“O sistema prisional brasileiro é punitivo, seletivo e racista”, afirma Isabel Lima, da ong Justiça Global

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Presos mortos são enterrados em Manaus

O ano de 2017 mal começou, e o Brasil se deparou com acontecimentos trágicos que agravaram a crise em seu sistema prisional. No Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus (AM), logo no primeiro dia do ano, uma rebelião vitimou 56 presidiários. Apenas cinco dias depois, na maior prisão de Roraima, a Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, foram 33 mortos. E no último dia 14, a revolta foi no Rio Grande do Norte. Na Penitenciária Estadual de Alcaçuz mais 26 pessoas foram encontradas mortas.

Nas últimas duas décadas, foram muitos os momentos em que a barbárie nos presídios atingiu patamares ainda mais vultosos, e ganharam expressão na mídia. Em 1992, com o massacre do Carandiru em São Paulo (SP), em 2002, com o Urso Branco em Rondônia, em 2013, com Pedrinhas no Maranhão, em 2014, com Cascavel no Paraná, e em 2015, com Curado em Pernambuco. A sequência de tragédias anunciadas traz a luz o que os defensores já denunciam há tempos – o sistema está superlotado e crescendo a níveis incomuns diante da média mundial. Assim, uma série de outros debates são resgatados pelo agravamento da crise: a necessidade de se rever a política de drogas, a mentalidade punitivista de setores da Justiça, o excesso de prisões provisórias, e políticas públicas desconectadas do diagnóstico produzido por seus próprios governos.

Para analisar esse cenário dramático, a Fundação Heinrich Böll entrevistou as coordenadoras da ong Justiça Global, Isabel Lima e Sandra Carvalho,. Na última semana, Isabel e Sandra visitaram Manaus, em uma comitiva formada por organizações e entes públicos para investigar o contexto da chacina no Anísio Jobim. Junto a outras organizações, a Justiça Global divulgou, no dia 13, uma “Carta aberta sobre a situação do sistema penitenciário do Brasil”.

Fundação Heinrich Böll (HBS): A população carcerária é enorme no Brasil (622 mil presos). O super-encarceramento seria a principal causa do que estamos assistindo hoje?

Isabel Lima (IL): Sem dúvida, o super-encarceramento é um problema central. O Brasil é a quarta maior população carcerária do mundo, e tem a sexta maior taxa de encarceramento. A taxa é de 306 pessoas por 100 mil habitantes. No Brasil segue crescendo a taxa de encarceramento, enquanto em outros países ela decresce.

HBS: Parece que cresceu 167% em 16 anos...

IL: Sim. É uma política criminal seletiva, na qual a população negra, pobre, com baixa escolaridade e baixa renda é encarcerada. É um sistema extremamente punitivo, seletivo e racista.

HBS: Esses elementos que você citou também estão presentes nestes outros países que têm alto índice de encarceramento. Talvez estes países já estejam percebendo o fracasso desse modelo. Eles já estão testando outras alternativas?

IL: Sim, embora eles também tenham ainda altas taxas de encarceramento. Estão longe de reverter o problema. O Brasil está indo na contramão, apresentando sempre propostas de mais endurecimento penal e mais repressão, mesmo quando se apresenta alguns caminhos, como as audiências de custódia – esse é um ponto sobre o qual se tem falado muito agora, como solução.

Ainda há uma luta para que seja aprovada a lei que cria as audiências de custódia e para que quando  aprovada não seja descaracterizada em seus objetivos, que é a obrigatoriedade da rápida apresentação da pessoa presa em flagrante ao juiz. Na tramitação do projeto, está sendo proposta uma série de emendas, como por exemplo a abolição da necessidade de apresentação ao juiz e audiências por videomonitoramento. É um absurdo, porque um dos objetivos da audiência de custódia também é verificar situações de tortura que possam ter acontecido no momento da prisão. Também se propõe a extensão do prazo – ao invés de 24 horas, a pessoa poderia ser apresentada ao juiz em 72 horas.

