“Desenvolvimento Limpo” em xeque

 

O abstrato bem comum “carbono” se formalizou como mercadoria em 2005, com a aprovação, no marco do Protocolo de Quioto, de “mecanismos de flexibilização”, dentre os quais, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL).  Para entidades críticas à financeirização da natureza, como a FASE, tais mecanismos são uma espécie de verme da maçã. Quer dizer: ao mesmo tempo em que os países industrializados do Norte passam a ter o compromisso de reduzir emissões de gases-estufa pelo Protocolo, constroem a possibilidade de comprar créditos de países sem as mesmas obrigações para compensar suas emissões, nunca necessitando mudar os modos de produção e consumo no próprio território. Por isso, Maureen Santos, do Núcleo de Justiça Ambiental (NBJA) da FASE, acredita que “a inovação que o MDL traz é uma mentira: ele representa apenas a manutenção de um status quo que já existia”.

Para referendar esse tipo de crítica e dar um embasamento técnico aos movimentos sociais, o NBJA fez um levantamento de todos os projetos de MDL – aprovados e em andamento – no Brasil até março de 2012. A iniciativa parece ainda mais interessante diante da próxima Conferência sobre Mudança Climática que acontece em Doha, no Qatar, em novembro. Recentemente, a secretária-geral da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudança do Clima (UNFCCC) Christiana Figueres, afirmou que no encontro devem ser feitas emendas ao Protocolo de Quioto “para que o único acordo climático em vigor prossiga atualizado e eficiente”. Sabemos que o caminho será longo já que o período de vigência do Protocolo de Quioto expira este ano sem que os compromissos assumidos fossem cumpridos pelos países signatários. Assim, o mapeamento empreendido pela FASE ajuda a compartilhar informações gerais sobre os casos de MDL no terceiro país com maior número de projetos no mundo, e a questionar a eficácia dos mecanismos de flexibilização e mesmo do Protocolo.

No próximo mês, será lançado um Relatório-Síntese sobre o mapeamento. Na entrevista a seguir, Maureen Santos fez alguns esclarecimentos do que considera como “falsa solução” aos problemas climáticos.

Clique para ver o mapa.

O Núcleo de Justiça Ambiental da FASE e diversos movimentos sociais, organizações e representantes da sociedade civil possuem um posicionamento crítico em relação ao MDL – e às demais práticas de financeirização da natureza. Isso ficou nítido inclusive na Cúpula dos Povos. Por que o MDL se apresenta como algo negativo?

A gente tem algumas críticas de base que, na verdade, o nosso mapeamento não vai resolver, mas vai aprofundar. O mercado de carbono traz falsas soluções à crise climática já que estabelece uma soma zero. Em vez de deixar de emitir carbono, o país compra o crédito de outro que está emitindo. Portanto, não é um mecanismo adicional, de enfrentamento de redução de emissão. Em geral, são pouquíssimas inovações.

Normalmente, são projetos que já existem, como – por exemplo – acontece com o caso do Plantar S/A, empresa que investe no monocultivo de eucalipto para a produção de carvão vegetal para o abastecimento da indústria siderúrgica. Isso já existia. Portanto, não é uma novidade o que o MDL traz. Pelo contrário: acho que é um meio para se conseguir mais recursos financeiros na repetição de um mesmo tipo de modelo de desenvolvimento sem que se discuta a necessidade de mudança de padrão de consumo, de produção e de distribuição. Sabemos todos os problemas gerados pelo monocultivo de eucalipto para a produção de carvão vegetal: pressão sobre o preço das terras, ameaça às comunidades tradicionais, degradação ambiental intensa... E o governo, em conjunto com essas empresas, diz que, na verdade, é uma contribuição para o meio ambiente já que não se utiliza carvão mineral.

Então, na verdade, temos alguns exemplos de MDL que pioram ainda mais o cenário. Porque não é inovação; pelo contrário: as empresas estão ganhando ainda mais recursos financeiros com algo que é extremamente prejudicial e impactante no território. Portanto, a redução de emissões calculada é, na realidade, de uma artificialidade muito grande. E ainda existem outros projetos produtores de impactos através de pequenas barragens. Ou ainda os projetos de biomassa, praticamente em todo o estado de São Paulo, associados ao monocultivo da cana-de-açúcar.

