Böll Brasil: No discurso oficial se falava muito que as Olimpíadas beneficiariam a economia e o desenvolvimento sustentável e que este era o objetivo principal. Em sua opinião, qual foi realmente o objetivo principal do governo?
Precisamos levar em consideração que a realização de um megaevento envolve uma diversidade de agentes em diversas escalas e níveis. No caso da Copa do Munfo de 2014 e dos jogos Olimpicis de 2016, O governo federal foi um dos agentes e os governos estaduais e os municipais foram outros dos envolvidos na preparação das cidades para receber esses megaeventos. Logo, os objetivos desses agentes não eram exatamente os mesmos. Na verdade quem realizou os projetos de reestruturação urbana das cidades-sedes foram os governos locais. Eu diria que havia uma expectativa por parte do governo federal de alavancar o desenvolvimento econômico do país e de que a Copa do Mundo e a Olimpíada fossem eventos capazes de atrair investimentos e servir como uma contra tendência à crise internacional, que já se verificava no contexto global. No caso dos governos locais, de uma forma geral, podemos identificar dois objetivos distintos: o primeiro, foi utilizar a realização desses megaeventos para legitimar planos de reestruturação urbana e a promoção de reformas institucionais na perspectiva da adoção da governança empreendedorista, e em segundo lugar, reposicionar as cidades na competição por investimentos, em especial no mercado turístico e no mercado de serviço, na disputa pela realização de eventos nacionais e internacionais. Isso fica muito claro quando se observa os investimentos na requalificação da rede turística dessas cidades.
Böll Brasil: Em um artigo para o livro “Brasil: Os impactos da Copa do mundo 2014 e das Olimpíadas 2016”, você fala sobre o conceito da governança empreendedorista neoliberal. Poderia explicar brevemente a ideia desse conceito e como se mostra essa nova governança no contexto das Olimpíadas?
A emergência da governança empreendedorismo está relacionada às tentativas de mudar o papel dos municípios que, cada vez mais, passam de responsáveis pelo bem-estar coletivo para responsáveis pelo desenvolvimento econômico. E, nesta perspectiva, os defensores desta mudança argumentam que assumir a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico requer a criação de condições favoráveis para que as empresas privadas invistam nas cidades. Então há toda uma ideologia que está sendo difundida em torno das virtudes das Parcerias Público-Privadas (PPP), e da necessidade de reformas institucionais e de reformas urbanas pró-mercado, visando criar condições favoráveis para atração dos investidores. Em outras palavras, significa que progressiva subordinação da gestão da cidade à lógica do mercado. No caso brasileiro os megaeventos esportivos foram utilizados para promover a difusão dos princípios dessa governança. Principalmente quando você observa os projetos de reestruturação urbana das cidades e também as reformas institucionais pelas quais essas cidades passaram. Houve uma onda de adoção de PPPs associadas à realização da Copa do Mundo e da Olimpíada. No caso da Copa do Mundo, isso ocorreu, sobretudo, nos aeroportos e nos estádios de futebol. No caso dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, a adoção de PPPs envolveu a mobilidade urbana, como no caso do BRT e do VLT, e a reestruturação urbana de algumas áreas, como na operação urbana do Porto Maravilha e na construção do Parque Olímpico.
Böll Brasil: Você falou na pergunta anterior sobre o papel das parcerias público-privadas. Normalmente poderíamos pensar que como não há apenas gastos públicos, mas também privados, isso seria uma coisa boa. Mas porque foi um tema tão polêmico nas Olimpíadas?
Antes de tudo há que se perguntar: a parceria público-privado é desejável em áreas fundamentais para a reprodução social ou tendem, na sua própria lógica de funcionamento, a promover o acesso desigual a serviços fundamentais para a vida humana? Vamos pegar casos concretos: a reestruturação urbana da área portuária está sendo realizada através de uma parceria público-privada, financiada por meio da venda de potencial construtivo. Para atrair os investimentos privados, a gestão pública da área portuária se subordina à lógica do mercado, porque senão o mercado não vai investir naquela área, não vai comprar potencial construtivo, os chamados CEPACs. Portanto, toda a lógica da reestruturação da área portuária foi voltada para os empreendimentos corporativos e habitacionais de alta renda, porque são os investimentos capazes de atrair recursos privados para a reestruturação urbana. E, neste sentido, chama atenção o fato da operação urbana da área portuária não prever investimentos em habitação de interesse social, nem um centavo. Da mesma forma, quando olhamos a PPP do Parque Olímpico percebemos a construção de grandes empreendimentos habitacionais e corporativos, ou seja, grandes projetos voltados para as elites, que estavam associados diretamente à remoção de comunidades mais pobres, como no caso da Vila Autódromo, Vila Recreio, entre outras. Então, de fato, as PPPs voltadas para provisão de políticas públicas fundamentais para a reprodução social na cidade efetivamente têm se mostrado muito mais excludentes do que includentes. Em suma, a gestão de serviços e a provisão de bens fundamentais para a vida plena de todos e de todas na cidade, do nosso ponto de vista, deveriam ser mantidas sob a gestão do poder público.