HBS: Mas o projeto original, sem as emendas, reduziria esse número enorme de pessoas encarceradas...

IL: Aí qual é o outro problema? A atuação do Judiciário. A Justiça Global acompanhou, durante três meses, as audiências de custódia no Rio de Janeiro, em um projeto de mapeamento dos presos provisórios. O que a gente vê é que permanece uma cultura extremamente punitivista e seletiva do Judiciário na audiência de custódia.

HBS: Você saberia dizer quanto, proporcionalmente?

IL: A gente tem os dados produzidos durante esse nosso período de observação. A Defensoria Pública, inclusive, apresentou um dado de que as pessoas negras, na audiência de custódia do Rio de Janeiro, têm 32% mais chances de serem mantidas presas do que as pessoas brancas. No nosso relatório, apresentamos vários casos emblemáticos, de pessoas que foram presas e não deveriam ter sido mantidas presas.

Outro elemento é um Judiciário e um Ministério Público extremamente punitivista e racista. Isso também compromete as aplicações das audiências. Muitas vezes, na audiência, quando é dada uma medida que seria alternativa à prisão, ela é utilizada na verdade como alternativa à liberdade. Você não deixa de encarcerar pessoas – você encarcera mais ainda com a prisão provisória.

HBS: Ainda sobre essa questão da superlotação, qual é o impacto da criminalização das drogas?

IL: Desde 2006 existe a nova lei de drogas no Brasil. Crimes relacionados à lei de drogas são os que mais geram encarceramento. O problema de superpopulação prisional está ligado a crimes contra o patrimônio, cerca de 46% e crimes relacionados à lei de drogas, cerca de 28%, segundo os últimos dados de 2014. Então, a lei de drogas propõe um endurecimento, no caso do tráfico, de penas que não geram diminuição da violência, nem da criminalidade. Teoricamente ela muda a relação quando a pessoa é identificada como usuário. Mas o que vai diferenciar quem vai ser tratado como usuário ou como traficante são elementos extremamente subjetivos. E, nestes casos, essas prisões dificilmente são fruto de investigação e sim, de prisões em flagrante, feitas por policiais que muitas vezes são as únicas testemunhas.

Há outro debate também. O juiz considera o local onde a pessoa estava. Se é, por exemplo, conhecido por ter varejo de drogas ilícitas, a pessoa já é enquadrada como traficante, mesmo que ela esteja com uma quantidade muito pequena, que poderia ser para consumo próprio. Também considera o local onde a pessoa mora – é criminalização da pobreza e racismo.

HBS: Um outro debate que está sendo levantado, a partir desse colapso que aconteceu, é a divisão dentro dos presídios por facção criminosa. Qual é a posição de vocês sobre isso?

IL: É claro que o Estado não pode ignorar uma questão concreta. Pode ser uma medida para preservação da vida. Mas é muito complicado. Não dá pra naturalizar isso, que o Estado opere com essa lógica e a oficialize. As facções são fortalecidas e se expandem na realidade prisional, e é complicado que o Estado alimente isso. Então hoje, se a pessoa chega no presídio e não se reconhece como pertencendo a nenhuma facção, ela vai precisar aderir a uma facção.

Sandra Carvalho (SC): É impossível que essas facções se mantenham dentro dos presídios sem uma relação de, no mínimo, conivência com os agentes do Estado. Isso é algo que a gente tem que tomar muito cuidado para não fortalecer. Mas o não reconhecimento de que elas existem também redunda em uma invisibilização que acaba fortalecendo esse esquema criminoso, que não é só por parte das pessoas privadas. Também tem a participação de agentes públicos, certamente. E elas se fortalecem, também, no vácuo deixado pelo Estado.

A outra questão que é muito grave aqui no Rio – e a Justiça Global e a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio já denunciam há muitos anos – é o fato de que uma pessoa moradora de uma comunidade dominada por uma determinada facção, se porventura cair dentro do sistema prisional, mesmo não participando de nenhuma facção, já era catalogada como pertencendo a uma.

