Discussão sobre nova classe média tem bom roteiro inicial
Um frango e duas pessoas dá meio frango para cada uma? Estatisticamente, sim. Mas e se uma comeu só peito e coxas, e a outra ficou com as asas e o pescoço?
Questionando assim as estatísticas e o economicismo, "A 'Nova Classe Média' no Brasil como Conceito e Projeto Político" reúne análises de 18 intelectuais sobre as limitações do discurso ufanista oficial a respeito dos emergentes sociais no país.
O livro destrincha aspectos sociais, culturais e econômicos do grupo carimbado como nova classe média -os mais de 30 milhões que ultrapassaram a linha de pobreza e têm renda familiar entre R$ 1.315,00 e R$ 5.672,00 (janeiro de 2013), se situando acima dos 50% mais pobres e abaixo dos 10% mais ricos. Os textos fazem comparações históricas e exploram desdobramentos políticos.
Dawid Danilo Bartelt, diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil e organizador do volume, enfatiza que "o aumento substancial da renda das classes baixas não é equivalente a uma substancial redução da desigualdade".
Lembra que os levantamentos sobre renda omitem os dados de propriedade imobiliária e fundiária, distorcendo a realidade.
Já a socióloga Celia Kerstenetzky e a economista Christiane Uchôa constatam a enorme heterogeneidade entre as famílias que compõem o grupo -correspondente a 55% dos domicílios no país- e revelam algumas surpresas.
Por exemplo: 10% dos chefes de família são analfabetos; 75% das casas possuem apenas um banheiro (390 mil não têm). Entre os mais ricos da fatia, 38% têm apenas educação fundamental e 3% são analfabetos. Entre as crianças, a escola pública é a regra.
Na educação, os dados são preocupantes: 68% dos jovens de 19 a 29 anos deixam de estudar. Entre os adolescentes, de 16 a 18 anos, a evasão é de um quarto. "As oportunidades para os filhos superarem limitações de seus pais nos domicílios da nova classe média parecem escassas."
Para elas, "os brasileiros abrigados sob a classificação de membros da nova classe média ainda estão longe de corresponder à 'promoção social' que lhes foi atribuída: a maioria pode ser de fato considerada pobre sob qualquer critério que leve em consideração adequação nos níveis de bem-estar".
Classificá-los como classe média é ignorar que pobreza e riqueza são fenômenos multidimensionais, defendem. Para ascender de fato, precisariam ter acesso a bens e serviços de qualidade, o que não conseguem exclusivamente por meio de rendimentos.
"O maior acesso ao consumo não transforma o trabalhador em classe média", argumenta a assistente social Lucia Costa.
"A mobilidade social, condição para a ampliação da classe média, ocorre articulada ao processo de alteração no mercado de trabalho com a criação de empregos de melhor qualidade, com elevação cultural e qualificação dos trabalhadores, num ambiente político que permita a segurança nas relações laborais e ampliação de práticas democrática na sociedade."
Na visão de Costa, o aumento de renda eleva o consumo, mas não altera padrões culturais e de estrutura social. E o conceito de classe média não revela apenas um segmento de renda, mas essencialmente "a construção de uma experiência de vida coletiva e de valores democráticos".
Fazendo a comparação da divisão do frango, defende que a estatística não deve ser o único critério de análise.
Já o economista Marcio Pochmann escreve que é um engodo associar a ascensão nos rendimentos de quem está na base da pirâmide aos segmentos de classe média. Como já demonstrou em livro, para ele o que existe é "o alargamento das classes trabalhadoras impulsionado pela ampliação do setor terciário da economia nacional".
Pochmann alerta para os efeitos da desindustrialização na geração de bons empregos e discorre sobre a ascensão da classe média na China, alavancada pelo avanço da manufatura.
Atacando a privatização na educação e na saúde, a socióloga Sonia Fleury fala da "fabricação da classe média" como um movimento político.
Avalia que há subordinação das políticas sociais à lógica da acumulação, favorecendo (com subsídios, isenções, contratos e parcerias) o capital financeiro e as empresas privadas. "Que estrutura social tal política, que individualiza riscos e mercantiliza a provisão, está fabricando?", pergunta. "É mais fácil fabricar a classe média do que construir uma sociedade solidária, coesa e justa."
Ainda que o conjunto dos textos seja irregular, o livro organizado por Bartelt traça um bom roteiro para a discussão dessa questão. Falta expor os argumentos do governo e fazer uma avaliação mais profunda dos efeitos de programas como o Prouni. E muito ainda precisa ser analisado sobre os efeitos políticos da inclusão social -mesmo que seja restrita.
"A 'Nova Classe Média' no Brasil como Conceito e Projeto Político"
Organizador Dawid Danilo Bartelt
Editora Fundação Heinrich Böll
Quanto grátis, pelo site www.br.boell.org/
Classificação Bom
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