Vale a pena também comentarmos o exemplo dos estádios de futebol. O governo promoveu projetos de reforma, alteração ou de construção dos estádios através das PPPs e nós percebemos nesses processos uma reconfiguração desses equipamentos esportivos. Primeiro, eles deixam de se chamar estádios de futebol, e passam a se chamar arenas, como se isso expressasse uma certa forma de modernidade. Segundo, nesse processo, percebe-se a eliminação dos setores populares dos estádios, que eram mais baratos e destinados às torcidas, às classes populares. No estádio do Maracanã, havia a Geral, que era um setor popular. Terceiro, você cria mais lugares voltados para a elite, os chamados espaços VIPs, exclusivos, com atendimento diferenciado e serviços de bares e lojas. Ou seja, torcer, ir para os estádios como expressão da cultura identitária com o futebol, com o seu time, vai sendo cada vez mais substituído por uma experiência de consumo. Você vai para o estádio para consumir um espetáculo; substitui-se o torcedor pelo consumidor. Os preços dos ingressos para partidas de futebol no Brasil sofreram um aumento expressivo, excluindo as classes populares desses espaços que eram tradicionais da cultura popular brasileira.
O que temos no Brasil é a adoção desse modelo de parceria público-privada como expressão dessa difusão do empreendedorismo neoliberal, que tem se mostrado extremamente perverso. Perverso por ser excludente, e, no caso brasileiro, perverso por reproduzir e ampliar as desigualdades sociais que já são enormes. Nós somos um país que não está no centro do mundo capitalista, somos periféricos, somos marcados por desigualdades sociais e o impacto desse modelo de governança empreendedorista no Brasil é muito mais perverso do que na Europa, porque ele tende a amplificar essa desigualdade social que já é muito grande e marcante no caso das nossas cidades.
Böll Brasil: Em sua opinião quais foram os impactos positivos e negativos das transformações urbanas?
Para agentes empresariais, grandes construtores, os capitais vinculados ao turismo ou ao mercado hoteleiro, certamente foi positivo. Esses agentes se beneficiaram dos investimentos da Copa. Para alguns governantes locais também podem ter tido impactos positivos, porque tiveram oportunidade de levar adiante a reestruturação urbana e o seu projeto de poder nas suas cidades. Mas para as cidade, eu diria que os impactos foram negativos porque os investimentos reforçaram desigualdades socioespaciais já presentes nas cidades brasileiras. Do ponto de vista das classes populares nós também tivemos efeitos perversos muito violentos, com os processos de violação de direitos que muitas comunidades sofreram. Então, se nós entendemos a sociedade como uma diversidade de agentes, nós vamos perceber que há perdedores e vencedores. Bom, os “vencedores” foram os organismos internacionais que representam os interesses econômicos das grandes corporações: a FIFA, o COI, os grandes patrocinadores desses eventos, os grandes grupos de comunicação, eles todos ganharam. E os “perdedores” foram as classes populares que não receberam os investimentos capazes de reverter as desigualdades já existentes, muito pelo contrário. As classes populares ainda sofrem os impactos dos investimentos que ocorreram nessas ciidades, que efetivamente se expressam em processos de desigualdade socioespacial mais agravados.
Böll Brasil: Você pode dar alguns exemplos de violação dos direitos humanos neste contexto?
Primeiro, a violação do direito à moradia das comunidades que foram afetadas pelas remoções. Várias remoções foram feitas de forma violenta nesse processo de reestruturação urbana das cidades sedes. Nós tivemos também uma violação do direito à informação. A população não foi efetivamente informada sobre os gastos, sobre os projetos que foram implementados. Outro exemplo foi a violação do direito à participação; a violação ao direito ambiental, dos projetos que violaram a legislação e que representaram verdadeiramente a subordinação da natureza aos interesses econômicos, como no caso da construção do campo do golfe no Rio de Janeiro.
Böll Brasil: E as violações aos processos democráticos?
Sim, neste caso, percebe-se processos de clara violação do direito à participação e à informação. Pois quem decidiu esses investimentos não foram as populações locais. Então, houve um processo decisório que não passou pelos canais de participação democrática instituídos, inclusive os parlamentos que não decidiram nada. O processo decisório sobre esses investimentos ocorreu em outras instâncias.
