrich Böll, Valdecir Nascimento, diretora do Odara – Instituto de Mulheres Negras Brasileiras e Jesse Levine, diretor da Scholars at Risk. O moderador da conversa foi Bruno Torturra, jornalista do Estúdio Fluxo e editor-chefe do Greg News. O evento contou com cerca de 100 pessoas entre ativistas, estudantes e acadêmicos.
(Assista aqui a gravação do evento na íntegra)
Podemos observar, hoje, um avanço do conservadorismo fundamentalista e intolerâncias sob países de diferentes continentes, que acontece por meio do controle e repressão de manifestações, da criminalização dos movimentos sociais, dos ataques às organizações da sociedade civil e até assassinatos de ativistas. Esse fenômeno global é chamado por Barbara Unmüßig de encolhimento dos espaços de participação da sociedade civil. Seis em cada dez países do mundo estão reprimindo seriamente direitos civis já conquistados e apenas 4% da população do mundo vive em países onde os governos respeitam de forma apropriada a liberdade de associação, manifestação pacífica e expressão, segundo dados do estudo Monitor Tracking Civic Spaces, da ONG Civicus. O levantamento,de 2018, foi realizado em 196 países e afirma que 111 deles estão sob sério ataque.
Barbara é cientista política e responsável pelos escritórios da Fundação Heinrich Böll em diferentes partes do globo, como na India, no Quênia, na Russia e na China. A partir de sua observação sobre a forma com que os parceiros da Fundação estão sendo afetados por esse movimento, ela acredita que: “os direitos fundamentais estão imbicados nos direitos humanos, e são exatamente esses direitos que estão encolhendo. São eles que fazem com que uma sociedade tenha a habilidade de agir, falar, engajar, envolver. Quando falo em sociedade civil, quero dizer sobre os trabalhadores, o terceiro setor, incluindo também a mídia, os advogados, as mulheres, os movimentos sociais e todos os que são afetados pelo encolhimento. Esse movimento afeta a sociedade crítica, quem luta pelos direitos das mulheres e dos LGBTs, aqueles que criticam o modelo econômico, os que protestam contra o agronegócio e o desmatamento. Fechar espaços significa tentar parar a influência daqueles que estão agindo e lutando por seus direitos."
Segundo Barbara, há uma semelhança global entre os métodos utilizados para o fechamento e a diminuição dos espaços da sociedade civil. Essas formas de conservadorismo se expressam através de campanhas de difamação, criação de leis para criminalização dos movimentos sociais, assassinato de ativistas – especialmente na América Latina, onde os números são os mais altos. Neste cenário, Barbara acrescentou sobre a importância de pensarmos em estratégias e defendermos nossos direitos e nossa liberdade de expressão. Por isso, considera que protestos são bem-sucedidos, seja contra políticas públicas ou projetos específicos: “Por causa dessa habilidade da sociedade em defender direitos e pedir por mais espaços democráticos, as elites econômicas e políticas querem rejeitar esses espaços conquistados pela sociedade ao longo das décadas.” Além disso, a digitalização faz com que se torne mais fácil que as pessoas se solidarizem localmente. “Esse fator explica também o crescimento da opressão em relação daqueles que usam a Internet para a internacionalização dos protestos locais”, concluiu Unmüßig.
Ao passar a palavra para Jesse Levine, Bruno Tortura destacou a importância da presença de um representante de uma organização que defende a liberdade de acadêmicos, na véspera de manifestações nacionais pelo direito à educação e contra os cortes nos orçamentos das universidades. Esses protestos, aos quais Bruno se referiu, aconteceram no dia 30 de maio. Segundo o jornal O Globo, foram registrados atos em 136 cidades de 25 estados e do Distrito Federal. Jesse Levine é diretor da Scholars at Risk, uma rede internacional que oferece apoio para acadêmicos em risco. Para ele, o ataque às universidades não é um problema que acontece apenas com determinados professores, mas sim uma crise global. Essa onda de violência, gerada a partir do encolhimento dos espaços de participação, afeta o ambiente universitário na medida em que impede o direito de pensar, questionar e compartilhar ideias, que são os papeis da universidade. “Os tipos de ataques aos acadêmicos se diferem de acordo com suas regiões em relação à severidade do caso, mas a motivação é a mesma: silenciar o espaço de educação e diminuir o que os acadêmicos, as universidades e os estudantes representam,” explicou Jesse.
A organização defende a liberdade acadêmica e os direitos humanos, documentando e agindo em resposta a ataques contra membros das comunidades do ensino superior, desde professores até estudantes. “Nosso trabalho é apoiar os espaços independentemente de onde existam, empoderando acadêmicos e estudantes, criando conversas abertas e gratuitas no campus. Não estamos tomando partido de determinado político, mas sim escolhendo uma posição quando o autoritarismo impede as universidades de fazerem o que precisam fazer. Ou seja, ser um modelo para a democracia, contribuir para a circulação de ideias, contribuir para a ciência. Quando o autoritarismo impede que essas coisas aconteçam, não é apenas a universidade e os alunos que estão sofrendo, mas toda a sociedade”, afirmou Jesse.
Valdecir Nascimento é coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, organização negra e feminista criada em 2009 com o objetivo de fortalecer e desenvolver a autonomia das mulheres negras. “Na medida em que o mundo encolhe [os espaços da sociedade civil], quem está à margem será mais afetado pelo retrocesso”, afirmou Valdecir. “Quando vamos discutir os processos que acontecem globalmente, percebemos que a incidência e a expansão do capitalismo e das transnacionais nos países de maioria não branca, como na África, na Índia e no Brasil, afetam diretamente a população negra. No processo de redução de espaço, o racismo é um elemento estruturante para a exclusão dos indivíduos no Brasil e no mundo”.
Valdecir ressaltou também que não é possível discutir estratégias sem que ocorra um entendimento sobre o papel do racismo na estruturação das relações. “A luta antirracista no Brasil sempre existiu. A questão é que hoje, com a revolução tecnológica, as informações e produções podem circular muito mais quando comparado a 20 anos, quando não existiam esses instrumentos”. Valdecir enfatizou ainda que, para o movimento negro, o Brasil vive um momento complexo, mas também estratégico para pensarmos a identidade nacional brasileira. “Os desafios são grandes, mas a nossa inteligência será capaz de transformar esse momento de crise em um momento enriquecedor. Será um processo a longo prazo porque todos os estranhamentos terão de ser quebrados. Nós não queremos estar de fora do debate sobre a construção de uma nova nação. O grande desafio será construir um diálogo e um reconhecimento do outro como sujeito, porque quando você não reconhece o outro, ele não existe”, finalizou.
A roda de conversa fez parte da Conferência Internacional "Controle das Resistências, Encolhimento dos Espaços de Participação e Crise da Democracia", da Semana de Relações Internacionais do Instituto de Relações Internacionais da PUC – Rio.