No dia 15 de julho fui convidada pelo Instituto Raízes, parceiro da Fundação Heinrich Böll há quatro anos, para uma roda de conversa no Complexo do Alemão. Sentados em frente a uma das estações do Teleférico do Alemão, parado desde setembro do ano passado, um grupo de pessoas, entre ativistas, pesquisadorxs e representantes de ONGs conversaram sobre a mobilidade urbana no Rio de Janeiro, nossas experiências profissionais e pessoais com a cidade e seus difíceis caminhos.
Na década de 1970, tempos de minha infância, ir à praia na cidade do Rio de Janeiro era uma aventura que começava às 7 da manhã. Acordar, colocar as coisas na bolsa, fazer sanduiches e comidinhas rápidas, vestir roupa de “praia” etc. O trajeto levava cerca de uma hora e meia até uma das praias da zona sul, se dia de semana num ônibus lotado, se sábado ou domingo era mais confortável. Ficava-se na praia todo o dia, pois voltar rápido não compensava todo o trabalho. A única forma de transporte era por ônibus ou uma combinação com trem. Duque de Caxias, cidade onde eu residia, é uma das cidades da Baixada Fluminense e fica a 21 km da cidade do Rio de Janeiro, o que não é tão longe. Para uma criança a volta era dormindo ou revendo o trajeto majestoso dos morros e verdes do Rio.
As memórias da minha infância me chamaram a atenção para o debate sobre mobilidade urbana no Rio de Janeiro proposto pelo Raízes, numa comparação com aqueles tempos. Será que as crianças de Duque de Caxias chegam mais rápido à praia hoje? Será que vão mais confortáveis? Será que o apartheid social entre a “cidade” e a Baixada diminuiu?
O trajeto hoje pode chegar a três horas. Segundo estudo da empresa de tecnologia de transporte Tom Tom, só os cariocas levaram 165 horas em engarrafamentos em 2015. Comparado a 295 cidades em 38 países no mundo, o Rio ficou em 4º lugar. Esse é outro motivo dos engarrafamentos: a frota de automóveis no Brasil saltou de 12,6 milhões para 26,6 milhões de 2001 para 2014, o que evidentemente não ajuda a diminuir os constantes engarrafamentos.
Ainda trens e ônibus são a combinação mais eficiente. Os megaeventos possibilitaram também a extensão da linha 4 do metrô fazendo com que seja possível agora chegar até a Barra da Tijuca. Dos R$ 25 bilhões investidos em mobilidade na cidade por conta dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, R$ 9,7 bilhões foram para as obras do metrô, que ao final têm cinco estações, num total de somente 16 km. Caro, o metrô está rodando abaixo de sua capacidade diária de 300 mil passageiros. A estação Gávea, que fazia parte do projeto inicial, começou a ser construída em 2012, mas suas obras foram paralisadas pelo TC U após indícios de superfaturamento.
A ciclovia Tim Maia, que percorre a Av. Niemeyer, um dos cartões postais do Rio com uma bela vista do mar e dos morros cariocas, teve um dos seus trechos levado pelo mar. Falhas no projeto estrutural da pista foram a causa do acidente que levou à morte duas pessoas. Ao todo 16 pessoas foram indiciadas pelo Ministério Público por homicídio culposo. Mas a pista ainda precisa de autorização judicial para sua reabertura.
Outra inovação foi a criação das linhas de BRTs (Bus Rapid Transit), um serviço de ônibus articulados que rodam por uma via exclusiva para seu tráfego. Nos BRTs foram gastos R$ 4,8 bilhões, mas há dois anos inaugurado o sistema já está saturado e sofreu com acidentes, inclusive com mortes. A outra novidade foi o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) inaugurado em junho de 2016, fazendo até agora uma rota reduzida. O VLT, chamado de “transporte de horário do almoço”, circula apenas no Centro da cidade e já foram gastos R$1,1 bilhão, com data de término das outras estações para 2017. Mas a crise no estado do Rio de Janeiro fez com que fossem paralisadas as obras tanto do VLT quanto do BRT Transbrasil.
Mas tudo não está perdido: a maior oferta de modais é um avanço importante para a cidade. Chegar mais rápido no trajeto casa-trabalho-casa transforma a vida. E tempo é a moeda da vida. Moeda que gastamos quando estamos num engarrafamento. Quando estamos parados mais do que o desejável e explicável, se gasta o tempo de ficar com família, amigos, ler, estudar e tantas outras atividades mais prazerosas. O trajeto de quase três horas toda manhã para os cidadãos e cidadãs da Baixada Fluminense fez com que comemorações de aniversário acontecessem dentro de ônibus, com balões, presentes e bolo, uma forma de compartilhar com os agora “amigos de viagem”. Apesar de simpática, a prática também faz com que nos perguntemos por que acontece. Numa viagem Baixada-Rio há tempo para quase tudo, até mesmo para festas de aniversário.