E o que você acha da justificativa de que o MDL ajuda a reparar a histórica “Dívida Ecológica” presente entre Norte e Sul?

Não se repara nada...! O dinheiro vai sempre para as mesmas empresas. A maioria das partes interessadas são bancos de investimento de fundos de carbono. Então, você está reparando o quê? As grandes empresas envolvidas no processo, em geral, não são empresas brasileiras. São empresas vindas de fora – e, no caso de algumas empresas brasileiras, já são essas que estão mais transnacionalizadas.

O carbono é uma commodity negociado em bolsas de valores, e movimenta supostamente milhões e milhões de dólares. Mas se você for pegar um projeto de MDL, o procedimento é muito complexo. Acaba que, pelo valor do carbono no mercado – e descontando toda essa questão do projeto –, não movimenta tantos recursos financeiros assim, e envolve muitos custos de transação.

 

As empresas usam o mercado de carbono, sobretudo, para o que chamam de green washing ["lavagem verde"], buscando tornar sua imagem mais ambientalmente positiva. Empresas siderúrgicas inclusive, com graves problemas de poluição, mudam parte de seu processo produtivo para reduzir emissões – que, em geral, é bem pouca – e conseguem vendê-las, em forma de crédito, através de projeto de MDL. É como se elas estivessem fazendo uma benfeitoria para a questão climática, quando, na verdade, todo o impacto produzido no local permanece.

De que maneira o mapa pode intervir para mostrar os problemas – ou as “falsas soluções” – que o MDL traz?

Primeiro, gostaríamos de ter uma visão geral de como isso estava no Brasil. O MDL aqui é a oficialização do mercado de carbono, e acreditamos ser preciso ter uma noção geral da forma que isso está acontecendo para saber, num aprofundamento futuro da pesquisa, como esses projetos impactam o território. A partir desta visão geral produziremos o Relatório-Síntese, que vai apresentar o mapa, além de ajudar a comprovar hipóteses críticas ao mercado de carbono.

Inicialmente, é um levantamento mais quantitativo – feito para saber o que já existe. Diversos movimentos sociais brasileiros questionam o mercado de carbono. Em geral, se escuta muito um discurso – tanto por parte do governo quanto mesmo das Nações Unidas – de que o MDL é um mecanismo de sucesso. Mas a gente já está vendo alguns setores da ONU que reconhecem que não foi, e não é, tão sucesso assim. Se analisarmos um período de 2005 para 2012, o que corresponde a sete anos, qual foi realmente o impacto que o MDL teve na redução de emissões mundiais? Acho que um levantamento assim geraria um dado ridículo. O mapa pode ajudar a referendar esse tipo de crítica para os movimentos terem também um embasamento técnico na crítica que, até aqui, é feita a partir desta base dos princípios, como afirmei no início.

E a partir do mapa, como você acredita que devemos seguir? Com ele vai ser possível apontar “soluções”?

Quando pensamos em fazer o Relatório-Síntese e o mapa, imaginamos fazer uma base sólida de pesquisa para que os movimentos sociais pudessem se apoderar – e, com isso, fazer uma crítica para além resistência que já se tem, mas também para mostrar – por ‘A’ mais ‘B’ – que ‘isso aqui’ não está realmente funcionando. A ideia era contribuir com um subsídio para essa crítica.

Portanto, isso seria mais para sustentar uma resistência – e mostrar que tais mecanismos representam uma falsa solução – do que propriamente para mostrar outra ‘solução’. Paralelamente a isso, participamos em um debate geral sobre bens comuns e sobre alternativas aos Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) para, exatamente, pensarmos em mecanismos que possam ser concretos a partir de políticas públicas, e que favoreçam mesmo as comunidades, reconhecendo o papel delas na preservação ambiental e na questão da sustentabilidade.

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Fonte: FASE (01/08/2012)