Anéis fechados

É fácil esbarrar no Rio com informações sobre a Olimpíada que acontecerá em agosto na cidade. A publicidade municipal inundou TVs, jornais e a internet com anúncios exaltando os Jogos e o legado. Croquis que apresentam o futuro design de praças, arenas e o VLT (veículo leve sobre trilhos) do Centro já são conhecidos dos cariocas.

A enxurrada de informação sobre os Jogos Olímpicos, contudo, limita-se ao que interessa ao governo municipal divulgar. Obter detalhes sobre projetos e acordos entre o poder público e empresas é um desafio para pesquisadores, jornalistas e população em geral.

Apontada por autoridades como uma oportunidade de mostrar ao mundo a capacidade de planejamento do Brasil, já que, até o momento, há poucos riscos de atrasos na entrega das arenas, a Olimpíada não ajudou a consolidar a Lei de Acesso à Informação (LAI), em vigor há cinco anos e que se tornou a base legal para a transparência dos atos públicos no país.

Até a conta total dos Jogos, oficialmente estimada em R$ 39,1 bilhões em janeiro, segundo a APO (Autoridade Pública Olímpica) e Comitê Organizador dos Jogos, omite gastos com o evento. Solicitações de cópias de contrato, processos administrativos e projetos completos de obras permanecem sem resposta, descumprindo a LAI e mantendo a sete chaves detalhes sobre decisões da administração.

A bateria do celular da pesquisadora Larissa Lacerda da Artigo 19, ONG internacional em defesa da liberdade de expressão e informação, acabou antes de sua paciência. Ela aguardou ao telefone por uma hora, quarenta e dois minutos e vinte segundos na central telefônica do município (1746) para solicitar informações sobre a Transolímpica, uma via de R$ 2,1 bilhões construída para os Jogos Olímpicos de 2016. Ela aguentou esperar, mas o aparelho, não.

“Isso foi no fim da pesquisa quando já havíamos tentado várias vezes. Decidimos tentar uma última vez. Já tinham sido violados diversos dispositivos da LAI [ao longo da pesquisa]. A gente queria ver até onde ia. Como já sabia qual era o cenário, coloquei no viva voz e fui fazer outras coisas”, disse Lacerda.

Pedidos de informação são tratados na prefeitura e no governo do Estado do Rio com um misto de informalidade e estranheza. É comum ser questionado sobre o motivo de determinado pedido -o que é vedado pela LAI, já que toda informação produzida pelo Estado é, a princípio, pública.

A Artigo 19 preparou no ano passado um relatório sobre a falta de transparência com que a obra da Transolímpica é tratada. O documento aponta que moradores de favelas ameaçados de remoção pouco sabiam sobre o trajeto da obra. Contratos entre a prefeitura e a concessionária não foram entregues quando solicitados. Questões simples sobre o licenciamento ambiental da obra foram respondidas com a entrega de um calhamaço de mais de 4.000 páginas sem qualquer indicação de onde estava a informação solicitada.

"Todo o processo é executado de maneira a fazer com que a pessoa desista no caminho”, descreve a ONG em seu relatório sobre a Transolímpica, um dos 74 projetos oficialmente relacionados aos Jogos.

A Prefeitura do Rio é o ator mais importante na organização dos Jogos. Dos 74 projetos oficialmente vinculados à Olimpíada, o município executa e fiscaliza 43, os mais importantes para o evento.

No relatório, a ONG Artigo 19 relata a insistência de funcionários em saber o motivo dos pedidos. Em alguns casos, servidores públicos se recusavam a receber o documento com as questões. Prazos legais para as respostas foram, em todos os casos, ignorados.

“A gente já sabia que o Rio tinha problemas. Eles não cumprem nem o básico. Para conseguirmos o pouco de informações que conseguimos, perdemos tempo ligando, indo várias vezes ao órgão. Um cidadão normal nunca chegaria ao nível a que a gente chegou”, disse Mariana Tamari, oficial de Projetos de Acesso à Informação da Artigo 19.

A LAI foi criada em 2011 após anos de cobrança da sociedade civil para a criação de regras para o acesso a documentos e dados públicos. Ela estabelece o prazo de 20 dias para resposta a qualquer questão, podendo ser prorrogado por mais 10. Caso o pedido seja negado, a lei prevê duas instâncias de recursos administrativos. A lei também define que informações sobre gasto público devem ser disponibilizadas pela internet, para acesso imediato do cidadão.

O cumprimento à LAI no país já foi medido por dois órgãos públicos com metodologias distintas. O Ministério Público Federal analisa a chamada transparência ativa, que se resume à análise dos portais em que dados orçamentários são publicados. Neste quesito, a Prefeitura do Rio saiu-se bem. Recebeu nota 8,5, ficando em quinto entre as capitais --não tirou dez por não disponibilizar salários pagos a seus funcionários. A nota média nacional foi de 3,92.

Contudo, outro levantamento revelou que o município, embora tenha portais de transparência adequados, pouco cumpre a LAI quando é provocada a dar mais informações. A CGU (Controladoria Geral da União) avalia a transparência ativa e passiva, fazendo pedidos para testar como a resposta é dada. Na primeira avaliação, em abril de 2015, o município do Rio obteve nota 4,72, ficando em 21º entre as 27 capitais. A nota melhorou na segunda avaliação, em setembro, chegando a 8,6. Mas ainda permanecia na 12ª posição daquele ranking. O resultado se deveu à ausência de previsão de punição ao servidor que descumprir a lei e às respostas incompletas fornecidas.

Dois anos antes da criação da LAI, logo após a cidade ser escolhida como sede da Olimpíada, a prefeitura do Rio criou um site chamado “Transparência Olímpica”. Nele seriam disponibilizados projetos detalhados com seus respectivos prazos, custos e contratos.

