Raízes: a resistência no Alemão em forma de cultura

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Instituto Raízes em Movimento

No primeiro semestre deste ano, o Complexo do Alemão ganhou, novamente, centralidade na pauta dos jornais. No entanto, não foi pela diversidade cultural e pelo espírito de luta e resistência dos moradores destas favelas. Como ocorre de tempos em tempos, o Alemão virou notícia por conta do aumento dos níveis de violência na interminável guerra entre policiais e traficantes no Rio de Janeiro. As principais vítimas desse quadro seguem sendo, invariavelmente, os próprios moradores do Complexo, reféns do medo e da insanidade de uma guerra inexplicável.

Já morreram ao menos 10 pessoas, e mais de 30 ficaram feridas desde o começo deste ano. Os policiais das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) estão tentando construir um bunker dentro de uma das favelas do Complexo. Sofreram retaliação diária do tráfico, gerando dentro do Complexo uma área que funciona praticamente como zona de guerra. Neste confronto, a polícia teria simplesmente ocupado casas de moradores, passando a tratá-las como sua propriedade.

Em abril, moradores da Grota, uma das principais comunidades do Complexo do Alemão, fizeram uma grande manifestação contra a violência na região. O ato ocorreu após a morte de Paulo Henrique de Moraes, de 13 anos, baleado durante um confronto entre policiais e traficantes. No mesmo mês, também houve audiência pública para se discutir a situação, promovida pelo colertivo local Juntos Pelo Complexo, Defensoria Pública, pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e Comissão Municipal de Direitos Humanos e Minorias.

No entanto, nem tudo é para se lamentar nesse cenário de violência e opressão. Parceiro da Fundação Heinrich Böll, o Instituto Raízes em Movimento atravessa essa situação de forma exemplar. Com trabalho de promoção do desenvolvimento humano, social e cultural, o Raízes criou uma série de projetos inovadores na região, nos quais os moradores são protagonistas, reprojetando seu próprio futuro.

Mesmo diante desse quadro de violações constantes, o trabalho foi amplificado e diversificado. A Fundação entrevistou um dos fundadores do Raízes em Movimento, Alan Brum Pinheiro. Articulado e combativo, Alan falou do momento difícil em que vivem as Favelas do Alemão, mas descreveu o avanço das ações culturais e políticas de sua organização.

O Raízes em Movimento faz parte de um coletivo de instituições que atuam no Alemão chamado “Juntos pelo Complexo”. Eles estão atuando junto a instituições públicas como a Defensoria e o Ministério Público, além de formular outras ações. Recentemente, a Defensoria Pública realizou uma audiência para discutir a violência na região. Fazem também parte dessa iniciativa o coletivo Papo Reto, o Favelarte, o Educap, o Ocupa Alemão e o Verdejar.


Fundação Heinrich Böll Brasil (hbs): Queria que você explicasse como é o trabalho do Raízes em Movimento.

Alan Brum Pinheiro: Nós criamos esse grupo em 2001, e nos formalizamos em 2004. Então já estamos com 16 anos de caminhada. Construímos uma identidade, a partir do trabalho e das percepções do próprio Complexo do Alemão. Desenvolvemos todas as nossas atividades dentro de dois grandes eixos. Um ligado à Comunicação e à Cultura. Fazemos debates de comunicação crítica como forma de criar novas maneiras de comunicação dentro das favelas. E desenvolvemos fortemente o trabalho cultural que, ao mesmo tempo, é fim mas também é meio, enquanto instrumento para viabilizar todos os outros trabalhos.

Fazemos oficinas críticas de fotografia, de audiovisual, grafite. Temos um trabalho de cineclube, de cinema na rua. E temos um momento de culminância anual, um evento que já fazemos há 13 anos. O “Circulando, diálogo e comunicação na favela” agrega todo nosso trabalho. É um momento de unidade no Complexo do Alemão. Quase todos os grupos, instituições, pessoas que estão atuando na área social, apresentam seu trabalho. Nós também convidamos artistas de outros espaços da cidade que não sejam de favela, promovendo maior intercâmbio.

 

hbs: Quando vai ser o próximo?

ABP: Geralmente é em dezembro. Todas essas ações estão dentro do Circulando e são apresentadas nesse dia também. Na área de audiovisual, é um projeto que realizamos desde 2014 – um processo de formação e construção de documentário. Então, a turma de jovens vai aprendendo a parte técnica, e executando a partir de um tema pré-definido. Fizemos em 2014 um documentário chamado “Copa para Alemão ver”, em que fazíamos uma discussão sobre o cenário da Copa, e discutíamos também a questão da Copa nas favelas do [Complexo do] Alemão e do [Complexo da] Penha. Conseguimos fazer também o lançamento na Europa a partir da parceria com a instituição belga Victória de Luxe. Agora estamos com a segunda turma do Favela Doc, e está sendo produzido um novo documentário de memórias sobre as religiões de matriz africana nas favelas, pois é uma questão bastante problemática nas favelas hoje.

hbs: Está crescendo a intolerância, não é?!

