O enforcement dos acordos globais pelos países signatários é um dos grandes desafios presentes na governança global. Em matéria ambiental, há toda uma complexidade envolvida, aliada a falta de vontade política e ambição nacionais, como podemos ver em relação à implementação do Acordo de Paris sobre mudanças do clima, entre outros acordos que o Brasil participa como o Protocolo de Cartagena, o Protocolo de Nagoya, recentemente ratificado, as Metas de Aichi da Convenção de Biodiversidade, dentre outras tratativas globais.
O presente artigo visa analisar os principais aspectos da problemática relação entre clima e comércio, a partir da leitura do Capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável, e do capítulo de Bens, do acordo União Europeia e Mercosul², especialmente em relação aos aspectos socioambientais. Quatro aspectos preocupantes O primeiro aspecto tem a ver com o seguimento como signatário e manutenção da implementação do Acordo de Paris e do regime de mudanças climáticas.
No Capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável, é apontada uma obrigatoriedade em relação ao compromisso de implementação do Acordo de Paris, mas não é descrito como esse compromisso deveria ser efetivado ou as implicações da não implementação. O referido capítulo não é vinculante e não prevê arbitragem via solução de controvérsias em caso de descumprimento. Nesse sentido, da forma como está é muito vago e a pergunta principal seria: como estabelecer esse nível de obrigatoriedade no caso de violações seja por uma saída do Acordo de Paris ou simplesmente pela sua não implementação, como no caso brasileiro?
Talvez o nosso caso seja o que mais saiu na imprensa, devido às ameaças do governo atual que, mesmo antes de ter tomado posse, já tinha ameaçado sair do Acordo de Paris. Em relação à implementação do Acordo de Paris, existe uma fragilidade em relação a própria regra do que é legalmente vinculante em tal acordo, pois as metas voluntárias, ou seja, as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) depositadas pelas Partes do Acordo na convenção climática não são vinculantes. O que é vinculante é a revisão dessas metas de cinco em cinco anos, e espera-se que os países aumentem a ambição nessa revisão. