O dia 15 de novembro é feriado nacional no Brasil, porque se “comemora” a Proclamação da República. Mas de que República estamos falando? O que, mesmo, temos a comemorar neste momento?
No campo dos direitos reprodutivos, as mulheres tomaram as ruas em protesto contra a aprovação, em uma comissão especial do Congresso Nacional, de propostas que levam à anulação dos permissivos legais nos casos de aborto. A proposta de Emenda Constitucional está pronta para ser levada ao plenário. Caso aprovada, esta reforma constitucional abre a possibilidade de criminalização do aborto em todos os casos hoje permitidos (estupro, risco de morte da mulher grávida e anencefalia) e incorpora na legislação, o termo ‘desde a concepção’, o qual foi rejeitado anteriormente, durante o processo da Assembleia Nacional Constituinte que levou à promulgação da Constituição de 1988, pela força da mobilização do movimento de mulheres, com apoio de outros movimentos sociais. Desde esta ocasião, acontece uma disputa permanente entre os setores conservadores/fundamentalistas e as forças políticas do campo democrático, no qual se destaca, neste conflito, a atuação do movimento feminista.
O aborto no Brasil foi criminalizado em lei de 1941, em plena ditadura do Governo Vargas (1930-1945), No final da década de 1980 e ao longo da década seguinte, o esforço coletivo de parte do movimento feminista foi instalar serviços de atendimento público ao aborto legal, nos casos citados, na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988.
Injustiça! Gritam as mulheres. O atual governo de exceção já estabeleceu teto para gastos com saúde pública por 20 anos, assim, fica cada vez mais distante a possibilidade de mulheres das classes populares, em sua expressiva maioria negras, poderem ter acesso ao atendimento público humanizado e gratuito e, em particular, em casos de aborto, além de dificultar também a ampliação dos serviços públicos de planejamento familiar e do parto humanizado. O atendimento a saúde reprodutiva para mulheres está, portanto, sob forte ameaça, e já se mostra em um estado de precarização permanente.
A força dos ataques conservadores sobre os direitos reprodutivos das mulheres tem sua gênese na imbricação entre os ataques aos direitos das mulheres e os ataques à coisa pública no Brasil e, de maneira mais ampla, ao desmonte da institucionalidade democrática e do Estado de Direito que viemos construindo desde fins do período da ditadura militar, na primeira metade da década de 1980. Nos últimos trinta anos, após o fim desse regime autoritário, vivemos o mais longo período democrático no país. As eleições aconteceram de forma regular; governos executivos passaram a ter obrigação de construir planos de investimento com uso do fundo público, a lei de acesso à informação foi aprovada, mecanismos para o controle das políticas públicas e fontes de financiamento foram instituídos, fortalecendo um processo de participação cidadã, entre outras conquistas fundamentais para o fortalecimento da vida democrática no país.
Contudo, após maio de 2016, quando a presidenta eleita Dilma Rousseff foi afastada para ser julgada, e tomou o poder seu vice Michel Temer, esse processo foi interrompido. As políticas que fortaleciam a gestão dos fundos públicos numa perspectiva republicana, de coisa pública, voltou a ser definida somente pelos interesses de ganhos privados e corporativos. As políticas de caráter social, promotoras de democracia social estão esvaziadas de investimentos públicos em favor do pagamento ao capital financeiro, o que se expressa no discurso oficial em nome da responsabilidade fiscal. O que podemos de fato observar é que prevalece a irresponsabilidade social, e descompromisso com a população trabalhadora e pobre em favor da minoria formada pelos muito ricos.
Aqueles, que propõe a criminalização absoluta do aborto e criticam práticas de contracepção tentam impedir educação sexual e debate sobre desigualdades e injustiças de gênero, raça e classe nas escolas, negam a possibilidade de virmos a ter uma república laica, garantidora de direitos sociais, e promotora da igualdade e bem estar. Advogam por uma teocracia neoliberal mesmo que mantendo as eleições formalmente.
Quando se trata dos setores conservadores de filiação religiosa pode-se dizer que há uma ambição de instituir um governo e mais além, um Estado de bases teocráticas? Parece que sim. Suas propagandas em sucessivas eleições apontam para uma visão de país regido por preceitos cristãos, segundo suas formulações, e é dessa forma que atuam no exercício do poder conferido pelos mandatos legislativos e executivos que obtêm. Os parlamentares de religiões cristãs, de orientação conservadora, em especial os neopentecostais, se posicionam nos processos de formulação de leis desconsiderando totalmente um princípio básico da democracia, o da laicidade do Estado. Ao mesmo tempo as igrejas neopentecostais atuam mais e mais como partidos e como empresas. Como partido impõe determinações às suas bancadas, fundindo fidelidade partidária com os preceitos hierárquicos de suas igrejas e, por consequência, com a ação parlamentar, não dialogando em nada com as premissas de um estado laico. Como empresas, violam a concepção de res publica, e governam para beneficiar os lucros de suas organizações, como por exemplo, a manutenção da isenção de impostos, acesso às concessões de canais de comunicação e acesso ao fundo público destinado às políticas sociais e de assistência. Procedimentos que não se diferenciam da forma de atuar, junto ao poder público, do empresariado em geral através das suas práticas de lobbies.
Para alcançar seus objetivos particulares as empresas-igrejas-partidos e seus parlamentares aliam-se com outros setores, como os representantes do agronegócio, conhecidos como bancada do boi, os representantes da indústria armamentista, conhecidos como bancada da bala e de outros setores como o do capital financeiro.
Com uma agenda tão ampla, porque tanto empenho destes setores no controle da capacidade reprodutiva das mulheres? Acontece que, como temos dito, nós, as feministas, o controle dos nossos corpos e da sua capacidade produtiva e reprodutiva é parte da constituição da ordem vigente. Não são difíceis de encontrar na história os exemplos de governos, em diferentes países, que atuaram e atuam diretamente no controle da população para diminuir ou aumentar a natalidade conforme interesses do momento, através, primordialmente, do controle dos corpos das mulheres. Deve-se também salientar que o controle sobre o corpo, sexualidade e reprodução das mulheres, é constitutivo do poder dessas igrejas cristãs como instituições patriarcais. Feministas teólogas têm demonstrado como os argumentos religiosos e bíblicos são usados para justificar a posição conservadora, misógina e racista que estes setores já defendem.
No Brasil, as relações sociais de gênero, de raça e classe, numa dinâmica que as imbricaram, e que foi instalada desde o período da colonização, engendraram um Estado fundado na norma patriarcal e racista através da escravização de povos negros e livres, traficados de África. Este Estado, controlado na sua origem pelos interesses de grandes proprietários de terras tem sido instrumento ao longo do tempo de favorecimento da acumulação de riquezas e superexploração da vasta população trabalhadora, cuja maioria é formada pela população negra. Hoje este Estado está controlado pela força das grandes corporações e transnacionais, pelo agronegócio e ainda pelo capital rentista, que se alinham as forças políticas de cunho religioso e estão aliadas e agem de maneira simultânea contra os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres.
Por tudo isso podemos afirmar que a luta do movimento feminista pelos direitos reprodutivos das mulheres é parte inextrincável da luta pela democracia, justiça social e reconstrução de um poder público republicano no Brasil.