UPP: o sonho acabou?

Inauguração da UPP Salgueiro, Rio de Janeiro, em Setembro de 2010.
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Inauguração da UPP Salgueiro, Rio de Janeiro, em Setembro de 2010.

No Brasil 6% da população vive em favelas, cerca de 11,4 milhões de pessoas[1]. No censo de 2010 o estado do Rio de Janeiro possuía cerca de dois milhões de pessoas vivendo nessa condição[2]. A Favela da Rocinha é o exemplo emblemático da predominância desse tipo de assentamento urbano no Rio de Janeiro. Segundo o IBGE, é a mais populosa do país, com cerca de 70 mil moradores[3], número que é contestado pelos moradores, que afirmam haver entre 180 a 220 mil pessoas. Sempre relegada na partilha dos benefícios produzidos pela cidade, as favelas permanecem com problemas sociais crônicos, mas em especial a violência, os tiroteios constantes entre polícia e traficantes que aterrorizavam moradores e sua vizinhança foram fontes de incontáveis manifestações e promessas de mudança pelas autoridades públicas.

 

Quando foi criado no final de 2008 o novo projeto de intervenção policial nas favelas cariocas, a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), foi alçado a categoria de “modelo diferenciado de policiamento” e com a promessa de mudança radical nas políticas de segurança pública do estado. A proposta invertia a lógica estabelecida até o momento das ações policiais nas favelas cariocas: permanecer por um tempo curto, em rápidas incursões com saldo de dezenas de vítimas em tiroteios. A cinco anos da primeira UPP implantada já existem 39 unidades disseminadas em 264 favelas cariocas.

 

A política de “pacificação”, como ficou conhecida e tem a UPP como modelo, se dá através da permanência da polícia nas favelas, com a instalação de um comando local da unidade em prédios do estado ou mesmo em contêiners, em locais estratégicos dessas localidades. Inclusive em alguns locais são prédios tomados pelo estado dos traficantes, numa alusão simbólica ao atual domínio da polícia sobre as áreas dos criminosos. Com isso, a polícia realiza rondas permanentes nas ruas e vielas das comunidades, e executam mandatos de prisão. José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, afirma que nesse momento o objetivo da UPP é “retirar território do tráfico”, ela não acabará com o tráfico, porque não tem essa intenção. Com isso, o que acabou acontecendo foi a permanência do tráfico nas favelas, modificado em suas práticas de venda e controle das drogas, ou seja, em algumas comunidades com serviço delivery e  certamente sem ostentação de armamento pesado.

 

A UPP atualiza antigas iniciativas da chamada “polícia de proximidade” e da “polícia comunitária”, mas com um espectro muito mais amplo que os projetos anteriores, trazendo no seu bojo a promessa de eliminação dos tiroteios que deixavam por ano centenas de mortos, vítimas das “balas perdidas”, possibilitando a segurança para a entrada de ofertas de serviços de empresas nesses locais, seja para abertura de bancos, lojas etc. ou regularização de serviços de água, luz e TV a cabo. A Light, companhia de energia elétrica, previa aumentar seu faturamento nas favelas de R$ 3,2 milhões (1 milhão €) para R$ 24 milhões (7,40 milhões €) anuais.  A CEDAE, companhia de abastecimento de água, de R$ 360 mil (111 mil €) para R$ 3 milhões (940 mil €) anuais. O preço da pacificação chegou também para os moradores das favelas. Mas isso também fazia parte do imaginário de ser cidadão. Só que os investimentos básicos do governo em saúde, educação e melhoria das moradias ainda não chegaram, o que cria uma desconfiança nos moradores.

 

De acordo com pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec: 2012), a percepção dos policiais que trabalham nas UPPs não é nada elogiosa: a cada dez, cinco policiais das UPPs criticam a formação para o trabalho, recebida da própria PM.  A maioria desses policiais considera importante continuar portando fuzil (92%), arma que não combina com policiamento comunitário. Eles se dividem na percepção que têm dos moradores em relação ao trabalho feito pela UPP - 46% acham que a maioria dos moradores tem sentimentos negativos (como medo, desconfiança ou raiva) e 44% consideram que a população local tem sentimentos positivos (simpatia, admiração, aceitação), enquanto que 10,3% acham que a indiferença é o sentimento predominante. Do total de entrevistado, 33,2% estão parcial ou totalmente identificados com o projeto, enquanto que 51,3% são neutros e 15,5% são parcial ou totalmente resistentes. Uma das principais queixas é de que um policial de UPP não é considerado dentro da corporação um policial “de verdade”, exatamente porque o policiamento comunitário não tem valor em si, sendo preterido pelo confronto armado. Em algumas favelas eles são chamados de “smurfs”, alusão ao desenho infantil dos anos 1980, ou “o UPP” e não, policial.

