Entrevista com Sandra Carvalho e Juliana Farias, da Justiça Global, sobre a mudança nos “Autos de Resistência”

 

Desde dezembro de 2012, mortes e/ou lesões decorrentes de operações policiais ou de confrontos com a polícia devem constar nos boletins de ocorrência. É o que prevê a resolução n° 08 de 21 de dezembro de 2012, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), ligado a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).

De acordo com a resolução, os termos “autos de resistência” e “resistência seguida de morte” devem ser trocados, respectivamente, por “lesão corporal decorrente de intervenção policial” e “morte decorrente de intervenção policial”. Mais do que uma simples troca de termos, o objetivo da mudança é evitar que terminologias escondam violações de direitos humanos ou ações de grupos de extermínio.

O documento prevê que os órgãos que receberem registros das lesões e/ou mortes causadas pela ação policial devem notificar a Delegacia de Crimes contra a Pessoa ou a repartição de polícia judiciária, instaurar inquérito para investigar o fato e comunicar o Ministério Público. A resolução também estabelece que a cena do crime deve ser preservada, para que seja realizada perícia nos objetos envolvidos na ação policial, como armas e veículos. O documento recomenda ainda que a ocorrência não seja arquivada sem que o laudo da perícia seja incluído no processo.

Sobre as testemunhas envolvidas, a resolução diz que elas devem ser identificadas, mas sem que fiquem expostas a riscos. Quanto aos policiais acusados de participar da ocorrência, eles devem ser afastados, não podendo ser promovidos enquanto suas responsabilidades não forem apuradas e o caso esclarecido.

Para refletir sobre o significado dessa mudança, conversamos com Sandra Carvalho e Juliana Farias, da Justiça Global.

Para além da simples mudança de termos, o que pode significar, do ponto de vista da garantia dos direitos humanos, essa resolução do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana?

A imensa maioria dos casos registrados como “auto de resistência” ou “resistência seguida de morte” são casos nos quais as vítimas foram executadas sumariamente. Os exemplos mais gritantes decorrem de casos nos quais a morte foi provocada por tiro de fuzil na nuca ou casos nos quais os laudos cadavéricos atestam que os disparos foram efetuados à curta distância, de cima pra baixo, provocando lesões no braço e no antebraço das vítimas que só aconteceriam caso as vítimas estivessem rendidas – de joelhos no chão, com os braços na cabeça. A possibilidade de realizar o registro de “auto de resistência” corresponde à possibilidade de descrever uma situação como essa de outra forma: trata-se da produção de um documento oficial que localiza a morte em questão como decorrente da resistência à autoridade policial, como se tivesse havido confronto, como se o agente de Estado que efetuou o disparo o tivesse realizado para se defender. E tal forma de registrar determinadas mortes surgiu durante a ditadura militar aqui no Brasil: inicialmente regulamentado pela Ordem de Serviço “N”, no 803, de 2 de outubro de 1969, da Superintendência da Polícia Judiciária, do antigo estado da Guanabara, o “auto de resistência” foi registrado pela primeira vez no dia 14 de novembro do mesmo ano, após uma ação policial realizada por integrantes do Grupo Especial de Combate à Delinqüência em Geral – grupo que também havia sido formado em 1969 e ficou conhecido como “Grupo dos Onze Homens de Ouro”, como nos conta o desembargador Sergio Verani em seu livro “Assassinatos em nome da lei”. Em dezembro de 1974, o conteúdo da Ordem de Serviço 803/69 foi ampliado pela Portaria “E”, no 0030, do Secretário de Segurança Pública e, de acordo com Verani, esta Portaria desenvolveu uma ilegalidade básica, pois estabelecia que o policial não poderia ser preso em flagrante nem indiciado. Portanto, ao recomendar o fim da utilização de designações genéricas como “auto de resistência” e “resistência seguida de morte”, tal resolução do CDDPH orienta as unidades da federação a produzirem normas estaduais ajustadas ao Programa Nacional de Direitos Humanos 3 e às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA e da Organização das Nações Unidas para o Estado brasileiro. Para além de uma simples mudança de termos, trata-se também de oficializar e publicizar, enquanto instância governamental, o reconhecimento de uma prática violadora de direitos que vem sendo atualizada desde a ditadura no cotidiano mesmo do funcionamento estatal.

O documento estabelece que a Ouvidoria de Polícia deve “monitorar, registrar, informar, de forma independente e imparcial, possíveis abusos cometidos por agentes de segurança pública em ações de que resultem lesão corporal ou morte”. Como vocês avaliam o papel das ouvidorias?

Criadas com o objetivo de receber denúncias, as ouvidorias de polícia são uma espécie de órgão de controle externo das forças de segurança pública e um canal importante de participação da sociedade civil. No entanto, ainda carecem de independência para poder realizar um trabalho mais efetivo. Criado com o objetivo de fortalecer e aprimorar as corporações policiais, o Fórum Nacional de Ouvidores, do Ministério da Justiça, recomenda que os ouvidores devem  ter autonomia e independência, sem vínculo de subordinação hierárquica com as polícias. Recomenda ainda que os decretos/ou a legislação que institucionalizam as ouvidorias tem que garantir o mandato dos Ouvidores, corpo de funcionários, sede própria e independe da estrutura de segurança publica e recursos financeiros adequados ao exercício de suas funções. São os governadores que escolhem os Ouvidores ou por via de uma lista tríplice encaminhada pelos Conselhos de Direitos Humanos ou diretamente a partir de sua indicação pessoal, o que por si só já limita a independência das ouvidorias. Um bom exemplo é a Ouvidoria de São Paulo, a primeira a ser criada. Em seus primeiros mandatos essa ouvidoria realizou um excelente trabalho produzindo informações, investigações e sugestões para o aprimoramento das instituições policiais. No entanto, suas denúncias e visibilidade incomodaram o governo do Estado que passou a boicotar seu trabalho, diminuindo sua estrutura, cortando orçamento, enfraquecendo sua capacidade de atuação.
Assim, nós defendemos e apoiamos a proposta de ouvidorias de fato independentes, com capacidade de realizar investigações e produzir recomendações.