“O que queremos mostrar com esse lançamento é o modo como estamos tratando a Olimpíada de 2016”, afirmou o prefeito Eduardo Paes (PMDB), em outubro de 2009.

Sete anos depois, às vésperas dos Jogos, o portal está fora do ar. Seu substituto, o “Cidade Olímpica”, privilegia a divulgação de vídeos promocionais da Olimpíada e projetos de legado realizados pela prefeitura.

“Trata-se de um portal com caráter de propaganda do governo, que privilegia galerias de fotos e textos publicitários sobre as instalações olímpicas à disponibilização de documentos. Poucas foram as informações oficiais – sobre custos e financiamentos, licitações e contratos, cronogramas e prazos das obras realizadas na cidade – que encontramos neste site”, descreve a Artigo 19.

Poucos sabem, mas é nele em que estão parte dos contratos das obras olímpicas sob responsabilidade do município. No vago link “institucional” esconde-se o item “transparência”. Os documentos só foram disponibilizados após cobrança da imprensa, em particular o portal UOL, para publicação destes documentos.

A melhor fonte para ter acesso aos papéis do governo municipal é o Portal Transparência do governo federal. Ali encontra-se todos os documentos, incluindo aditivos de contratos que justificam aumentos de custos. Contudo, o espaço só divulga documentos de obras que contam com verba da União.

Não é o caso do campo de golfe, cuja construção ficou a cargo de uma incorporadora após acordo com a prefeitura. A Fiori Empreendimentos se responsabilizou pela obra da arena, avaliada em R$ 60 milhões. Em contrapartida, foi autorizada a construir prédios mais altos do que o permitido originalmente na região. Além disso, foi necessário reduzir 58 mil metros quadrados de um parque natural no local.

O acordo gerou polêmica e ativistas se mobilizaram para descobrir seus detalhes. Todos os documentos que o movimento “Golfe Para Quem?” conseguiu acesso foram obtidos no Ministério Público ou na Justiça, apesar de insistentes pedidos ao município.

Em 11 de outubro de 2014, os ativistas solicitaram formalmente ao prefeito 11 documentos, em sua maioria pareceres jurídicos que poderiam ter embasado a assinatura do acordo com a empresa. Dezessete dias depois, Paes respondeu a carta explicando a opção pelo terreno como local para disputa do golfe, sem mencionar a existência ou não dos papéis solicitados, bem como sua disponibilidade ao público.

“A falta de transparência não decorre somente da falta de preparo. É para esconder o que eles fizeram. Esses documentos não existem”, disse o advogado Jean Carlos Novaes, integrante do “Golfe Para Quem?”

Cinco meses depois, após aumento da mobilização entorno do tema, a prefeitura decidiu criar um site chamado “Explica Golfe”. Nele, rebate as críticas ao projeto e disponibiliza parte dos documentos que embasaram a decisão do acordo.

No entanto, não consta dos papéis divulgados, por exemplo, a isenção de R$ 1,8 milhão dada à empresa numa taxa municipal para retirada de vegetação da área. O documento foi descoberto pelos ativistas na Justiça, entre a papelada que compõe um processo em que o Ministério Público afirma que o projeto causa danos ambientais.

Também não está lá o contrato entre Prefeitura do Rio, Fiori Empreendimentos e comitê organizador dos Jogos para uso do terreno na Olimpíada.

Até mesmo o custo total dos Jogos permanece um mistério. Os gastos gerados exclusivamente pela Olimpíada estão reunidos num documento chamado Matriz de Responsabilidades. Nele é possível saber quanto custa a construção das arenas, o responsável pela obra, a origem dos recursos e o prazo de conclusão.

Contudo, diversos gastos relacionados diretamente aos Jogos ficaram de fora do documento. A construção do pavilhão seis do Riocentro, que será local de competições do boxe, não está incluso na lista. As indenizações pagas a moradores da favela Vila Autódromo para a construção da via de acesso ao Parque Olímpico, também não. Somadas, todas as ações realizadas por causa do evento que não constam da Matriz somam ao menos R$ 500 milhões[1].

Desde novembro do ano passado o jornal “Folha de S. Paulo” aguardou por seis meses a entrega dos documentos que embasaram o acordo com a GL events para a construção da arena de boxe. A empresa francesa se responsabilizou pelo investimento de R$ 50 milhões. Em troca, poderá explorar comercialmente a Arena Olímpica, que já administra, por mais 30 anos.

Em entrevista, Paes reconhece falhas na transparência de dados na Olimpíada. Ele atribui o problema à complexidade do evento.

“Talvez tenha sido uma falta de atenção para um tema tão relevante. É tanto órgão e gente já vendo... Há 500 órgãos fiscalizando e a prefeitura executando. Na minha cabeça já estava transparente. É muito mais falha de colocar as coisas no ar do que qualquer outra coisa”, disse o prefeito.

“Não temos uma cultura de transparência. Temos uma cultura do sigilo. Funcionários encaram o pedido como algo que está onerando, consumindo tempo. Ainda não introjetamos a ideia de que a transparência é uma exigência. A informação tem que ser dada de forma clara e objetiva. O órgão tem que estar preparado para fornecê-la e ajudar o cidadão a obtê-la”, afirmou Tamari, oficial de Projetos da Artigo 19.

O estudo da Artigo 19 foi enviado a órgãos do município, Estado e União. O Ministério Público do Rio instaurou inquérito para investigar o descumprimento da LAI pela Prefeitura do Rio. A Empresa Olímpica Municipal remeteu o relatório de volta à ONG, sem resposta.