Uma centena de atletas, treinadores e ativistas se reuniu cedo na frente do Maracanã no Rio de Janeiro para uma corrida improvisada de duas voltas ao redor da instalação esportiva. Entre eles, alguns dos atletas mais bem-sucedidos do Brasil, que se preparam para os Jogos Olímpicos de 2016. Eles se autodesignam “sem-teto do atletismo”, já que na futura cidade-sede olímpica não há lugar adequado para treinar. “Aproveito até as escadarias no metrô ou a calçada na frente da Prefeitura”, diz a campeã de heptatlo, Marcelle da Cruz, de 17 anos, detentora de vários títulos nacionais e uma das grandes esperanças de medalha do país anfitrião. Segundo diz, ironicamente, ali há até lugar para colocar alguns obstáculos. “Mas como vamos atingir nível para competir nas Olimpíadas nessas condições?”
A corrida matinal do sem-teto do atletismo é uma das várias formas criativas de ação com que os brasileiros tentam chamar a atenção para as péssimas condições no período que antecede os megaeventos esportivos. A primeira corrida, realizada em 9 de março de 2014, será seguida por vários outros protestos em forma de treinos.
Desde o dia 9 de janeiro de 2013., os atletas não podem mais usar o seu local de treino, o Estádio de Atletismo Célio de Barros. Depararam-se com portas fechadas – ninguém deu informações e nem puderam tirar seus objetos pessoais dos escaninhos. A pista de corrida e as instalações em torno dela foram demolidas por ordens da prefeitura. No terreno diretamente ao lado do Maracanã foi projetado um shopping para tornar o estádio – oferecido à privatização – mais atrativo para os investidores. Antes disso, o Estado investiu 1 bilhão de reais na reforma do Maracanã para que o estádio satisfizesse as exigências da Fifa.
Depois de numerosos protestos, o governador Sérgio Cabral voltou atrás e prometeu reconstruir o Célio de Barros – um grande e raro êxito do movimento crítico à Copa. Mas de lá para cá, nada mais aconteceu, e os atingidos temem não ter mais lugar para treinar. “Para eles, o esporte não passa de um espetáculo comercial, e o esporte popular acaba massacrado”, criticou um dos participantes do protesto.
Também em outras cidades a construção de estádios sofisticados acontece em detrimento de outras instalações esportivas que muitas vezes são mais importantes para a população do que os projetos de prestígio. Um exemplo é Salvador, no Nordeste, onde o único parque aquático adequado para competições precisou dar lugar à obra do estádio Fonte Nova. “Só os melhores atletas têm locais adequados para treinar. Os demais são negligenciados”, diz Renato Cosentino, do Comitê Popular Rio Copa e Olimpíadas, que apoia a iniciativa dos atletas sem-teto. “Muitos atletas já saíram do Rio, o que é uma vergonha para a cidade olímpica”.
O mau humor com as despesas bilionárias para a Copa e as Olimpíadas gerou um movimento de protestos cada vez mais amplo no país todo. Ele critica sobretudo a reestruturação das cidades, não no interesse das pessoas que moram ali e gostariam de ter um transporte público melhor ou uma infraestrutura que funciona, e sim seguindo um espetáculo esportivo midiático, para o qual muitos dos moradores mais pobres são expulsos das ruas ou de suas casas.
Outras formas de protesto
É verdade que as grandes manifestações em junho do ano passado levaram centenas de milhares às ruas no país inteiro e os confrontos, muitas vezes violentos, entre ativistas e a polícia chamam atenção para as demandas dos críticos. Mas os movimentos apostam cada vez mais também em formas criativas de ação, unindo protesto com eventos culturais, organizando shows nas ruas, competições e jogos. Segundo uma tradição olímpica que vem sendo esquecida, a ideia é mostrar que esporte é muito mais do que pódio, medalhas e comércio. O que importa é participar – e isso vale para todos.
Por isso, em algumas das cidades-sede não haverá apenas partidas oficiais de futebol, mas também uma Copa Popular contra as remoções. A primeira versão desse torneio ocorreu no Rio de Janeiro no dia em que começou a Copa das Confederações, em junho do ano passado. O local escolhido foi o Quilombo da Gamboa no meio da antiga zona portuária decadente. Com muito dinheiro, os urbanistas querem transformar a região em um moderno centro empresarial chamado Porto Maravilha. Mas há muitos anos, moradores sem teto vêm ocupando as casas vazias ali por isso muitos foram removidos e o Quilombo da Gamboa vai servir para alguns como alojamento provisório.
