Sonderweg e German Angst? Alemanha define fim da era nuclear no país

Entre historiadores alemães e não alemães, a teoria do Sonderweg, do “caminho particular”, foi uma das polêmicas mais acirradas, principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Apontando para a falta de um processo republicano – o Império Alemão caiu somente em função da derrota na Primeira Guerra Mundial, em 1918 – e outros fatores, a teoria tentou explicar por que num país no meio da Europa o nazismo pôde nascer e se desdobrar de forma tão catastrófica.

Da mesma forma como Sonderweg, a German Angst - o Medo Alemão - entrou no vocabulário inglês e internacional, dando expressão à suposição de que os alemães são um povo pouco relaxado, que se preocupa com tudo.

Agora, mais uma vez, a Alemanha está caminhando a passos largos num Sonderweg. Muitos dizem que essa caminhada seria resultado de um medo específico que move o povo alemão, tão diferente da mentalidade dos vizinhos franceses que apoiam ou pelo menos pouco contestam uma política nuclear expansiva, com atualmente 58 reatores que produzem quase 80% da energia elétrica no país. Em decisão inédita, o governo alemão, no dia 29 de maio, decidiu que o último dos 17 reatores nucleares em operação no país será desativado até 2022.

Depois do acidente de Fukushima, o governo já havia mandado desligar os oito reatores mais antigos que, de acordo com a decisão da chanceler Angela Merkel e seu gabinete, em 30 de maio, não serão mais reativados. Com essa decisão, a coalizão entre o partido conservador-cristão (CDU) e o partido liberal (FDP) revê, de forma espetacular, a própria política estabelecida em 2010. Recém-eleito, esse governo revogou uma lei da gestão anterior (coalizão dos partidos Social-democrata e Verde), que determinava a saída da Alemanha do programa nuclear até 2021, e estendeu os prazos até 2035. Agora, volta tudo. E mais: no caso dos sete reatores, haverá desativação até antes do que fora previsto no plano anterior, vermelho-verde.

De acordo com membros do governo, a decisão é irrevogável, sem truques ou “jeitinhos”. Exatamente por isso se fez questão de firmar um acordo com a oposição. O Partido Verde alemão, no entanto, criticou a decisão. Depois de Fukushima, ele e muitos grupos ambientalistas passaram a fazer forte pressão para que o último reator fosse desativado o quanto antes (o PV alemão trabalhou nos últimos meses com o ano-meta de 2017) em vez de apenas em 2022. O presidente do partido, Jürgen Trittin, alertou para a possibilidade de que a diminuição da energia nuclear possa ser contrabalançada por um aumento de energia elétrica gerada por usinas a carvão mineral. Atualmente, os 17 reatores alemães contribuem com 22% para a produção da energia elétrica do país. Por sua vez, as grandes empresas operadoras das usinas já anunciaram que entrariam na justiça contra a decisão governamental.

Na realidade, o que está acontecendo na Alemanha pode ser considerado antes expressão de coragem do que do suposto medo dos alemães. A decisão terá consequências financeiras, dentre outras. É provável que o custo da eletricidade para a população aumente a curto prazo. Mas os alemães confiam que logo será demonstrada a viabilidade também econômica das energias renováveis. Eles parecem ter compreendido que esse Sonderweg alemão é o caminho do futuro, que a energia nuclear é um beco sem saída, o caminho rumo ao passado de uma modernidade mal compreendida. Um número crescente de especialistas já não fecham os olhos perante essa verdade, como foi demonstrado também em eventos organizados pela Fundação Heinrich Böll.

Aliás, os alemães já não caminham tão solitários assim nesse Sonderweg. Quatro dias antes da decisão na Alemanha, o governo da Suíça decidiu pôr fim ao programa nuclear nacional. Os cinco reatores serão desativados entre 2019 e 2034, e não haverá novas construções. A Áustria, outro vizinho da Alemanha, há 30 anos decidiu em plebiscito não entrar na onda da energia nuclear. E em nível mundial, apesar dos planos de expansão de China, França e Brasil, a tendência aponta claramente para a diminuição do número de reatores nos próximos anos.

