Brasil: O fim da inércia

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As manifestações de massa nas ruas do Brasil surpreenderam todos. Principalmente no Brasil onde até o serviço secreto está sendo criticado porque não soube prever isso. Há semelhanças com os acontecimentos recentes na Turquia e no mundo árabe por serem mobilizações organizadas através das redes sociais e também pela surpresa que geraram. A forma pela qual os protestos se espalharam é global, mas os conteúdos são especificamente nacionais e locais. A enorme dimensão dos protestos surpreendeu todo mundo. Mesmo assim eles não caíram do céu, mas sim são desdobramentos de processos anteriores.

A manifestação começou contra o aumento das passagens. O Movimento Passe Livre luta pela passagem gratuita e organizou estes protestos. Este movimento existe há oito anos e exige transporte público gratuito. Nos recentes protestos lutaram com sucesso contra o aumento das passagens. Manifestações contra aumento de passagens são comuns no Brasil. Em um setor de transporte organizado por empresas privadas cada passagem dos diferentes meios de transporte precisa ser paga separadamente. Por isso, os gastos com o transporte pesam muito na conta da população de baixa renda, sendo esses a maioria dos brasileiros. Os pobres moram longe dos grandes centros então além de terem percursos muito longos ainda gastam seis, sete Euros por dia somente com as passagens.
Ninguém aqui no Brasil sabe explicar como o número de manifestantes aumentou de alguns mil para vários cem milhares em poucos dias. Podemos observar uma multidão muito jovem e com pessoas de todas as classes sociais. Não são mais somente os estudantes da tradicional classe média; são pessoas das comunidades, funcionários públicos, militares, aposentados. Partidos, mesmo da extrema esquerda, são indesejados.

Jovem, colorido, de várias classes
As reivindicações também são diversas: anulação do aumento das passagens; críticas aos altos gastos com a Copa do Mundo de Futebol e mais direitos para os cidadãos em geral. Também estão sendo pronunciadas reivindicações específicas e importantes como a anulação da PEC 37, que tiraria o poder de investigação do ministério público federal que age independentemente do governo. A lei foi apresentada por deputados que estão sendo acusados e investigados por causa de corrupção e outros crimes.

Há uma hierarquia entre as reivindicações. A plenária dos movimentos sociais no Rio de Janeiro formula o assunto assim: “Não é por centavos, é por direitos.” As reivindicações são:

1. O mais importante: abaixar o preço das passagens.

2. Liberdade para manifestação, fim da violência policial que usa armas mortais ou de efeito moral e fim da criminalização de movimentos sociais.

3. Uso de dinheiro público para saúde e educação enfatizando o uso irracional e demasiado do mesmo para a Copa;

4. Fim dos despejos e remoções (no contexto das obras de infraestrutura para a Copa e as Olimpíadas).

5. Democracia e administração participativa das cidades.

Deixando de lado a segunda reivindicação, que se refere às manifestações em si, todas as outras têm como assunto o modelo de desenvolvimento brasileiro, que está mudando os centros urbanos do Brasil e que está causando violações dos direitos de partes da população. Nos últimos dois anos, movimentos e organizações se juntaram para os “Comitês Populares da Copa”, algo que não foi percebido pelas grandes mídias.

Indícios dos Protestos

Houve outros indícios – greves nas universidades e nas administrações, resistência dos Índios contra expulsão dos seus territórios pelo agronegócio e grandes usinas hidrelétricas, os protestos contra a corrupção endêmica e também contra homofobia. Podemos assegurar que, até o começo dos protestos recentes, os Comitês Populares da Copa foram o movimento social mais dinâmico do momento.

Apoiado por cientistas críticos como, por exemplo, do Instituto de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ), os comitês apresentaram análises resistentes sobre os custos reais das obras de infra estrutura para a Copa. Além disso, mostraram como a lei de exceção virou normalidade para evitar licitações para obras públicas e como despejos decorrem e afetam ou afetarão pelo menos 150.000 pessoas.

A fundação Heinrich Böll no Brasil apoia os comitês assim como o trabalho analítico de algumas organizações e do mencionado IPPUR. Um dossiê sobre megaeventos e violações de direitos humanos, financiado e co-iniciado pela fundação, se tornou documento de referência para a mídia independente.