 

O estudo “Os donos do morro”, dos pesquisadores Ignacio Cano, Doriam Borges e Eduardo Ribeiro[4] sobre as UPPs indica que a escolha da maioria das UPPs privilegiou localidades com maior IDH e alvo de visitas turísticas e não aquelas com altos índices de criminalidade. Os homicídios diminuíram 75% e em 50% o número de roubos. Entretanto, os outros crimes tiveram aumento exponencial, como lesões dolosas, ameaças e crimes relativos a drogas (que contemplam apreensões de tráfico, consumo, cultivo e compartilhamento). A pesquisa também demonstra que casos de violência doméstica quase triplicaram, no que os pesquisadores apontam a possibilidade da relação com a sensação de mais segurança, que leva a denúncias das vítimas. Os desaparecimentos também aumentaram 92%, o que pode mascarar o número de homicídios nessas localidades.  

 

O “casamento” com o projeto UPP vive altos e baixos: 38 civis e 11 policiais já foram mortos por ações da polícia nas áreas de UPP. Menos do que nos anos anteriores, mas mesmo assim ainda assusta. O desaparecimento em 2013 de Amarildo Dias de Souza, um ajudante de pedreiro, após ser detido por policiais militares da UPP da Rocinha passou a ser um símbolo da continuidade da violência policial, mesmo após a implantação da UPP. Várias ONGs nacionais e internacionais reivindicam a solução do caso e criaram a campanha “Onde está o Amarildo?”, mas até o hoje ele segue desaparecido. Outro caso emblemático foi a morte dentro do Pavão-Pavãozinho de Douglas Rafael da Silva, o DG, dançarino de um programa de TV. As suspeitas apontam policiais da UPP como executores.

 

Os recentes problemas, como a ofensiva do tráfico de drogas, com ataques às UPPs deixaram como saldo policiais feridos e um rastro de destruição: ônibus e viaturas queimadas, postos atingidos. Além disso, ampliou a desconfiança dos moradores das favelas que já vivem uma relação conflituosa com as UPPs, o que para especialistas pode representar o esgotamento do programa em sua forma inicial. O sociólogo Ignácio Cano alerta que “a UPP ficou no estágio inicial:

ocupou territórios, foram colocados policiais lá, mas não se avançou suficientemente na mudança das relações e no diálogo entre a polícia e a comunidade[5]”, visto como o principal déficit do programa.

 

Luis Eduardo Soares[6], ex-secretário de segurança pública do Rio de Janeiro e um dos autores de uma emenda constitucional (PEC-51) que visa alterar radicalmente a arquitetura institucional da segurança pública no país, afirma que a segurança pública deve ser oferecida como um serviço 24h, como outros serviços sociais feitos pelo Estado, o que não é a lógica para as áreas pobres. Para Soares, a desmilitarização das polícias seria fundamental, ou seja, a perda do caráter militar, dado pelo vínculo orgânico espelhado no Exército.

 

As queixas de moradores e críticos encontraram algum eco junto às autoridades e foi criada a UPP Social, hoje ligada a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com a prefeitura, a UPP Social articula projetos e políticas em várias esferas do Executivo, além de ser um canal de diálogo permanente com a iniciativa privada. Neste sentido, os investimentos via Parcerias Público Privadas são incentivados. O investimento de 2009 a fevereiro de 2014 foi de R$ 1,6 bilhão (560 milhões €), desses cerca de R$ 1 bi foram para o Programa Morar Carioca, projeto de urbanização das favelas cariocas.  

 

Outra dificuldade para análise de custo versus benefícios em relação às UPPs é saber exatamente quanto elas custam para o Estado. Segundo o site R7, o custo anual médio para implantação de uma UPP com cem policiais era em torno de R$ 3,8 milhões[7]. Assim, manter o apoio financeiro às UPPs pós-megaeventos pode se tornar um problema.

 

Apesar de toda a bajulação midiática, os céticos indagam qual seria a política de segurança pública para outras partes da cidade, já que a UPP não resolve todos os problemas, nem mesmo aqueles dentro de sua jurisdição.  O comando da UPP acaba se envolvendo em outras disputas e tendo que mediar situações que não são da alçada da polícia, como a regulação do baile funk, o serviço de mototáxi, etc. Essa ação disciplinadora dentro das comunidades tenta inaugurar um novo ordenamento social, com controle do ir e vir, dessa vez feito pelo Estado.

