Muitas disputas e poucos avanços para a implementação do Protocolo de Cartagena e no Protocolo Suplementar de Nagoya Kuala-Lumpur

Após cinco dias de negociações, a MOP6 da Índia, que contou com cerca de mil e quatrocentos delegados inscritos, registrou poucos avanços para a efetivação do Protocolo de Cartagena, assim como para a entrada em vigor do Protocolo Suplementar de Kuala-Lumpur.

De modo geral as partes mostraram muita preocupação com o declínio na destinação de recursos para a efetivação do Protocolo, fato que contrasta com o avanço na utilização em larga escala dos transgênicos no mundo, colocando em cheque a proteção da biodiversidade. O fortalecimento dos mecanismos de financiamento que viabilizam a existência do Protocolo de Cartagena e a afetiva destinação de recursos financeiros para tanto são indispensáveis para avançar na proteção da biodiversidade frente aos riscos gerados pela utilização em larga escala de transgênicos.

A União Européia, assim como o Japão, atuaram durante toda a MOP 6 com uma estratégia de reduzir ao máximo os instrumentos e mecanismos de implementação do Protocolo de Cartagena para, assim, reduzir também a necessidade de fundos para sua implementação. Como alternativa buscavam fomentar mecanismos de contribuição voluntária para as partes, mudando a lógica de financiamento da proteção da biodiversidade pelos países do norte, maiores responsáveis pela degradação. A doação voluntaria torna o Protocolo e seus mecanismos flexíveis aos interesses dos principais doadores. O Brasil posicionou-se de forma contundente pela necessidade de garantir a contribuição obrigatória dos países partes do protocolo, rechaçando que as contribuições voluntárias substituam o mecanismo obrigatório, posição fechada do GRULAC (Grupo dos Países da America Latina e Caribe) e dos países africanos.

A falta de recursos para a implementação do Protocolo de Cartagena apareceu de forma contundente quando na plenária final a planilha de gastos para o próximo período entre sessões, até a MOP 7 na Coréia do Sul, em 2015, não previa destinação de recursos para os dois AHTEGs (Ad Hoc Technical Expert Groups - Gestão e avaliação de riscos e considerações socioeconômicas) criados. Assim, mesmo após grandes embates sobre o estabelecimento dos AHTEGs, sua existência foi relegada à possibilidade de aporte de recursos voluntários. Na plenária final a Bolívia surpreendeu a todos ao confirmar que aportará os 50.000 dólares necessários para o funcionamento do AHTEG de considerações socioeconômicas. A postura da Bolívia, fundamental para a implementação do AHTEG, parece inverter a lógica de financiamento de importantes instrumentos do protocolo pelos países do Norte Global.

Destaca-se que após intenso debate, com forte resistência do Paraguai, a questão relacionada com impactos socioeconômicos derivados da utilização de transgênicos foi incluída como uma das prioridades do programa geral que orienta a atuação do GEF (Global Environment Facility – Fundo Global para o Meio Ambiente) nos próximos quatro anos no financiamento das atividades relacionadas com o Protocolo de Cartagena, posição liderada pela Bolívia. Destaca-se ainda que foi aprovada, com resistências da União Européia, a designação para que o Secretário Executivo da CDB (Convenção sobre Diversidade Biológica) reúna-se com o GEF para tentar buscar a abertura de uma linha específica de financiamento para a implementação do Protocolo de Cartagena, conforme sugerido pela Bolívia.

Por fim, não se pode deixar de destacar o abismo existente entre o aporte de recursos para salvar instituições financeiras responsáveis pela atual crise econômica com os recursos que são aportados para implementação do Protocolo de Cartagena. A diferença entre os bilhões de dólares utilizados para salvar bancos sem a imposição de uma regulamentação rígida do sistema financeiro e os cem mil dólares faltantes para a instituição de dois grupos de trabalho do Protocolo de Cartagena são fieis indicadores dos reais interesses dos países do Norte Global.

Abaixo estão listadas mais informações sobre decisões tomadas nos temas relacionados com 1) O estabelecimento do grupo de trabalho (AHTEG) sobre gestão e avaliação de riscos de transgênicos e avaliação dos trabalhos já realizados; 2) identificação de cargas que contém transgênicos; 3) sobre a implementação do Protocolo Suplementar sobre responsabilidade por danos gerados por transgênicos; 4) considerações socioeconômicas quanto à utilização dos transgênicos.

GRUPO DE TRABALHO (AHTEG) SOBRE GESTÃO E AVALIAÇÃO DE RISCOS DE TRANSGÊNICOS
Após mais de onze horas de duros embates decidiu-se por não endossar Road Map (um guia prático para avaliação e gestão de riscos) e pela continuidade do Grupo de Trabalho (AHTEG) sobre avaliação da gestão de riscos sobre transgênicos. O AHTEG foi criado em 2008 durante a MopCoP4 e durante esses 4 anos teve entre seus objetivos elaborar estudos para contribuir com a criação de capacidade para avaliação e gestão de riscos em países do Sul Global. Para tanto elaborou um Road Map e submeteu aos países para aprovação nesta CoPMoP 6. Em que pese ao grupo já ter testado o Road Map, conforme determinou a ultima decisão da COP10 no Japão, nesta CoPMop 6 os países não endossaram o Road Map sob a mesma justificativa de que o documento deveria, antes, ser avaliado e testado pelas partes com experiência no tema, prevalecendo assim a posição do Brasil, Paraguai, Índia e África do Sul, já que a União Européia, o Grupo Africano, China e Colômbia se posicionaram pelo endosso do Road Map, o que tornaria o documento elaborado pelo AHTEG uma referência internacional no tema. Sem o endosso, o documento perde força para ser usado como instrumento de pressão para que as avaliações e gestão de riscos sejam feitas como maior compromisso com a biodiversidade, como no caso da CTNBio no Brasil, que aprova a liberação de variedades de transgênicos sem tomar as devidas cautelas legais.

A União Européia e Paraguai se opuseram à continuidade do trabalho do AHTEG, sob a justificativa de que os documentos produzidos pelo grupo deveriam ser avaliados e testados pelos países partes do Protocolo de Cartagena, antes da realização de novos estudos sobre transgênicos. Por outro lado, países como Bolívia, Moldávia e o Grupo Africano propunham a continuidade do AHTEG para realizar estudos sobre novos tipos de transgênicos e realizar estudos sobre gestão de riscos para os transgênicos já abordados pelo grupo, prosseguindo também na elaboração guias práticas para a gestão e avaliação de riscos. Prevaleceu, entretanto, uma posição intermediária, defendida por Brasil e Filipinas, encerrando as atividades do atual AHTEG para criar um novo grupo de especialistas que deverá trabalhar para subsidiar as partes na avaliação do Road Map e para desenvolver atividades de criação de capacidades para as partes que necessitam, sem, contudo, ter o mandato para realizar estudos e guias sobre outros transgênicos.

Apesar desta posição de centro do Brasil, o mandato do AHTEG de avaliação de riscos foi completamente alterado, e nos próximos três anos não haverá novas avaliações de riscos sobre OGMs (Organismos Geneticamente Modificados). Essa decisão dificulta, quando não inviabiliza, que países subdesenvolvidos tenham instrumentos para realizar a avaliação de riscos, dada a ausência de capacidade interna, ao passo em que facilita a liberação comercial de transgênicos por órgão que tem maiores compromissos com os interesses comerciais do que com a preservação da biodiversidade, como é o caso do Brasil.

IDENTIFICAÇÃO DE CARGAS QUE CONTÊM TRANSGÊNICOS
Esta MOP6 analisou a implementação do art. 18 b) e c) do Protocolo de Cartagena sobre a identificação de cargas que contêm sementes e outros materiais genéticos transgênicos para uso contido (pesquisas) e para introdução deliberada no meio ambiente (cultivo), previsão de especial interesse para países que são grandes produtores e exportadores de transgênicos, mas que precisam importar a tecnologia, como é o caso do Brasil. Já a decisão sobre o art. 18 a) sobre a necessidade de identificação de cargas que contêm ou podem conter grãos transgênicos destinados à alimentação humana e animal (ração), objeto de acalorados debates durante a COP3 de Curitiba, e de especial interesse para os países importadores destes grãos, como a União Européia (cuja maioria dos países não plantam transgênicos), será decidida na próxima MOP 7 em 2015.

