A igualdade entre gêneros nas práticas esportivas e o papel do esporte na promoção dos direitos da mulher têm sido objeto de constante debate. Para além dos benefícios do esporte à saúde feminina, a constatação de seu desempenho como ferramenta para a promoção da equidade de gêneros é consenso no mundo atual.
Embora só tenha admitido mulheres entre seus membros em 1981, o Comitê Olímpico Internacional (COI) tem transformado a igualdade de gêneros em “questão” nas últimas duas décadas. Desde a Carta Olímpica de 1996, que atribuiu ao COI a função de aplicar o princípio de equidade entre homens e mulheres, através do fomento à promoção das mulheres no esporte em todos os níveis e estruturas, algumas ações têm evidenciado a “questão”. A criação da Comissão do COI Mulheres no Esporte e a realização quadrienal da Conferência Mundial sobre Mulheres e Esportes são exemplos.
Os Jogos Olímpicos de 2012 foram consagrados como avanço em direção à igualdade de gêneros graças a três aspectos: a presença de 4.675 mulheres competindo no evento, que representa 44,2 % dos 10.567 atletas enviados, a participação de mulheres em todas as modalidades esportivas e a inexistência de país que impedisse a participação de atletas do sexo feminino em sua delegação.
Como e por que a igualdade entre gêneros se torna uma “questão” no Movimento Olímpico? Estariam os avanços da participação feminina nas Olimpíadas de 2012 representando uma mudança definitiva em relação à mulher no esporte?
Até pouco tempo atrás a “questão” da mulher no Movimento Olímpico não tratava de incluir, mas de restringir sua participação nas competições. Sem ter direito a competir nas primeiras Olimpíadas modernas em 1896 em Atenas, as mulheres tiveram uma lenta e gradual admissão às competições Olímpicas a partir de 1900. O gráfico 1 mostra a evolução das atletas competindo nos Jogos Olímpicos. Até as Olimpíadas de 1948 em Londres as mulheres não chegavam a 10 % do total de atletas. Até a década de 1980, a curva feminina é quase horizontal. Foi a partir dos Jogos de Los Angeles em 1984 que começou a acompanhar o crescimento da curva total, mantendo a diferença entre homens e mulheres por algum tempo. Apenas a partir dos Jogos de Atlanta em 1996, o número total de atletas começa a decrescer, enquanto o de mulheres continua crescente até chegar à situação de 44,2% de participação feminina em Londres 2012.
Fonte: COI[1]Embora as práticas esportivas funcionem como instrumento de inclusão da mulher na sociedade, a plena participação feminina no esporte ainda se encontra longe de ser conquistada.
As posições de comando
Não obstante a expressiva participação feminina nas Olimpíadas de 2012, a posição das mulheres no comando do Movimento Olímpico ainda é inexpressiva. Só em 1981 elas foram admitidas no COI, e mesmo atualmente, sua participação (23,9 % dos 92 membros) ainda é muito aquém daquela nas arenas de competição. Quanto à participação no Comitê Executivo, a situação não é diferente. Apenas 4 entre os 15 componentes (26,6 %) são do sexo feminino[2] e, dentre os 4 Vice-Presidentes, apenas uma (25%) mulher.
Em 1998, o COI estabeleceu a meta de 20% de mulheres em postos de comando para 2005[3]. O resultado de uma pesquisa por amostragem, realizada em 135 dos atuais 205 Comitês Olímpicos Nacionais (CONs), mostra que 62 CONs (46 % dos pesquisados) ainda não atingiram a meta e 10 (7,4 %) ainda se conservam sem nenhuma mulher em seus Comitês Executivos[4].
O gráfico 2 mostra a posição das mulheres no principal posto diretivo dos CONs nos últimos 7 anos. Além da quase inexpressiva presença feminina ocupando o cargo de Presidente CONs (em torno dos 5% dos CONs), esse número evoluiu muito lentamente no período, aquém do observado para o cargo de Secretário Geral (50%).
Fonte: COI[5]
A estrutura conservadora das instituições, que admitem baixa renovação de seus membros e dos cargos de presidentes pode ser a principal responsável pelo fenômeno. Esse é, por exemplo, o caso de Carlos Nuzman, que se encontra à frente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) desde 1995.