Cerca de um milhão de pessoas se deslocam diariamente entre os municípios do estado do Rio de Janeiro. Para as duas maiores cidades da Baixada, Duque de Caxias e Nova Iguaçu, 228,6 mil é o número de pessoas que se deslocam para a capital diariamente[1]. O que nos faz pensar que mobilidade também nos dá elementos para entender outro problema das cidades dormitório: mais de 70% dos empregos da região metropolitana estão na cidade do Rio de Janeiro.
O investimento de R$ 260 milhões nas estações de trem foram apenas (quase) 1% do total investido no setor. Os trens transportam cerca de 680 mil pessoas diariamente. A melhoria qualitativa da malha de trens urbanos e a ampliação de estações de metrô para a Baixada Fluminense não fizeram parte do legado olímpico.
Durante a preparação da cidade a prefeitura também realizou uma reorganização das linhas de ônibus, com diminuição de 25% da frota e extinção de linhas. Os usuários reclamaram e criaram a campanha “Quero meu ônibus de volta”, criticando o poder público. Os itinerários dos ônibus também foram diminuídos, assim o usuário tem de pegar mais um ônibus para chegar ao seu destino. O transporte ficou mais caro, sem ter sido aumentado individualmente, para aqueles e aquelas que trabalham em alguns bairros da zona sul da cidade. Se a racionalização ajudou a maioria dos moradores da cidade é difícil dizer, pois acompanhamento e avaliação não foram o forte do Poder público.
Também fomos bombardeados por imagens de blitz da polícia, nas quais jovens negros indo para as praias da zona sul foram parados e revistados pelo único motivo de estarem onde não deveriam estar[2]. Prática antiga no Rio, os “suspeitos de sempre” eram em sua maioria moradores da zona norte da cidade, onde estão a maioria dos complexos de favelas do estado. Aqueles que se deslocam, em especial os jovens negros, correm o risco de sofrer discriminação e serem detidos ou presos sem nenhuma prova de qualquer crime. Na roda do Alemão ouvi relatos que mostram bem essa dinâmica, além disso, grande parte das pessoas que moram nas favelas ou na Baixada ficam centradas em seu território para as atividades de lazer, só se relacionando com outras partes da cidade pela via do trabalho. O que não seria problema caso esses lugares fossem dotados de equipamentos de lazer públicos de qualidade. O que também não significa dizer que essas pessoas não criem suas próprias soluções. A favela tem potência e mostra isso para o centro. A roda de hip-hop, o jogo de futebol do começo da manhã, o jogo de cartas, a quebrada do skate, o funk da madrugada, a roda de amigos e mais outras dezenas de invenções e mundos imaginados. Mas, para o bom uso de seus impostos o estado ouve pouco suas demandas.
Em eventos variados sempre quando pesquisadorxs, personalidades e ativistas criticam as obras e decisões do poder público quanto aos megaeventos, ou os assim chamados legados olímpicos, uma parte da audiência se manifesta contrária, acusando-os de “pessimistas”, gente que sempre quer ver “defeitos” naquilo que com tanta dificuldade foi possível fazer. A festa aconteceu sem maiores incidentes, o público internacional foi bem recebido, com a simpatia costumeira da população carioca. A discussão não é essa. Não estamos falando disso. Estamos falando de números e dados que apontam superfaturamento nas obras e decisões que contemplam interesses voltados para um grupo político-econômico implicado em propinas e lavagem de dinheiro. Estamos falando de investigação judicial, de relatórios do TCU, de ações do Ministério Público, de jornalismo investigativo, de teses e dissertações acadêmicas, de manifestações nas ruas da cidade que convocaram milhares de pessoas para expressarem seu descontentamento e da resistência daqueles que sofreram remoções forçadas de seus lares e foram cerca de 20 mil pessoas, segundo dados da própria Prefeitura.
Da minha infância até aqui foram construídas a linha vermelha, que liga a Baixada à cidade do Rio de Janeiro, com a promessa de 18 minutos até o centro, o que podia ter sido verdade em 1992 quando da sua finalização, mas dificilmente realidade hoje. A frota de trens ganhou trilhos elétricos até o bairro de Gramacho. Foi construída a Via Light, em Nova Iguaçu. O metrô chegou até a Pavuna, bairro fronteira entre a Baixada e a cidade do Rio, mas daí não saiu. As crianças da Baixada demoram mais para chegar à praia.