Na Alemanha, a curto prazo, a discussão deverá se concentrar em como assegurar que os 22% (de energia elétrica gerada pelas usinas nucleares) sejam substituídos por energias renováveis e não através de usinas a carvão. Afinal, o país se comprometeu a baixar emissões de carbono para 40% do nível de 1990 até 2020 e 80% até 2050. Há sinais promissores. Nos últimos dez anos, a participação das energias renováveis na produção de eletricidade subiu de 5% para 17% e o Plano Nacional de Ação para Energias Renováveis recentemente aumentou a meta para 2020 de 30% para 38,6%. Espera-se um aumento significativo principalmente das energias eólica e solar. O Fundo de Clima e Energia deve financiar investimentos em automóveis elétricos e melhorias no isolamento de prédios e casas.

Mas carros elétricos certamente não serão a solução, e a política não pode parar na discussão sobre tecnologias. A médio prazo, uma “revolução de eficiência energética” dentro de uma concepção de economia verde tem seus limites e seus condicionantes na reflexão sobre como podemos e queremos viver, despedindo-nos do modelo desenvolvimentista e da fixação no crescimento econômico que tem no PIB seu fetiche. Também teremos que monitorar atentamente de que forma países europeus como a Alemanha eventualmente “exportam” as suas emissões de carbono, por exemplo, construindo uma enorme siderúrgica da ThyssenKrupp em Santa Cruz, no estado do Rio de Janeiro. Segundo dados apresentados pelo Partido Verde brasileiro, tal projeto aumentará as emissões de CO² desse estado em 76%, além de afetar seriamente a saúde e a base de subsistência de pescadores, agricultores e da população em geral da região.

Também temos que monitorar o que será da política alemã de apoio financeiro a empreendimentos nucleares. Esse mesmo governo que declarou o fim do programa nuclear concedeu uma garantia de crédito no valor de cerca de R$ 3,5 bilhões à empresa Areva NP, que irá fornecer equipamentos para a construção de Angra 3, além de outras garantias financeiras para a construção de usinas na China. No final de março deste ano, uma moção dos partidos da oposição visando a revogar o decreto que autorizava o aval da Areva foi recusada pelo Parlamento alemão. Mas será recolocado na pauta e reavaliado à luz da recente decisão do governo. Como disse a deputada federal alemã Sylvia Kotting-Uhl do Partido Verde em entrevista ao jornal O Globo: “Antecipo que o governo alemão vai ter que cancelar a garantia de crédito de exportação nuclear para Angra 3. O que não é bom para a Alemanha não pode ser bom também para o Brasil.”

E se os alemães conseguirão substituir os 22% gerados pela energia nuclear, para o Brasil será fácil abrir mão dessa fonte de energia dado o seu enorme potencial eólico e solar. Vale lembrar que a quantidade de eletricidade produzida por Angra 1 e 2 corresponde a menos de 3% de toda a energia elétrica gerada no país. E é bom saber também que o tipo de reator de Angra 2 e 3 é o mesmo daqueles reatores que o governo alemão teve pressa para desativar, entre outros motivos pelos padrões de segurança totalmente superados.

Tal raciocínio não é apenas de um alemão particularmente medroso, como demonstrou a reação do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) à decisão do governo da Alemanha. Em coluna publicada pelo jornal O Globo, ele afirmou: “Neste momento, construir usinas nucleares é uma temeridade que beira o crime. Até mesmo manter as atuais é viver sob risco de tragédia em algum momento. Ao invés de novas centrais nucleares, o Brasil precisa reduzir seu consumo de energia e investir em novas fontes; renováveis e menos perigosas. A decisão do governo alemão na semana passada, definindo prazo para desativar todas as suas usinas nucleares é um alerta que o Brasil não tem o direito de ignorar. E a Alemanha não tem as alternativas de fontes energéticas que temos. Se a Alemanha está assustada, será um crime fecharmos os olhos. Sobretudo ao lembrar que importamos a velha tecnologia que os alemães desenvolveram e agora já não serve para eles”. É isso aí.

 

Dawid Bartelt é diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil.

 

 

Saiba mais:

» Confira o pacote de medidas aprovado pelo governo alemão, no dia 6 de junho de 2011, para viabilizar o fim da era nuclear no país.

» Leia também o artigo "Apesar de Fukushima: o programa nuclear brasileiro", de Dawid Bartelt.