Sete anos de encontros com pessoas fascinantes que lutam pela justiça social

Thomas Fatheuer em entrevista para o vídeo de 15 anos da Fundação
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Thomas Fatheuer em entrevista para o vídeo de 15 anos da Fundação

No contexto de 15 anos da Fundação Heinrich Böll no Brasil, o ex diretor Thomas Fatheuer  analisa sua experiência  

Iniciei o meu trabalho como diretor do escritório da Fundação Heinrich Böll no Rio de Janeiro carregado de expectativas. Já na entrada, fui saudado pelo simpático retrato do patrono Heinrich Böll, meio anacrônico com o seu cigarro no canto da boca. Da minha mesa de trabalho, uma vista fantástica sobre a Baía de Guanabara. Mas bastaram alguns dias para que a alegria desse lugar ao desespero. Onde é que eu havia amarrado o meu burro?

Todos os meus colegas eram brasileiros – e nenhum deles conseguia pronunciar o nome Heinrich Böll Stiftung.  A solução foi usar a abreviação h-b-s, ou simplesmente “Fundação”. Nenhum problema quanto a isso, mas como acontece tantas vezes na vida, há mais coisas atrás dos nomes do que supõe a vã filosofia. Nas conversas, ficou evidente que ninguém tinha uma ideia muito clara sobre essa organização em que estavam trabalhando. Que tipo de Fundação verde estranha era aquela? Não era uma fundação do Partido verde alemão – associada a ele, sim, mas com todos os cuidados do distanciamento partidário. Como entender aquilo? “As fundações políticas são uma construção sui generis”, diz Ralf Fücks, um dos dois presidentes  da Fundação Böll, e ele tem razão. Pois em todas as tentativas de explicar essa estranha construção aos meus colegas ou a terceiros, eu percebia que minhas palavras soavam estranhas e que minhas explicações pareciam cada vez mais absurdas. Lembrei das palavras de Adriana Calcanhoto:  “Lanço o meu olhar sobre o Brasil e não entendo nada”. Foi o que aconteceu comigo com a agá bê esse.

Muito bem. Pensar em excesso pode causar danos. Por sorte, o trabalho do dia a dia ajuda. Logo senti na pele a bela expressão brasileira “ossos do ofício”. Em vez de participar de estimulantes debates, ficava debruçado horas a fio sobre duvidosas prestações de contas e relatórios insensatos. Sim, houve muitos ossos para roer... Embora sempre repetíssemos o mantra “não somos uma agência financeira”, a troca mais intensa com algumas das organizações parceiras acontecia justamente pela via da prestação de contas. Esta é uma pergunta que não quer calar: como controlar prestações de contas sem lembrar padrões de comportamento colonialistas?  Como insistir no respeito às regras sem humilhar? Neste sentido, a questão da prestação de contas também tem uma dimensão política. Na prática, significa andar sempre na corda bamba. Mas tenho a firme convicção de que a transparência, o respeito às regras e o correto desenrolar de projetos é de fundamental importância precisamente para a sociedade civil. É importante poder prestar contas sobre a utilização de recursos públicos, algo que os eternos escândalos de corrupção (não só) no Brasil mostram com muita clareza. Mas o fato de algumas regras terem nascido da lógica da burocracia alemã, sem corresponder à realidade da vida de nossos parceiros, não simplifica o problema.

Passemos ao aspecto político. Uma “fundação verde” – ou, como começaram a dizer depois, uma “fundação política verde”-  obviamente atrai os ambientalistas. Mas o nosso negócio não era nem o reflorestamento da Mata Atlântica, nem o apoio a sistemas agroflorestais na Amazônia. Para muitos dos candidatos que viam recusados seus pedidos de financiamento de projetos, foi uma surpresa constatar que a maioria das parcerias de longo prazo se dava com organizações feministas. De fato, em 2003 mais da metade dos recursos estava concentrada no chamado programa de mulheres. Não era um programa de gênero, e sim um programa para a cooperação com grupos feministas.
Essa circunstância, que tem sua origem na própria história da hbs, conferiu um perfil especial à fundação no Rio. O fato de a hbs não atuar com atores verdes clássicos no Brasil levou algumas organizações parceiras a diálogos insólitos: Enxergar as questões ambientais como sociopolíticas e, com isso, também como problemas de gênero, foi o nosso desafio. 

A briga dos agrocombustíveis

O que uma fundação pequena como a hbs pode querer almejar num país tão gigantesco? Uma das abordagens foi trabalhar e fomentar temas fora do mainstream das ONGs em geral. Em outras palavras: buscar outras praias que não aquela da “torcida do Flamengo”.  Nem sempre isso foi possível, e nem era o único critério. Mas a hbs do Rio certamente contribuiu ao fomentar um debate crítico sobre energia, ajudando a melhorar a inserção do tema na sociedade civil.

Em 2003 também teve início o governo Lula. Uma de suas principais iniciativas no campo socioambiental foi o Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel, incentivando a participação de pequenos agricultores. A intenção era promover o desenvolvimento principalmente no Nordeste.

No início de 2004, um simpático representante do Ministério para o Desenvolvimento Agrário visitou a hbs e fez um relato sobre a ideia do programa. Levou uma declaração de apoio ao Programa de Biodiesel que, entre outros, fora assinada pelo MST. Nós também assinamos. Mas logo teve início no seio da sociedade civil um debate acalorado sobre as consequências sociais e ambientais da produção de agrocombustíveis. E a hbs incentivou os primeiros estudos críticos da sociedade civil. 

A discussão não se limitou ao Brasil. Também na Alemanha, muitos atores – principalmente entre as fileiras dos verdes – depositaram fortes esperanças nos agrocombustíveis como alternativa às fontes de energia fóssil. Este caso exemplifica o que uma pequena fundação pode realizar. Fomos capazes de incentivar um diálogo sobre novas questões, fazer parte do debate e nos tornar uma organização em processo de aprendizado. E conseguimos dar visibilidade às posições da sociedade civil brasileira na Alemanha, o que não foi uma tarefa fácil.  Para tudo isso, foi vantagem estar no Brasil e poder participar ativamente dos debates da sociedade civil crítica. 

Desenvolver um relacionamento com os nossos parceiros baseado no diálogo foi fundamental para o nosso trabalho no Brasil. Se há algo que o Brasil não precisa e nem suporta são aqueles que vêm de fora arrotar regras. E o que não ajuda em nada o Brasil é o olhar limitado apenas para o próprio umbigo. Por isso, foi importante não apenas incentivar o diálogo com a Alemanha como também com a sociedade civil de outros países. Conseguimos isso mal e porcamente na América Latina. Mas para além disso, muitas vezes foi difícil enxergar a hbs como rede internacional e transpor essa rede em ações de cooperação prática.

Retrospectivamente, fico especialmente feliz com o fato de termos conseguido contribuir a promover alguns novos temas, abrindo novos horizontes. Cito em especial nossos diálogos sobre biopolítica e o debate crítico com novos mecanismos econômicos na área ambiental, principalmente o REDD. 

Os sete anos como diretor do escritório da hbs também foram sete anos de vida no Brasil e no Rio de Janeiro. Nossos filhos cresceram no Leme e na Rua General Glicério em Laranjeiras e se sentem mais como brasileiros que como alemães. Foram sete anos com algumas frustrações, mas repletos de encontros emocionantes com pessoas fascinantes que lutam pela transformação e pela justiça social, sem simplesmente aceitar a injustiça e a destruição da natureza. Mesmo tendo voltado à Alemanha em 2010, a minha gratidão e o meu respeito por estas pessoas até hoje não se apagaram.