Dez equipes masculinas e quatro femininas participaram do torneio, todas provenientes de favelas ameaçadas de remoção no rastro da reurbanização e da construção de novas vias de tráfego. Na maioria dessas favelas, numerosas casas já foram demolidas, e muitos moradores foram obrigados a se mudar para construções populares longe de suas comunidades originais. Entre as equipes havia gente do Morro da Providência, ao lado da Gamboa, da Vila Autódromo ao lado do parque olímpico, da Vila Recreio, da favela Santa Marta e da favela do Salgueiro, perto do estádio do Maracanã.
“Para nós, além de diversão, o futebol virou também uma forma de protesto”, disse um dos jogadores. Apesar da chuva fina, o ambiente foi alegre, os artistas da bola se superaram nos dribles. Mas ninguém xingou os juízes. “Aqui é o lugar para os que normalmente não têm voz ou espaço, é o lugar dos excluídos”, disse o locutor do estádio.
A marca do torneio foi um mascote próprio que, ao contrário da Fifa, não tem copyright. Também havia muita música e, claro, churrasco para os participantes. “Foi genial participar disso aqui”, disse Criciúma Salgueiro, da equipe feminina vencedora, feliz e exausta. “Conseguimos chamar a atenção para o futebol feminino”. A imprensa estava presente – não apenas a TV brasileira, mas também repórteres do mundo inteiro. “A Copa poderia trazer muitas melhorais para a cidade, mas falta integrar os moradores”, critica Gustavo Mehl, do Comitê Popular.
Não foi um evento contra a Copa, muito pelo contrário. À tarde, o jogo inaugural da Copa das Confederações, Brasil x Japão, foi transmitido no Quilombo da Gamboa. Todos acompanharam atentos a atuação da seleção. Iniciativas como a Copa Popular pretendem mostrar como o futebol pode unir as pessoas para muito além do aspecto comercial e dos índices de audiência.
A Copa Popular no Rio de Janeiro seguiu com várias etapas em abril e maio, e a rodada final será realizada em junho, concomitantemente com o início da Copa. Mais equipes participarão. Não só das áreas ameaçadas de remoção, mas também outros grupos atingidos pela abordagem elitista da Copa do Mundo: ambulantes, cuja presença é proibida ao redor dos estádios, ou sem-teto, vítimas de “limpezas” no centro da cidade. Outros movimentos sociais que apoiam o protesto contra os efeitos negativos dos megaeventos vão organizar times. Os locais dos jogos ainda estão em aberto, mas serão naquelas áreas onde há conflitos entre moradores e o governo municipal.
O esporte enquanto protesto também existe na favela Santa Marta em Botafogo, a primeira a contar com uma Unidade de Polícia Pacificadora e aonde há uns bons seis anos os tiroteios e o comércio de drogas diminuíram muito. Em compensação, chegou a especulação imobiliária, e os preços no bairro pobre com a vista maravilhosa para o mar foram para as alturas. Também lá a prefeitura está organizando remoções de moradores, principalmente na parte mais alta, bem perto dos mirantes turísticos e do símbolo da cidade, a estátua do Cristo Redentor.
Nem a Copa e nem as Olimpíadas necessitam dos terrenos ali na franja da Mata Atlântica. Assim, a prefeitura inventou outro argumento para expulsar os moradores, advertindo que as casas ficam em locais inseguros, ameaçados de desabar com as chuvas. Estudos que provam o contrário são simplesmente ignorados.
Apoiados pelo Comitê Popular, os moradores organizam regularmente trilhas pela comunidade. Nesses passeios, as pessoas, cujas famílias moram há 70 anos no lugar, contam a história do assentamento e como se construíram os caminhos e as instalações elétricas e hídricas sem qualquer ajuda do Estado. Trata-se da identidade da favela, um modo de viver que os moradores querem manter. Eles resistem a serem estigmatizados pelo governo e os meios de comunicação como mácula ou lugar de criminosos. “Temos orgulho da nossa favela e nos sentimos bem aqui. Apesar de todos os problemas que existem também aqui, não vão conseguir nos expulsar”, diz o rapper Fiell, que ajudou a construir a rádio comunitária da Santa Marta até a emissora ser fechada em 2012 por ser ilegal e ele mesmo ser condenado por infringir a legislação.
Mais de 20 mil pessoas foram removidas só no Rio de Janeiro, e muitas outras estão sendo ameaçadas pelo mesmo destino. “O Estado age de forma arbitrária, e muitos dos removidos nem recebem uma indenização adequada”, explica o ativista Renato Cosentino. Segundo ele, a causa é a vontade do governo de aproveitar os eventos esportivos para elitizar a cidade. “Muitos pobres são obrigados a dar lugar ao lucro dos ricos. É contra essa política que queremos mobilizar com muita criatividade e cada vez mais gente nas ruas”, diz Cosentino.
Traduzido por:Kristina Michahelles