Em relação à rivalidade das facções, isso realmente é real. E se a gente for pensar lá na tática do PCC, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, eram matanças muito semelhantes às que  estamos vendo agora, muito violentas. Eram rebeliões com esquartejamento, com o grau de crueldade que vemos hoje, como uma tática de dominação de outras facções. Se formos pensar a chacina de 2002 em Rondônia, com 27 mortos, foi muito semelhante ao que a gente vê em Manaus. 

IL: E mesmo nestes conflitos que são atribuídos a guerras de facções, estão presentes outros elementos fomentando isso: a superpopulação carcerária, as condições degradantes, cruéis e desumanas do sistema. Existe uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária sobre o número de agentes penitenciários que devem estar trabalhando no sistema. Também tem indicação da ONU determinando. E o Brasil não cumpre isso. O número de agentes trabalhando é baixo, ou seja, totalmente desproporcional e muitos deles estão despreparados. 

HBS: Esse rompimento que aconteceu entre o PCC e o Comando Vermelho (CV) influenciou?

IL: Ouvimos de mais de um ator: do secretário de administração penitenciária, do defensor público da União, do Ministério Público, alertando sobre esse elemento da fronteira, da disputa pela rota do tráfico internacional.

SC: Nós ouvimos isso de autoridades em Manaus, mas não temos nenhum outro elemento oficial. Dizem que o Rio Solimões é uma rota importante de escoamento da cocaína, e que com a situação da Colômbia sofrendo modificações, essa rota estaria em disputa.

HBS: Houve uma série de avisos, não é? Teve uma visita da ONU...

IL: Tem relatório do Subcomitê para Prevenção da Tortura da ONU, tem relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, e inúmeras cartas que os presos escreviam e entregavam para as autoridades sobre essa ameaça. As pessoas foram transferidas, mas a ameaça permanece. Elas continuam da mesma forma anunciando que eles estão muito vulneráveis, e ainda temem muito pela vida.

HBS: Nessa conversa que vocês fizeram com os familiares, o que eles diziam?

IL: Eles tocaram muito nesse ponto, da tragédia anunciada, o que é muito grave.

SC: Também fizeram muitas reclamações em relação às condições do presídio. Como é um presídio parcialmente privatizado, eles tinham que pagar por tudo. Tinham de levar alimentação, porque era insuficiente, além de levar e comprar medicamentos.

IL: Havia muitas reclamações sobre a gestão do presídio – a gestão privada da Humanizare [empresa que administra o Anísio Jobim].

SC: Virou um comércio paralelo ali dentro. Conversamos com o Ministério Público sobre isso. A gente vai recomendar, no nosso relatório, a investigação dos contratos.

HBS: A Humanizare aparentemente tem vínculos inclusive com o financiamento da campanha do governador do Amazonas.

IL: E com o financiamento de campanha de parlamentares que, no Congresso, estão atuando pela redução da maioridade penal, e pelo aumento do tempo de pena. Desde o dia 2 de janeiro, nenhum outro ator público pôde conversar com essas pessoas que estavam nesse episódio. Só o [Batalhão de] Choque. Nós fomos impedidos de entrar.

SC: E nem todos eles foram levados para o exame de corpo de delito. Só foi levado quem foi transferido. Quem foi levado para o hospital não passou pelo exame. No dia que a gente estava com o secretário de administração penitenciária, ele falava que o clima estava muito tenso, e que tinham armas lá dentro ainda. Então, ninguém sabe realmente o que está acontecendo lá. Isso compromete a investigação.

HBS: Essa privatização de presídios, como aconteceu em Manaus, é uma coisa que está crescendo no Brasil?

IL: Está crescendo, sobretudo, a pressão para que isso se expanda. A [Agência] Pública fez uma matéria interessante sobre Ribeirão das Neves, que já apontava isso. O governo do estado se compromete a manter o número de pessoas presas – 90% da lotação. Ou seja, não é interessante que diminua o encarceramento.

