Religião e política: breves reflexões e proposições a partir de um olhar sobre os evangélicos

Marcha para Jesus, Curitiba - 21/05/2022

Os evangélicos de hoje estão longe de serem aqueles cujo senso-comum enquadraria, há décadas atrás, como apolíticos. Após a Constituinte e o apoio a Fernando Collor, dado sob pretensa ameaça à liberdade religiosa associada ao antipetismo, esses fiéis, nos anos seguintes, aumentaram sobremodo sua participação no governo do país. Em 2003, foi constituída a Frente Parlamentar Evangélica; três anos depois, deputados federais religiosos estavam envolvidos na fraude que ficou conhecida como Máfia das Sanguessugas. Além das candidaturas à Presidência encabeçadas por figuras como Anthony Garotinho e Marina Silva, a participação dos evangélicos também se estendeu à indicações aos Ministérios do Estado, além de posições na Advocacia-Geral da União, no Supremo Tribunal Federal e em diversas comissões e relatorias. A bandeira da maior parte dos evangélicos envolvidos na política formal passou a ser, nos últimos 10 anos, a defesa da família tradicional e o embate contra a população LGBT+[1]. Nesse sentido, se posicionam contrários ao aborto, à descriminalização do uso de drogas, à homo e à transexualidade, a uma suposta ideologia e doutrinação de gênero (que estaria acometendo as escolas e, mais amplamente, a sociedade), à corrupção e à cassação da liberdade de expressão. Foi em nome disso que muitos apoiaram o impeachment de Dilma Rousseff, se alinharam ao governo de Michel Temer e fizeram de Jair Bolsonaro seu mais fiel representante.

O que há de distinto no cenário brasileiro dos dias de hoje é que ele se conforma a partir de uma conjuntura geopolítica global de ascensão de movimentos antidireitos humanos, antipluralismo, antidiversidade; de governos de extrema direita, neofascistas, reacionários e de desmanche dos mecanismos democráticos, muitas vezes se utilizando desses próprios aparatos. E, frente a essa configuração, não custa lembrar que, no Brasil, o grupo dos que se autodeclaram evangélicos, sendo muitos deles conservadores e encontrando pontos de conformidade com essa direção transnacional, está cada vez maior. Ainda que o Censo não esteja disponível e que venha a mostrar taxa de crescimento menor do que as das décadas de 1990 a 2010, evangélicos continuam crescendo e são, pelo menos, em torno de 30% da população[2].  

Outra novidade está na articulação, muitas vezes intencional, desses religiosos, algo bem menos comum no período pós-Constituinte. Eles argumentam haver uma ameaça à identidade evangélica, isto é, a valores e crenças que precisam ser preservados. Mas vai além. Há organização entre eles quando se entende que está em jogo benefícios já adquiridos, como os relativos ao dinheiro (vale ter em mente que o inciso VI, do Artigo 150 da Constituição Federal de 1988, garante imunidade tributária a templos religiosos). Portanto, a participação dos evangélicos na política resume (ou é resumo de) um fenômeno que é próprio às relações democráticas, qual seja, o da disputa de narrativas em torno de definições e enquadramentos sobre o que pode ser considerado legítimo, lido, visibilizado e circulado na esfera pública. Mas a renovação desse embate traz os evangélicos como player incontornável no jogo de forças da sociedade. Quase não dá pra falar de mais nada hoje em dia sem falar dos evangélicos.

E esse é um grupo bastante conhecido por seu traço beligerante, expresso, no mínimo, na retórica. Uma parte dos evangélicos, desde pelo menos os anos 1980, evoca orixás e entidades de terreiro, depreciando-as como demônios a serem combatidos. Mas, atualmente, vê-se a concretude dessa violência estendida também a espaços considerados território de um inimigo que está na política, como as sedes dos três poderes do governo, invadidas em 08 de janeiro de 2023. Isto é, uma coisa que não mudou nos últimos anos é que as ameaças rotuladas de petismo, esquerdismo, comunismo e marxismo cultural continuaram sendo atualizadas na figura de Luiz Inácio Lula da Silva. Na contramão disso, no entanto, o fracasso brasileiro sanitário e socioeconômico decorrente da pandemia de Covid-19 não foi recuperado como responsabilidade de Bolsonaro, como mostram Teixeira e Reis (2022). Há um apagamento, uma despersonificação das dificuldades, que não deve ser lida como ignorância ou apatia por parte dos evangélicos, mas como uma agência que reclama outros circuitos e possibilidades de construção, como uma pedagogia de constituição de sujeitos e cidadãos dentro da democracia. E isso não deveria escapar à vista, mas há grande risco de o fazer se, na operacionalização das pesquisas, a capacidade de reflexão e decisão das pessoas for anulada, a ponto de elas aparecerem caricaturadas como uma massa de fiéis ignorantes.