Os comitês estão dando continuidade as suas atividades civis iniciadas em 2007, quando os Jogos Pan-Americanos aconteceram no Brasil. Em 2011, os comitês se uniram para o Comitê Nacional da Copa (ANCOP). Em todas as cidades sede da copa os comitês organizam diálogos e protestos contra os despejos, contra o desvio de dinheiro público, contra a política de trânsito que impede a participação da população nas decisões sobre a política urbana. Representantes da ANCOP estão articuladosinternacionalmente. Representantes da sociedade civil brasileira foram a Alemanha informar movimentos sociais e parlamentares sobre o tema e conseguiram fazer críticas sobre os despejos e as preocupações sobre o aumento de exploração sexual de mulheres e crianças diante do conselho de direitos humanos das Nações Unidas em Genebra. Em todo Brasil estão se repetindo os despejos, comunidades inteiras estão sendo removidas, na maioria das vezes habitadas por pessoas pobres que não tem acesso suficiente à informação. Além disso, as comunidades recebem indenizações baixas e precisam mudar para lugares muito longe do seu local original e de seu trabalho. Mulheres, por grande parte as chefes de casa e duplamente carregadas com um emprego e a responsabilidade de cuidar do lar, são as que mais sofrem com os despejos.

Atualmente está circulando um jogo de palavras: “queremos o padrão FIFA, não o patrão FIFA.” A FIFA como patrão força o país sede da copa a construir estádios que depois ninguém mais precisa. No Brasil isso é o caso pelo menos em Manaus, Brasília e Cuiabá. Depois da copa a maioria das pessoas não vai conseguir pagar os ingressos. A FIFA proíbe a venda não-autorizada de pequenos comerciantes de rua em volta de dois quilômetros dos estádios e também proíbe os descontos nos ingressos para estudantes e aposentados, o que no Brasil é assegurado por lei. A FIFA impõe padrões –padrão FIFA- que a população gostaria de ver impostos na saúde e educação, usando o dinheiro que está sendo usado para a copa.

 

Contra o imperador FIFA

Nos últimos anos a sociedade civil do Brasil estava numa inércia política. Alguns dizem que se trata de uma inércia comprada. Entre 2011 e 2012 dezenas de mil pessoas aproveitaram do processo contra ex-membros do governo (“mensalão”), acusados de desvio de dinheiro para outros políticos, para protestar com muita fantasia contra a corrupção que está em todo lugar. As únicas manifestações de massas dos últimos anos foram organizadas pelo próprio governo (que até levou os manifestantes de graça para o lugar da manifestação). Assunto foi a disputa sobre a divisão do dinheiro entre os estados que vier da exploração do petróleo.

Assim, o movimento entra em um vácuo da sociedade civil. O primeiro governo do presidente Lula (2003-2006) integrou grandes movimentos sociais até na responsabilidade governamental. Mesmo tendo o governo Lula quase parado de atribuir terras para os Sem-Terra, não se ouve mais muito do antigo tão militante MST. Agora eles buscam consolidar os existentes assentamentos com o grande fluxo de dinheiro público.

Inércia da sociedade civil

Outros movimentos e pessoas competentes de ONGs críticas se retiraram decepcionados de cargos governamentais. Ao mesmo tempo, as rendas reais dos trabalhadores aumentaram devido ao crescimento econômico constante. Programas de transferência de renda como “Bolsa Família”, agora chamado de “Brasil sem miséria” diminuíram a pobreza extrema e isso tudo sem uma política fiscal que atingisse as rendas das classes altas ou os lucros das empresas. Assim todos pareciam satisfeitos.

Essa narrativa repetida muitas vezes pelo governo e pela mídia, dizendo que o Brasil se transformou em uma sociedade de classe média mais igual e social, em um país sem pobreza e ambicionado, só vale superficialmente. A suspeita de muitas pessoas, de que isso foi só uma história mesmo e não a realidade está ficando cada vez mais forte.

História contada pelo governo da sociedade de classe média
Aquelas 50 milhões de pessoas, que foram elevadas para a classe média nos últimos anos, são realmente pessoas que têm mais dinheiro que antes. Muitas vezes, essas pessoas também têm mais dívidas por que seguiram o apelo de consumir mais. São pessoas, que pela primeira vez na vida podem abrir uma conta no banco, que têm cartões de crédito cujos juros são os mais altos do mundo, com até 30 por cento de juros em caso de ultrapassar o limite. São trabalhadores que muitas vezes não tem qualificação formal e que trabalham no setor informal. Pela nova classificação de renda, até as empregadas domésticas fazem parte da classe média, empregadas que conseguiram recentemente mais direitos, como horas extras pagas, fins de semana livres e mais benefícios sociais. São pessoas que estão se preocupando justificadamente com a expansão econômica parada no nível zero, mas a inflação continua alta (oficialmente 6,5% nos alimentos e 13% em outros bens de necessidade quotidiana em comparação com o ano anterior). Outros problemas econômicos são a moeda que agora está caindo por que tem sido supervalorizada por muito tempo e deficiências estruturais que estão aparecendo cada vez mais. Sua subida pra classe média é real, porém ela é precária e não garantida com direitos materiais.

* Dawid Bartelt é diretor da Fundação Heinrich Böll Brasil e este artigo foi escrito originalmente em alemão para o website da sede. A tradução é de Harm Timmi, estagiário da Fundação Heinrich Böll Brasil

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