Exposição Midiática e remuneração
Como sujeitos orientadores de pensamentos e ações, os controladores da mídia, detêm também os meios para construir e desconstruir categorias classificatórias e definir hierarquias de poder. Duas têm sido as principais abordagens que relacionam mídia e gênero no esporte: o tempo midiático dedicado às competições femininas e o modo de retratação das atletas.
Sustentada em pesquisas realizadas em diferentes lugares, a ONU[6] afirma que mulheres continuam marginalizadas da indústria midiática em esportes e que os eventos masculinos dominam a cobertura em todos os níveis. O documento alerta para a representação desigual das mulheres na imprensa desportiva, persistentemente influenciada por estereótipos de gênero.
A representação midiática vai refletir em outra forma de discriminação baseada em gênero, a remuneração. Em Junho de 2015 a revista Forbes publicou o ranking dos 100 atletas mais bem pagos do mundo durante os 12 meses anteriores[7]. Na lista, apenas duas mulheres: na 26ª. posição, a tenista russa Maria Sharapova e, na 46ª. posição, a tenista americana Serena Williams. Entre os 20 mais bem pagos, nenhuma mulher.
A relação mída-patrocínio, nesse processo, é via de mão dupla. Os patrocinadores de atletas são também anunciantes na mídia e, por isso, detêm parte do poder de definir programações. A escolha dos destinatários do patrocínio, por outro lado, está sempre pautada no tempo midiático que o atleta ou a atleta recebe. Com maior tempo de exposição os homens estão em condições de vantagem na disputa por essa fonte de remuneração, reproduzindo assim as desigualdades existentes.
O Gênero como questão
O controle sobre a “feminilidade” dos corpos das atletas tem acompanhado a história do esporte moderno. Apoiada em padrões socialmente construídos com base no que Foucault chama de medicalização do sexo[8], a ideia da feminilidade foi determinante na definição do tipo de esporte admitido ou não às mulheres nas competições Olímpicas.
A partir dos Jogos Olímpicos de 1968, uma mulher que fugisse aos padrões de “feminilidade” passava a ser suspeita de doping ou ter sua identidade de gênero questionada. Na Carta Olímpica de 1971, a concordância em se submeter ao teste de feminilidade, que incluía inspeção médica da genitália, passou a ser condição para a participação feminina nos Jogos Olímpicos. Nas Olimpíadas de 2000, o teste deixou de ser condição para os Jogos Olímpicos, mas continua a existir em várias Federações Internacionais de Esportes e, de forma implícita, nos testes antidoping da World Anti-Doping Agency (WADA).
Qual o limite entre ser homem ou mulher? Quais os critérios de elegibilidade para essa categorização? Questões como essas foram debatidas na 5ª. Conferência Internacional sobre Mulher e Esporte do COI em 2012[9]. De acordo com os painelistas, existem categorias distintas no esporte porque mulheres e homens são “fisiologicamente diferentes”. Muitos deles, entretanto, reconhecem variações de gênero que não se enquadram na classificação binária homem/mulher. O próprio conceito de justiça nas competições foi questionado por alguns. Seria mais injusto ter um pouco mais de testosterona que ter dedos mais longos ou ser mais alto? As vantagens competitivas dos intersexuais seriam maiores que outras de limites de desempenho do atleta? Seria justo proibir uma mulher de competir por causa de seus níveis hormonais?
Constrangimento e invasão de privacidade sofridos por atletas ou o tipo de tratamento a ser conferido aos transexuais são alguns dos questionamentos sobre os limites do binário heterosexista que persiste no mundo dos esportes.
Considerações Finais
A forte presença feminina nas arenas de competição e a inexistência de modalidades sem eventos femininos nas Olimpíadas de 2012 podem sugerir que as barreiras baseadas em gênero estão completamente superadas no esporte. Um olhar mais apurado, entretanto, revela que muito ainda há a ser feito para que a superação saia do campo discursivo e se torne efetiva em todos os segmentos do espetáculo esportivo.