SC: Começamos a ver isso no Espírito Santo há alguns anos, a contratação das prestadoras de serviço. Em um primeiro momento, isso começa só com a alimentação. Depois, vem o corpo técnico – a contratação de agentes passa a ser privada. [No Complexo Penitenciário de] Pedrinhas, no Maranhão, a mesma empresa que presta serviço é a que faz a segurança da Vale, empresa que está reprimindo protestos na região. É a mercantilização da segurança.

HBS: A partir dessa visita a penitenciária de Manaus, como é que vocês estão planejando atuar no próximo período? É possível acionar alguma instituição internacional?

IL: Vamos apresentar um pedido de audiência para o próximo período à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, com várias organizações. A Corte, nesse caso, reconhece a política de super-encarceramento no Brasil como um problema. O aumento de vagas, sempre apresentado como solução, segundo ela não é uma saída, e o Brasil precisa reverter essa política super-encarceradora.

Uma das coisas na agenda do desencarceramento construída por um conjunto de organizações e movimentos sociais é que o Brasil deve, além da revisão da política de drogas, frear a construção de novos presídios, o que sempre é apresentado como primeira medida, e que só expande o problema e aprofunda a desigualdade.

HBS: O que é que vocês encontraram lá em Manaus em relação à atuação organizada da sociedade civil?

IL: Em Manaus só há dois defensores públicos dedicados à execução penal. Inclusive na reunião com familiares, estavam lá dois representantes de uma comissão de aprovados no concurso da Defensoria Pública que ainda estão lutando para serem empossados e nomeados. Só há um juiz de execução, com oito assessores, para dar conta de 17 mil processos. Ou seja, a porta de entrada é gigante, e a de saída é um funil.

SC: Conversamos com uma senhora que estava lá, desesperada, porque seu filho tinha sido condenado a quatro anos e seis meses por desacato. Estava bêbado e discutiu com um policial. Também tinha outro que estava preso provisoriamente há um ano e pouco por omissão de socorro... Um outro estava condenado, já cumprindo pena, a um ano e dois meses, por tentativa de furto de um celular. E eles não têm assessoria jurídica...

IL: O fortalecimento da assistência jurídica é outro elemento dos caminhos e propostas. Porque fazer assistência jurídica é central. Além disso, desses casos, tem um número enorme no Brasil inteiro de pessoas que deveriam ter direito a progressão de regime, ou até já tiveram, mas não foi cumprida a decisão. Então cumprem pena em um regime mais duro, quando poderiam estar em semiliberdade.

Cerca de 40% das pessoas no Brasil estão presas provisoriamente. Ou seja, pessoas sem condenação. E a audiência de custódia serviria para diminuir o número de prisões provisórias, e não está sendo cumprida.

HBS: Gostaríamos que vocês fizessem uma avaliação da atuação do ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, nesse processo.

IL: É lamentável. Ele apresenta soluções que vão por esse caminho de mais repressão, mais endurecimento de penas, aumento de vagas. Essas são apenas soluções que ampliam o problema. Então, o complicado é que ele propõe políticas totalmente descoladas de um diagnóstico da realidade. Por mais que a produção de dados sobre o sistema prisional seja algo que ainda precise ser encarado com mais seriedade, porque os dados são frágeis, mas há muita estatística.

SC: Ele quer utilizar a Força Nacional também... Todos os casos que a gente acompanhou da entrada da Força Nacional no sistema prisional resultaram em várias violações de direitos*.

IL: Ele quer contingenciar recursos do Fundo Penitenciário (Fupen). Tudo isso ele está apresentando no Plano Nacional de Segurança Pública, que é muito trágico. Ou seja, não encontra nenhuma sustentação na realidade do que tem sido produzido de informação, inclusive do próprio Ministério da Justiça.

*No dia seguinte à realização desta entrevista, o governo federal autorizou a atuação da Força Nacional nos presídios, para conter rebeliões.