ABP: Já tem estudo sobre essas perseguições. Mas o legal no documentário nem é registrar o preconceito e a perseguição. Mas apontar quais são os caminhos encontrados para suplantar esse cenário, suas histórias, suas memórias. E isso foi definido pelos alunos.

hbs: Você tinha dito que havia dois eixos de trabalho. Qual é o outro?

ABP: O outro programa é o de produção de conhecimento em ligação direta com as universidades, com produção de conhecimento acadêmico, técnico, popular e de vivências. A ideia é promovermos o desenvolvimento local a partir de diálogos dos diversos saberes produzidos pelas favelas, sobretudo no Complexo do Alemão. Esse programa é chamado de CPDOCA. Nós começamos brincando com o nome do CPDOC da FGV, e acabou ficando Centro de Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão (CEPEDOCA). Neste programa, por exemplo, nós fazemos, desde 2010, o encontro mensal de pesquisadores, no qual discutimos, fazemos debates, criamos fluxos das suas produções, ou seja, como elas podem ser apropriadas. É um problema a produção de conhecimento que fica longe do próprio objeto de estudo. Convidamos também outros pesquisadores, que apresentam suas pesquisas, como está sendo o processo de pesquisa, etc. Mas neste encontro não tem só pesquisadores. Nós chamamos também estudantes de graduação das favelas, principalmente do Alemão.

Desse encontro, criamos outro trabalho, que está em andamento desde 2013, o “Vamos Desenrolar”. São encontros que fazemos em praça pública, com alguns temas definidos. Sempre chamamos um ou dois pesquisadores, na verdade dinamizadores do debate, e fazemos uma grande roda na rua, em diversos espaços do Alemão, com alto-falante. Depois das falas iniciais começa o debate, e vamos trocando uma conversa. Esse trabalho é filmado pelas pessoas que estão no Favela Doc. Os dinamizadores, moradores e pesquisadores, fazem também um artigo não acadêmico, cada um deles relatando a sua percepção sobre o tema. Essa é a forma de colocar esses grupos diversos para dialogar, e disponibilizar um fluxo de apropriação dessa produção de conhecimento para outros lugares.

Hoje, em andamento, além desses dois, estamos desenvolvendo um trabalho de memória e identidade com 12 jovens alunos de ensino médio das escolas públicas da região. É um projeto chamado Raízes Locais - Memórias e Identidades. Estão levantando a memória do Complexo do Alemão. Trabalhando a sua memória afetiva sobre esses lugares. Depois eles passam a fazer entrevistas com moradores antigos, vizinhos, parentes deles, pessoas da primeira geração de moradores do Alemão. A proposta também é um trabalho de memória intergeracional.

hbs: Esse trabalho é feito a partir de uma parceria com a UFRJ?

ABP: Todo o CEPEDOCA neste momento é feito a partir de parceria com a UFRJ, nas diversas atividades que nós desenvolvemos. Temos uma parceria de cinco anos, que é intercâmbio cultural, acadêmico e de extensão, mas não envolve recursos. É um convênio geral que facilita você trabalhar com os departamentos da universidade. Mas, a partir disso, conseguimos captar recursos via UFRJ.

hbs: No seu entendimento, quando começou esse momento ruim que o Alemão está vivendo?

ABP: Na realidade, nós nunca saímos desses momentos. Nós apenas entramos em uma fase mais acirrada, e isso não é uma exclusividade do Complexo do Alemão. É uma situação que se dá pela deterioração das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), que a nosso ver – e sempre colocamos isso – não eram um programa de segurança pública como foi oferecido.

hbs: Mesmo no período do auge das UPPs, tinha muito problema aqui, não é?!