A despeito de quase um século de restrição à participação feminina em largo número de modalidades Olímpicas, medidas concretas têm sido adotadas na direção da inclusão feminina nas práticas esportivas. Para a plena realização do potencial transformador do esporte, entretanto, a própria composição e estrutura do Movimento Olímpico, de caráter conservador e reprodutor das diferenças, precisaria passar por uma reestruturação. Indaga-se aqui, entretanto, até que ponto as intituições que o compõe estão dispostas a isso.
Medidas concretas de caráter normativo também poderiam ser adotadas, como é o caso das cotas para postos de comando ou regras para tratamento igualitário nos contratos de exclusividade com redes de televisão e patrocinadores. Indaga-se, entretanto, se o COI, estaria disposto a por em risco contratos bilionários que geram quase a totalidade de sua receita, em nome do enfrentamento de uma ordem androcêntrica pré-estabelecida e enraizada de forma diferente nas diversas culturas.
Um grande paradoxo então se estabelece em relação à possibilidade de tratamento igualitário para os gêneros. Por um lado, as conquistas das mulheres no mercado de trabalho e, consequentemente, no mercado consumidor e na sociedade, têm levado empresas e instituições a reverem seus discuros. Para manter o capital econômico e político que lhes sustenta, o COI foi forçado a promover mudanças, admitindo maior inserção feminina nas competições e estabelecendo o gênero como “questão”. Afinal, a associação exclusiva aos valores morais do olimpismo é a principal mercadoria que oferece a patrocinadores e difusores, compradores do espetáculo esportivo.
Em um mundo que já não admite a segregação sexual, o discurso igualitário se torna imperativo não apenas ao COI, mas também às empresas que o sustentam. Isso não significa, entretanto, que o Movimento Olímpico ou mesmo essas empresas tenham que romper com suas estruturas conservadoras. A conciliação do paradoxo consiste em alterar discursos, fazer algumas concessões e criar uma “questão”, mantendo intocável, entretanto, a estrutura que reproduz o sistema androcêntrico.
Neste ensaio, abordamos apenas alguns temas que relacionam a “questão” de gênero ao espetáculo esportivo. A predominância masculina em todos os segmentos de especialistas que atuam no mercado esportivo ou problemas relacionados a abuso ou assédio sexual também poderiam ser explorados. Para que todas as barreiras determinadas por gênero possam ser eliminadas, tais questões precisam ser abordadas de frente, a despeito das implicações de poder que possam representar. Só assim o esporte poderá finalmente cumprir plenamente o papel libertador ao qual se propõe.
[1] Ver IOC. Factsheet the games of the Olympiad, update - october 2013. Disponível em: http://www.olympic.org/Documents/Reference_documents_Factsheets/The_Olympic_Summer_Games.pdf. Acesso em 02 jan. de /2016.
[2] Disponível em http://www.olympic.org/about-ioc-institution?tab=executive-board. Acesso em 10 de fev. de 2016.
[3] International Olympic Committee (2000). Resolution of the 2nd IOC World Conference on Women and Sport. Paris, France. Disponível em http://www.olympic.org/Documents/Reports/EN/en_report_757.pdf. Acesso em 10 de jan. de 2016.
[4] International Olympic Committee. Factsheet: Women in the Olympic Movement –update January 2016. Op.cit
[5] International Olympic Committee and Centre for Olympic Studies & Research, of Loughborough University, op. cit.; International Olympic Committee. Factsheet: Women in the Olympic Movement, update May 2014. Disponível em: http://www.olympic.org/Documents/Reference_documents_Factsheets/Women_in_Olympic_Movement.pdf . Acesso em 02 de nov. de 2015; International Olympic Committee. Factsheet: Women in the Olympic Movement – update January 2016. Op. cit.
[6] Disponível em http://www.unfpa.org.br/Arquivos/declaracao_beijing.pdf. Acesso em 05 de dez. de 2015.
[7] Revista Forbes. Disponível em http://www.forbes.com/sites/kurtbadenhausen/2015/06/10/the-worlds-highest-paid-athletes-2015-behind-the-numbers/ Acesso em 15 de nov de 2015.
[8] Foucault, 1998, op.cit.