A identificação da quantidade e qualidade de sementes transgênicas introduzidas nos países para pesquisa e cultivo pode facilitar a avaliação e manejo de riscos de cada OGM, assim como facilita a aplicação de um sistema de responsabilidade pelos países frente às empresas desenvolvedoras da tecnologia, em caso de algum dano gerado pelo OGM introduzido no país. Além disso, a identificação de cargas contendo material genético transgênico pode ser o primeiro passo para o desenvolvimento de um sistema nacional de rastreabilidade e rotulagem dos alimentos e ração transgênica a fim de garantir os direitos dos consumidores à informação. Apesar de obrigatório no Brasil, o sistema de rastreabilidade e rotulagem não tem aplicabilidade, fazendo com que a grande maioria dos alimentos produzidos a partir de transgênicos cheguem às prateleiras dos mercados sem qualquer informação.
Muito pressionado pelos representantes do Ministério da Agricultura, o Brasil se opôs a qualquer instrumento de informação para identificação das cargas que contêm transgênicos, requerendo a supressão da menção sobre a ferramenta “quick link” já desenvolvida pelo sistema de informação do Protocolo de Cartagena.

A proposta feita pela Bolívia, relembrando a decisão já tomada pelas Partes do Protocolo, convida os países exportadores da tecnologia GM (Genetic Modification – modificação genética), como os da União Européia (que sedia empresas como Syngenta, Bayer e Basf) a utilizar este link com informações sobre determinados transgênicos que sejam objetos de uma exportação. Deste modo, a decisão apoiada pelo Brasil, Paraguai e a União Européia coloca os países que cultivam transgênicos em posição muito fragilizada perante as grandes desenvolvedoras da tecnologia. Esta ferramenta “quick link”, no entanto, foi mantida na decisão sobre as notificações para a primeira importação/exportação de um determinado transgênico (art. 8 do Protocolo). Deste modo, os países importadores podem pedir aos exportadores para que utilizem o código de barras do quick link, facilitando o acesso a diversas informações sobre o transgênico.

O Brasil, temendo embargos a suas exportações de grãos transgênicos, ainda se opôs fortemente a qualquer menção sobre criação de novos códigos para OVMs (Organismos Vivos Modificados) e sua introdução no sistema de códigos já existente do Comitê de Vigilância Sanitária e Fitossanitária da OMC. Também foi retirada do texto menção sobre o uso de identificadores únicos para plantas transgênicas, assim como a consideração sobre o uso da Regulamentação Modelo para Transportes de Mercadorias Perigosas para alguns tipos de transgênicos considerados perigosos pela avaliação de riscos, referencia que vem sendo aprovada desde a COP3 de Curitiba (BS III/7). A incorporação de documentos independentes específicos como parte dos documentos aceitáveis para a identificação das cargas, proposta pela Bolívia e apoiada pelo grupo africano, também foi eliminada da decisão.

Deste modo, com o apoio do Brasil, a decisão sobre a necessidade de identificação de cargas contendo material genético transgênico foi muito enfraquecida, reduzindo a capacidade dos países em regulamentar os transgênicos, o que deve impactar negativamente as próximas negociações sobre a identificação das cargas para alimentação e ração que acontecerão na próxima COP12 na Coréia do Sul, que desde a COP3 de Curitiba em 2006 vem sendo postergada.

PROTOCOLO SUPLEMENTAR SOBRE RESPONSABILIDADE POR DANOS GERADOS POR TRANSGÊNICOS
O protocolo suplementar ao Protocolo de Cartagena chamado Nagoya-Kuala Lumpur (para mais informações nos Boletins Informativo Biodiverside e Rio+20 nº 1 nº 2), aprovado na ultima COP10 de Nagoya-Japao, entrará em vigor internacionalmente depois de 90 dias após o deposito de 40 ratificações. Até agora apenas 3 países (México, Republica Checa e Letônia) depositaram seus instrumentos de ratificação. A decisão sobre o Protocolo Nagoya Kuala-Lumpur convida as partes da Convenção e do Protocolo de Cartagena a assinar e ratificar este novo protocolo, assim como requer recursos financeiros para realizar oficinas de capacitação e elaborar guia explicativo sobre o que é este novo Protocolo e como pode ser ratificado e implementado pelos países. 