ABP: Sempre houve problema. Não havia problema no restante da cidade. O restante da cidade se sentia seguro com uma imagem de que as favelas, os pobres, estavam controlados. Nunca foi uma política pública para promover segurança para os favelados, e sim para promover a sensação de segurança para determinadas partes da cidade. Isso pra nós sempre foi uma leitura muito clara. Se as pessoas e os próprios estudiosos atentarem para as políticas de segurança que tivemos no Rio de Janeiro desde 1982, com [o então governador Leonel] Brizola, a UPP não tem nada de novidade. Nada. Já teve vários momentos: a polícia da paz, a polícia de faroeste do Marcelo Allencar, a política do GPAE do [Anthony] Garotinho. O GPAE era muito parecido com as UPPs. A questão é que nunca se mexe com a estrutura, os equipamentos. Então se cria uma teoria que na prática não se realiza. E isso está acontecendo em todos os lugares. Pelo menos no início tinha comando. Hoje nem isso tem mais. Hoje só existe controle do Comando Geral da PM para o Comando Geral das UPPs. Não existe mais do Comando Geral das UPPs para os comandantes de cada uma das UPPs. Já quebrou. Estamos vendo isso na prática. Você tem subgrupos Mas estamos fazendo reivindicação, problematizando.

hbs: Há quanto tempo isso vem acontecendo, na sua opinião?

ABP: Talvez uns dois anos. Mas é um caminhar. Na área de segurança, sempre quando há uma política pública, ela se embasa simplesmente na hierarquia. Essa hierarquia não tem uma sustentação, e vai se quebrando. Ficamos assim à mercê de pequenos grupos de policiais. Tem lugares do Alemão onde as pessoas já sabem quem são os policiais de plantão, e agem de forma diferente dependendo de quem seja. Tem determinado grupo de policiais que o plantão deles é o dia do terror. Você tem que ficar mais arredio, mais atento, com mais cuidado, porque pegam mais pesado ainda com a população. A forma de abordagem já é criminalizante. Não é uma garantia de segurança – porque é direito fazer abordagem. Mas é uma forma de dizer: ‘todos são traficantes até que provem contrário’. Então, a criminalização é constante, sobretudo da juventude, dos rapazes, sobretudo dos negros. Então, você vai aprofundando o recorte: população-jovens-homens-negros. Nesse corte, o acirramento é maior. Se é jovem, homem e negro, ele é traficante no olhar da polícia.

Hoje temos casas de moradores que estão invadidas pela polícia, na ideia de que isso é necessário para fazer o enfrentamento. Eles estão em lajes, em casas de moradores que estavam, em algum momento, alugadas ou vazias. Eles se apropriaram, e criaram um bunker. Nós fizemos uma audiência pública, e a partir dali, três dias depois, a Defensoria entrou com uma petição, e saiu a decisão judicial para sair imediatamente, sob pena de multa. Mas nem decisão judicial é cumprida mais.

hbs: Com que intenção eles estão invadindo casas?

ABP: Para fazer enfrentamento direto com os traficantes. Só que esse enfrentamento, no nosso entendimento, ou deve ser feito de uma forma que garanta a vida das pessoas, ou não se faz. Porque em todo o processo de segurança pública, o principal ponto de partida precisa ser o de se preservar vidas, independente de haver traficantes. Se a polícia não tem estratégia, não dá. Porque ela é o estado. A gente não tem que cobrar do outro lado. Muita gente pergunta por que a gente não cobra dos traficantes. Não temos de cobrar dos traficantes, porque eles são fora da lei.

Tem que pensar política pública de segurança com inteligência, e que possa neutralizar aquele que tem de ser neutralizado, sem colocar em risco sistematicamente a vida das pessoas como um todo, em um espaço que é da cidade. Porque esse espaço tem que ser reconhecido como da cidade. Não pode ser um espaço em que as pessoas e o espaço são criminalizados.

Ontem, por exemplo, eu estava vendo a prisão da irmã do Aécio [Neves]. Não tinha ninguém em casa. Aí a polícia chega e a casa está fechada, manda chamar o chaveiro pra abrir a porta. Se fosse aqui... Quando eles vão chegar em uma casa de favela e, encontrando fechada, vão chamar o chaveiro? Se o morador estiver lá dentro eles já estão arrombando. São essas questões de tratamento estrutural, e de preconceito social, de classe, que orientam esse processo. Então isso não vai dar certo nunca. Tem que se reestruturar sob outros patamares. Pensar segurança pública não necessariamente é pensar em polícia. A gente precisa pensar em ambiente seguro.

hbs: Qual é o impacto que isso tem no pessoal que frequenta o projeto – impacto psicológico sobretudo?

ABP: O impacto é praticamente diário. Agora, o grave são os problemas psicossomáticos. E nós temos aonde comprovar isso. Temos a Mônica, que é fisioterapeuta, e atende os moradores do Alemão. Ela tem uma quantidade enorme de pacientes pelo contexto de estresse nesse cenário de conflito constante. Há muita gente com paralisia facial – momentânea ou permanente, porque esse estresse afeta o sistema nervoso. Tem também uma quantidade imensa de incidentes de AVC, provocados por esse tipo de ambiente. Além de enormes problemas cardíacos.