Böll Brasil: Você sabe o que aconteceu com os estádios, o Porto Maravilha e todos os projetos urbanos que foram feitos? Tiveram um benefício público?
Primeira coisa: é necessário desconstruir a própria ideia de legado. Legado é um conceito acionado para legitimar um projeto de reestruturação da cidade sem que se discuta que projeto de cidade é esse. Se difunde a ideia de que a Copa do Mundo e as Olimpíadas trazem um legado para a cidade e isso se transforma numa verdade. A ideia de legado legitima um projeto que está sendo imposto de cima para baixo às cidades.
No caso da cidade do Rio de Janeiro, um ano depois da Olimpíada, eu diria que nós temos uma cidade mais desigual do ponto de vista socioespacial. Tivemos efetivamente investimentos concentrados em determinadas áreas: Zona Sul, a Zona Portuária e a Barra da Tijuca, que expressam as centralidades da cidade do Rio de Janeiro. Os investimentos nessas localidades foram acompanhados de remoções com a transferência de comunidades que estavam situadas nessas áreas para a periferia. Então podemos ler o resultado desse processo de realização das Olimpíadas como um processo de aprofundamento do padrão segregador de urbanização que já é uma marca da cidade. Eles transferiram a população para a periferia e investiram nessas áreas centrais, recursos e equipamentos que foram destinados às classes média e alta. Houve muito investimento especulativo, as empreiteiras, os promotores do evento, esses ganharam para realizar as obras, ganharam por causa do evento, ganharam pela transmissão na televisão, apenas ganharam. Mas esses investimentos especulativos já estão se mostrando insustentáveis como é o caso do Parque Olímpico onde é possível ver vários equipamentos abandonados. Temos um conjunto de equipamentos esportivos que expressam esses investimentos especulativos e que não mostram condições de sustentabilidade. Isso é a expressão da irresponsabilidade da gestão pública neste processo. Outro problema grave é a crise fiscal do estado. A realização desses megaeventos veio acompanhada de inúmeras isenções fiscais que não são transparentes, assim como as ações da Fifa, do COI e seus aliados e as empresas que são patrocinadoras desses eventos. Buscando superar uma análise maniqueísta, também é evidente que, para atender a esses grandes interesses, o governo também foi obrigado, seja por uma exigência da própria reestruturação urbana em curso, seja por uma exigência de legitimação social, a fazer alguns investimentos que beneficiaram as classes populares em algumas localidades. Por exemplo, para tornar a Barra uma centralidade, foram construídos sistemas de mobilidade urbana, os BRTs, que beneficiaram bairros populares como: Madureira e Vicente Carvalho, mas foram beneficiados de forma subordinada aos interesses desses grandes econômicos vinculados ao capital imobiliário e aos grupos corporativos.
Böll Brasil: E em sua opinião o que deveria ter sido feito diferente no planejamento das transformações urbanas?
Houve uma série de imposições tanto da Fifa quanto do COI que subordinaram os investimentos realizados aos interesses de grandes corporações. FIFA e COI são instituições que se dizem sem fins lucrativos, mas na verdade, representam interesses de grandes corporações e defendem interesses econômicos que estão envolvidos na realização desses megaeventos. Assim, a primeira coisa que deveria ter sido feita seria dizer que nós não aceitamos a subordinação do nosso povo, do nosso pais, da nossa cidade aos interesses dessas corporações. Em segundo lugar, era necessário ter construído um processo participativo de decisão sobre os investimentos que iam ser realizados. O plano de políticas públicas poderia ter sido discutido de forma democrática. Para dar uma ideia do que estou falando, foram investidos bilhões na construção do sistema de mobilidade no Rio de Janeiro. No entanto, além desses investimentos estarem concentrados espacialmente nessas três áreas - Barra da Tijuca, Centro e Zona Sul-, eles também estão concentrados no município do Rio de Janeiro ignorando o fato da cidade ser a segunda maior metrópole brasileira. Não foi investido nem um centavo no sistema de mobilidade que integram a cidade ao leste metropolitano, São Gonçalo, Niterói ou à Baixada Fluminense. Ignorando a dimensão metropolitana da nossa região, esses investimentos foram realizados sem qualquer discussão democrática, sem qualquer debate transparente e participativo. Também é preciso questionar esse modelo de realização das Olimpíadas, no qual uma cidade sedia todas as modalidades esportivas. O impacto disso sobre as cidades é muito grande: construir equipamentos esportivos para todas as modalidades, receber uma grande quantidade de pessoas das delegações de todos os países, de todas as modalidades. Este é um modelo que não faz mal apenas para o Brasil, pro Rio de Janeiro, faz mal para qualquer cidade do mundo porque esse modelo de megaevento esportivo é insustentável se você olhar o que é exigido para uma cidade sediá-lo.