O Brasil, apesar de ter liderado as negociações para a assinatura deste protocolo em Nagoya, não se pronunciou sobre esta decisão, não convidou as partes para sua assinatura e ratificação, e requereu a retirada de qualquer menção sobre este Protocolo das demais decisões oficiais da MOP6, já que ainda não entrou em vigor. Esta postura claramente influencia os demais países a não ratificar o referido protocolo, contrariando as legislações nacionais sobre responsabilidade em biossegurança ambiental e consumista. A postura brasileira é fortemente influenciada pelo Ministério da Agricultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia, em detrimento da posição da sociedade civil brasileira e dos Ministérios do Meio ambiente e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que requerem a ratificação do Protocolo de responsabilidade por danos gerados por transgênicos, o qual pode permitir a responsabilização das transnacionais de biotecnologia por danos gerados por transgênicos.

CONSIDERAÇÕES SOCIOECONÔMICAS QUANTO À UTILIZAÇÃO DOS TRANSGÊNICOS
Atendendo a demanda histórica da sociedade civil internacional e de cientistas independentes e dos países em desenvolvimento, esta COP6 ainda aprovou a criação do Grupo de Experts (AHTEG) para avaliar os impactos socioeconômicos dos transgênicos. Segundo o art. 26 do Protocolo de Cartagena, conforme interesses nacionais, os países podem realizar avaliações dos impactos socioeconômicos da tecnologia transgênica, especialmente aos modos de vida dos povos locais que vivem em estreita relação com a biodiversidade.

Dentre os impactos socioeconômicos que vêm sendo apontados por especialistas no mundo todo sobre os transgênicos estão: o aumento do uso de agrotóxicos associados à tecnologia; o aumento no preço das sementes devido ao pagamento de royalties e a concentração da cadeia produtiva agroalimentar que leva os países produtores a ficar reféns dos preços proibitivos exercidos pelas seis empresas que detém a tecnologia transgênica e monopolizam o mercado: Monsanto, Syngenta, Bayer, Basf, Down Agroscience e Du Pont; o impacto ao direito de escolha das comunidades agricultoras sobre o sistema produtivo (orgânico, agroecológico, convencional ou transgênico); e ao direito humano à alimentação, como aponta o Relator Oliver De Shutter da ONU.

O grupo de experts deve desenvolver um conceito claro sobre o que sejam considerações socioeconômicas, a partir do resultado do trabalho do secretariado da Convenção que irá compilar as legislações e políticas nacionais existentes sobre impactos socioeconômicos. A composição do Grupo foi alvo de fortes debates, já que o Paraguai, de forma intransigente bloqueou a criação do Grupo até que fosse possível garantir sua representação. Deste modo, a composição foi ampliada de 5 especialistas para no mínimo 5 e no máximo 8 especialistas por região da ONU e entre 5 e 10 observadores, representando países não-Partes, agências da ONU, organizações empresariais e da sociedade civil, além de comunidades locais e povos indígenas.

Para facilitar a participação da sociedade civil, leia-se de grupos empresariais, o Brasil - pressionado por empresas de biotecnologia como a ICONE e o MAPA, defendeu que o Grupo não produza diretrizes vinculantes para os países, mas apenas orientações, a fim de enfraquecer o mandato do AHTEG. Também o Brasil encabeçou a proposta de criação de um grupo on-line de discussões, assim como conferencias regionais para influenciar os trabalhos dos especialistas. Isto porque, também os impactos positivos dos OGMs serão analisados pelo Grupo, que irá depender dos especialistas indicados e da capacidade de influencia das empresas, este poderá servir como propaganda para a comercialização de transgênicos. No entanto, como os impactos negativos dos OGMs do ponto de vista econômico, sócio-cultural e mesmo tecnológico se espalham por todo o mundo, o Grupo terá um papel relevante para a sistematização destes impactos para definir o conceito do que sejam considerações socioeconômicas.

Cabe à sociedade civil organizada, a movimentos sociais, povos e comunidades tradicionais, assim como órgãos públicos comprometidos com o princípio da precaução e dos direitos humanos, sistematizar as informações e os casos e experiências sobre os diversos impactos socioeconômicos dos OGMs nos territórios e enviar para o Grupo criado na CDB, para que enfim os países possam tomar medidas de proteção à biodiversidade, saúde humana e os direitos dos povos.

Por Larissa Packer e Fernando Prioste, da COP11, Índia