Há relatos de mães que vão levar seus filhos para a escola, e o ir e o voltar são problemáticos. É perigoso. Dependendo da área do Alemão – tem área onde o conflito é deflagrado, e área onde é menos. Tem áreas onde é caótico, como a Alvorada. Tem conflito todo dia. Então, a situação do Complexo do Alemão é um reflexo de uma política de segurança pública falida desde o início. Na verdade, é uma política de controle. Ou seja, a forma como sempre foi feito, e continua sendo feito. A gente tem ido ao Ministério Público, que poderia ter sido mais enfático, e não é.

hbs: Há também hoje uma divergência no movimento de direitos humanos quanto à necessidade ou não de diálogo com a polícia. Você não percebe isso?

ABP: Diálogo com a polícia? Eu vou te dizer que não consigo visualizar. Eu não participaria, em nenhuma hipótese, de qualquer tentativa de diálogo com a polícia. Não há possibilidade nenhuma. É zero. Para se ter uma ideia, nós convidamos para a audiência pública a Secretaria de Segurança e o comandante geral da Polícia Militar, para discutir segurança pública na audiência. O secretário de Segurança não foi, ele mandou uma subsecretária. Não foi o comandante geral da PM, ele mandou o comandante das UPPs. O comando já mandou seus subordinados para discutir. Fora isso, na plateia, a gente tinha quase 30 policiais, todos do Alemão. Então, os moradores do Alemão foram lá justamente para sair de um lugar onde poderiam ser intimidados de falar, e chega lá você tem mais de 30 policiais que estão lá para intimidar.

[Na audiência pública] houve conflitos dos policiais com as pessoas. Os policiais levantaram e foram embora. Desrespeitaram o seu próprio comandante, na frente de todo mundo. E o comandante de uma das UPPs colocou todos os participantes como coniventes com o tráfico. Disse que eram todos drogados. Falou isso na audiência pública. Estávamos em um espaço que foi feito para o diálogo, e de certa maneira era um diálogo institucional. Estava querendo um posicionamento sobre as mortes, sobre as casas invadidas. Não há nenhuma hipótese de diálogo com essa polícia que está aí. Não há como.

hbs: Qual deveria ser a estratégia da sociedade civil?

ABP: O Raízes em Movimento, de 2013 para cá, entende que precisamos criar um corpo da favela que esteja pensando e produzindo conhecimento sobre sua própria favela. É o embate no campo do conhecimento que vai poder criar políticas públicas mais prudentes, que tenham um impacto na qualidade de vida. É em outro campo, outro patamar que a gente precisa construir esses espaços, e isso só vai se dar se criarmos um outro leque de alianças, primordialmente a partir de conhecimento e de produção de dados e informações. Seja para discutir legalização das drogas, para discutir quais são as prioridades, saneamento básico, mobilidade, educação, saúde. É ir para o campo de disputa em um sentido mais democrático, pois estamos em desvantagem na correlação de forças.

Nós aqui no Raízes denunciamos à Comissão de Direitoss Humanos da Alerj para entrarmos com um processo no Tribunal de Contas do Estado em 2012 sobre desvio de dinheiro do PAC. Mas a sociedade não escuta. E agora prendem o [ex-governador] Sérgio Cabral, que só daqui do Alemão levou R$ 300 milhões. A gente falava de colocar saneamento básico ao invés de teleférico. Todo mundo quer água e esgoto. A qualidade de vida melhora substancialmente. Em primeiro lugar a saúde. E com saúde você faz um monte de coisa. Na melhor das hipóteses, há sempre a lógica da próxima eleição – de criar o caixa da próxima eleição. As empreiteiras sempre fazendo os ajustes para ganhar mais. Utilizam menos material, não entram em obra complicada. E eu não estou falando deste governador somente não. A crítica é a todo o sistema. Todos os governadores também ganharam. É uma lógica que está estabelecida. Então, eu só vejo saída a partir do momento que a gente tenha força, espaço e ocupação dos cenários em que essa correlação de forças esteja um pouco mais igualitária, para garantir políticas públicas eficientes.

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O RAÍZES EM MOVIMENTO É PARCEIRO DA FUNDAÇÃO BÖLL HÁ TRÊS ANOS

A Fundação Heinrich Böll Brasil apoia o Raízes em Movimento desde 2014. Uma das iniciativas apoiadas o evento “Circulando, diálogo e comunicação na favela”, além do projeto “Vamos Desenrolar”, que promove debates e discussões em praça pública. No último ano, houve ainda um apoio complementar ao Favela Doc, produção de documentários e formação de jovens profissionais de audiovisual.