A resolução proíbe, em fardamentos e veículos oficiais das polícias, o uso de símbolos e expressões com conteúdo intimidatório ou ameaçador, bem como a utilização de frases e jargões em músicas ou jingles de treinamento que façam apologia ao crime e à violência. Qual a opinião de vocês sobre a eficácia dessas orientações?

Tais proibições referem-se à utilização de símbolos como, por exemplo, uma caveira que traz cravada uma faca, ou letras cantadas em treinamentos e formações policiais cuja divulgação se deve em grande medida àquelas associadas ao Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, como as seguintes: “Homem de preto, qual é sua missão? Entrar pela favela e deixar corpos no chão! Homem de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o satanás!" e “No BOPE tem guerreiros que matam guerrilheiros… A faca entre os dentes esfola eles inteiros… matam, esfolam, sempre com o seu fuzil… No BOPE tem guerreiros que acreditam no Brasil”. Mais do que simbolizar a violência, esses elementos – sejam eles imagéticos ou textuais – acabam por legitimar o exercício de práticas violentas, daí a relevância de um posicionamento oficial contrário à sua utilização.

O artigo XXI da resolução condiciona o repasse de verbas federais ao cumprimento de metas públicas de redução de homicídios e desaparecimentos relacionados à intervenção policial e a participação de agentes públicos. Vocês acham que condicionar o repasse de verbas a redução desses índices pode ajudar a reduzi-los?

Considerando que diferentes projetos estatais de políticas públicas de segurança são executados a partir de uma lógica de valorização (e legitimação) do uso excessivo da força – quadro que se evidencia, por exemplo, no programa de “premiações por bravura” implementado pela Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, entre os anos 1995 e 1998, que chegou a proporcionar incrementos de até 150% sobre o salário original de agentes do estado (especificamente policiais militares) diretamente envolvidos em ocorrências com resultado de morte de suspeitos – é fundamental a produção de diretrizes que caminhem na direção oposta dessa corrente. O condicionamento do repasse de verbas ao cumprimento de metas públicas de redução de homicídios expressa apenas parte da reestruturação necessária à agenda da segurança pública nos diferentes estados brasileiros, cuja pauta mais urgente é a própria desmilitarização. 

Como vocês avaliam a criação de unidades especializadas, previstas na resolução, com o objetivo de auxiliar os(as) promotores(as) com conhecimentos e recursos para a investigação nos casos de homicídios decorrentes de intervenção policial?

Podemos mencionar uma experiência interessante em São Paulo, em que o Ministério Público possui uma equipe dedicada ao controle externo da atividade policial, o Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP). O Grupo é composto por promotores de Justiça indicados pelas Promotorias Criminais dos Foros Central e Regionais, do Júri, do Juizado Especial Criminal e das Execuções Criminais, designados pelo Procurador-Geral e tem como atribuição o recebimento de representações, petições e notícias relacionadas a irregularidades ou infrações penais praticadas por membros das polícias Militar e Civil no exercício de suas funções, e a realização de visitas aos estabelecimentos policiais e cadeias públicas, com a elaboração de atas descrevendo as constatações e ocorrências encontradas ali. Também é responsável pelo recebimento das denúncias de abusos, maus-tratos, tortura e homicídios praticados por agentes do Estado enviadas ao Ministério Público por pessoas ou entidades, bem como pela adoção das medidas necessárias para a apuração dos fatos.

Essa resolução contempla as reivindicações da sociedade civil nessa área?

Diferentes organizações de Direitos Humanos nacionais e internacionais há anos vêm se posicionando publicamente pelo fim da utilização dos registros “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” – bandeira que adquire vitalidade e força a partir do momento em que os movimentos sociais formados especialmente por familiares de vítimas fatais de ações policiais (cujas mortes foram registradas, na imensa maioria dos casos, como “autos de resistência”) trazem essa reivindicação para o conjunto de prioridades de sua luta. A campanha lançada pelo Movimento Mães de Maio (SP) certamente é a expressão mais concreta dessa articulação de forças, condensada através de um abaixo assinado que veio ao público em fevereiro de 2012, no qual se exigia fim de tais registros. Além do próprio Movimento Mães de Maio (SP), a abertura da lista de assinaturas traz os movimentos Rede de Comunidades e Movimentos Contra Violência (RJ), Associação de Mães e Familiares de Vítimas de Violência do Estado do Espírito Santo (ES), Campanha Reaja ou será Morto, ou será Morta! (BA), Grupo de Apoio Familiares de Pres@s e Frente Anti-Prisional das Brigadas Populares (MG) e Rede Nacional de Familiares e Amig@s de Vítimas do Estado Brasileiro.

Fonte da imagem: Flicker/Andréa Farias.