 Vale, nesse sentido, evocar uma lógica múltipla/multinível de análise, de modo a separar, ainda que como ferramenta heurística, as dimensões das escolhas e atitudes das pessoas dos grandes projetos de poder. Esses projetos existem, mas nem sempre são coletivos, tampouco são sempre exitosos na cooptação de votos. Discursos oficiais importam bastante, mas as pessoas têm igualmente muito a dizer sobre suas redes de confiança e laços de afeto, jogando luz sobre a complexa e multifacetada cartografia do que é ser evangélico no Brasil. Operar nessa chave parece mais profícuo, pois ao invés de reduzir as racionalidades dos sujeitos, ajusta-se o foco aos modos como os evangélicos estão se politizando e àquilo que de fato consideram importante.   

Um caso em particular que ajuda a ilustrar como é preciso diferentes enfoques é o da família Valadão[3]. Durante a campanha eleitoral presencial de 2022, André Valadão fez coro e defesa ao conservadorismo dos costumes simbolizado na recandidatura de Bolsonaro, utilizando seu Instagram de mais de cinco milhões de seguidores não apenas para atacar Lula e o Partido dos Trabalhadores, mas para dizer que estava sendo acuado pelo Tribunal Superior Eleitoral e obrigado a se retratar publicamente. No entanto, ele difundia uma informação falsa usada de maneira deliberada para justificar que havia cerceamento de liberdade; o fato era que o pastor estava sendo notificado da citação em processo ajuizado pela Coligação Brasil da Esperança[4]. André é, portanto, um ótimo exemplar da religião como instrumento de poder e de disputa por lugar de fala, visibilidade midiática, benefícios políticos, recursos financeiros e possibilidade de extensão de uma agenda religiosa e reguladora a espaços territoriais, simbólicos, sociais e culturais, a partir da mobilização da luta contra um inimigo. Para ações desse tipo, continua sendo fundamental lançar mão, como fatores explicativos da aproximação do conservadorismo evangélico com a extrema direita, de noções como: Teologia do Domínio (Rosas, 2015a e b), guerra cultural (Mariano, 2022) e engajamento social a partir da luta contra a sociedade, a cultura e o Estado (Rosas, 2015a).  

Mas esse não é exatamente o caso de Ana Paula Valadão. Ela também manifestou voto em Bolsonaro, no entanto, abandonando o caráter belicoso e persecutório empregado pelo irmão, e defendendo, reiteradamente, que seu posicionamento se dava, de modo exclusivo, em função da defesa da família e para se opor à corrupção[5]. Fazendo frente a uma suposta degradação moral que estaria afetando a sociedade, transformou valores familistas e um apelo à integridade moral em voto a favor daquele que conseguia rivalizar com a “agenda esquerdista” (ou de direitos humanos). O movimento aqui descrito e comum a muitos evangélicos é o de calibrar a bússola no sentido de encontrar a melhor associação entre uma pauta moral/religiosa e os candidatos oficiais. E, para além disso, e talvez de modo ainda mais importante, cumpre avaliar essa disposição a partir das relações de gênero. Figuras como Ana Valadão, representadas no âmbito da política formal por mulheres como Damares Alves e Michelle Bolsonaro, são não apenas responsáveis por ações de cuidado e acolhimento nas igrejas, mas pela doutrinação e formação teológica de seus rebanhos. Essas mulheres agem como potentes agentes de produção de educação, autonomização, profissionalização e reformulação das subjetividades das pessoas. Há muitas teologias, como a feminista, a negra e a queer, que vêm mostrando isso, embora pareçam ainda distantes das lentes socioantropológicas.

Frente a esse rápido panorama, cabe apontar cinco desafios para as pesquisas futuras. O primeiro é o da operacionalização da heterogeneidade evangélica. Evangélicos são na maioria pentecostais, negros, pobres, mulheres e jovens. No entanto, não se pode ignorar o lugar simbólico e caro que vem sendo disputado e ocupado por grupos progressistas (Vital da Cunha, 2021) na orquestra de fazer frente aos “irmos de fé” literalistas bíblicos e/ou que se alinham à extrema direita. Segundo ponto: por mais que haja concordância em deixar de lado em termos epistemológicos e metodológicos as noções weberianas de separação e racionalização das esferas da vida, já engenhosamente relidas por Pierucci (1998), elas permanecem sendo um forte eixo norteador das investigações. Se realmente for levada a sério a tarefa de descolonizar o campo disciplinar, é mais fecundo adotar um posicionamento axial que parta do emaranhamento e da mútua construção das realidades religiosa e política em vez de repetir a ideia do transbordamento e do derrame de dimensões mais ou menos herméticas. Afinal, a religião é constituinte e não estrangeira à vida pública.