 

Mas a regulação das favelas não pode ser feita apenas com ação militarizada, pois se isso não vale para o “asfalto”, então não pode valer para esses territórios. Porque se assim for, há um problema: a cidade do Rio de Janeiro possui cerca de 1.071 favelas[8]! em sua grande maioria dominadas pelo tráfico de drogas ou pelas milícias (grupos de [ex]policiais, justiceiros etc que agem a partir da extorsão a comerciantes e moradores).

 

A opinião dos moradores sobre as UPPs é dividida. A diminuição dos tiroteios e da força armada do tráfico trouxe alívio e uma sensação de segurança. Mas ao mesmo tempo, a promessa até agora não cumprida de melhoria dos serviços oferecidos pelo Estado, como saneamento básico, escolas, posto de saúde etc, além da truculência da ação policial levou moradores a confrontos constantes com os policiais e críticas às políticas do governo. As favelas também não são monolíticas, mas fracionadas com diferenças educacionais e de moradia entre seus moradores, o que para um olhar desatendo parece a mesma coisa. Esse fato traz consequências, como a percepção diferenciada entre aqueles que têm melhores condições de vida, dentro das realidades das comunidades e aqueles outros que não. Para o segundo grupo, políticas públicas mais inclusivas seriam vitais em seu contexto de vida.

 

O que fica após cinco anos é o que vários ativistas e pesquisadores já diziam: não se pode pensar o Rio de Janeiro sem pensar suas favelas. São marcas distintivas da cidade, da qual criou-se um imaginário combinando poesia, música e violência, mas pouco de cidadania. Zuenir Ventura, escritor carioca, é autor de livro famoso que explica o sentimento sob o qual estão envolvidas as disputas na cidade: o Rio de Janeiro é uma “cidade partida”, entre morro e asfalto (áreas pobres da periferia e favelas versus áreas de classe média/alta). Mas Jailson de Souza, um dos criadores do Observatório de Favelas, ONG nascida dentro da favela da Maré e que permanece desenvolvendo projetos nessa comunidade, vai num sentido diferente e afirma que, na verdade, não é a cidade e sim, o Estado é partido, pois privilegia partes da cidade com oferta de serviços públicos de melhor qualidade e quantidade, como a própria ação da polícia, voltada para proteger e servir essa população. E para outras regiões, como as favelas ou a região metropolitana da cidade essa oferta é precária.

 

Apesar de sua vinculação clara aos megaeventos, a criação das UPPs também sinaliza um projeto de cidade pretendido pelos governos, ou seja, fortalecer e ampliar a imagem do Rio de Janeiro como um centro internacional de turismo, de negócios e de comércio. Então estabelecer padrões de segurança para visitantes e empresas em certas áreas é fundamental. Assim, áreas distantes desse objetivo continuarão sendo abandonadas ou com oferta de serviços públicos insuficiente, como é o caso de parte da Zona Oeste da cidade e da Baixada Fluminense, praticamente irrelevantes para esse projeto, pois concentram em sua grande maioria uma população de baixos níveis de educação e renda, além de altos índices de violência urbana.   

[1] Disponível http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/12/brasil-tem-114-milhoes-moran…. Acesso 15/02/2014.

[2] Disponível em http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download%5C3190_FavelasnacidadedoRiodeJaneiro_Censo_2010.PDF. Acesso 14/04/2014.

[3] Disponível em http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2011/12/21/mais-de-11-milhoes-vivem-em-favelas-no-brasil-diz-ibge-maioria-esta-na-regiao-sudeste.htm. Ver também http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2011/12/maior-favela-do-pais-rocinha-discorda-de-dados-de-populacao-do-ibge.html. Acesso 15/02/2014.

[4] CANO, Ignácio; BORGES, Doriam; RIBEIRO, Eduardo. Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo: Fórum de Segurança Pública; Rio de Janeiro: LAV/UERJ, 2012.

[5] http://www.dw.de/upp-falhou-ao-n%C3%A3o-evoluir-no-di%C3%A1logo-com-com…

[6] http://www.viomundo.com.br/entrevistas/luiz-eduardo-soares-desmilitariz…

[7] Disponível em http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/gasto-com-upps-do-rio-no-ano-da-copa-sera-de-r-720-milhoes-20111210.html. Acesso em 15/03/2014.

[8] Disponível em http://oglobo.globo.com/infograficos/upps-favelas-rio/. Acesso em 15/03/2014.