Terceiro, o foco nas mulheres é absolutamente fundamental. Há um levante antifeminista composto por evangélicas, mas também católicas, autodeclaradas genericamente cristãs ou sem uma identidade religiosa explícita, que acontece não apenas às custas da religião, mas alimentando-a. Valores caros ao conservadorismo religioso, como a família heteroafetiva e monogâmica, os papéis tradicionais de gênero e o cuidado das mulheres com os filhos, se tornam conteúdo performático de ação política, que aparece atrelado, em maior ou menor grau, à erudição (como a leitura divergente de obras feministas e marxistas ou o uso de literatura conservadora). São expoentes dessa tendência, a ser mais bem acompanhada, deputadas como Ana Caroline Campagnolo, Clarissa Tercio, Chris Tonietto, Greyce Elias, Amália Barros, entre outras.

Quarto: há muito ganho em descentrar o olhar das institucionalidades. Para compreender a crescente presença dos evangélicos no fazer político, Freston (2006) esboçou dois modelos de representação. De um lado, o institucional, centrado em propostas de dada igreja (como a Universal); de outro, o autoimpulsionado, uma candidatura individual e autônoma, sem que necessariamente respondesse ao eleitorado uma vez alcançado o cargo. Na ocasião, Freston confiava que a democracia não seria ameaçada pela crescente participação das igrejas evangélicas. Além da relação com o catolicismo antes e apesar da Proclamação da República ser um marco no país, ele apostou que não haveria semelhança com o terrorismo geopolítico associado ao Islã ou com a ofensiva da direita estadunidense. A forte aproximação e a emulação de Bolsonaro às ações de Trump colocaram parte dessa afirmativa em suspensão. Além do mais, tal leitura, tão pertinente ao início dos anos 2000, mesmo que não tivesse uma pretensão generalista, já não dá conta de determinadas redes e ações. É inescapável às pesquisas atuais o fazer político associando religião em articulação com as dimensões de família e mídias (as consolidadas e as redes sociais). Não se pode deixar de lado o fato de os grupos de WhatsApp serem elementos-chave na formação de opiniões, subjetividades e identidades. Também já não se pode ignorar a interseccionalidade, pois nem tudo significa a mesma coisa quando se está diante do acúmulo de posições de desprivilégio. Cabe, nesse sentido, um acerto com o pensamento decolonial e a rejeição da produção de conhecimento justificada pela desqualificação dos sujeitos tomados como objeto de interesse.

Quinto e último ponto, por fim. Também será preciso incluir ferramentas para lidar com o impacto não apenas das fake news, mas sobretudo das inteligências artificiais, às quais se atribui o potencial de reconfigurações nos próximos anos como jamais antes visto na história.

 

Referências

FRESTON, Paul. Religião e política, sim. Igreja e estado, não. Viçosa: Ultimato, 2006.

MARIANO, Ricardo. Ativismo político de evangélicos conservadores rumo à extrema direita. In: INÁCIO, Magna; OLIVEIRA, Vanessa Elias de. (Ed.). Democracia e eleições no Brasil: para onde vamos? São Paulo: Hucitec, p. 219-236, 2022.

PIERUCCI, Antônio Flávio. Secularização em Max Weber: da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37, 1998.

ROSAS, Nina. “Dominação” evangélica no Brasil: o caso do grupo musical Diante do Trono. Contemporânea-Revista de Sociologia da UFSCar, vol. 5, n. 1, p. 235-235, 2015b.

_________. Cultura evangélica e “dominação” do Brasil: música, mídia e gênero no caso do Diante do Trono. Tese (Doutorado em Sociologia) – PPGS/UFMG, Belo Horizonte, 2015a.

TEIXEIRA, Jacqueline Moraes; REIS, Lívia. Mulheres evangélicas para além do voto: notas sobre processos de engajamento, política e cotidiano. Debates do NER, Porto Alegre, ano 22, n. 42, p. 11-62, 2023.

VITAL DA CUNHA, Christina. Irmãos contra o império: evangélicos de esquerda nas eleições 2020 no Brasil. DEBATES DO NER, v.21, p.13 - 80, 2021.

 

[1] Sigla utilizada para fazer referência à comunidade de pessoas cuja identidade de gênero não se encontra no binarismo homem-mulher e/ou àquelxs que experimentam sexualidade fora da norma heteroafetiva.

[3] Valadão é a família que lidera a Igreja Batista da Lagoinha, originada em Belo Horizonte, e recém-chamada de Lagoinha Global, após ser assumida por André, filho de Márcio Valadão, quem liderou a igreja por 50 anos. Lagoinha está presente em diversos países e estima-se que reúna cerca de 700 igrejas sob sua rubrica.

[5] Cabe dizer que os escândalos envolvendo o governo Bolsonaro, como o orçamento secreto, as “rachadinhas”, o superfaturamento na compra de vacinas, entre outros, não eram alvo de repulsa pelos membros dessa família.

 

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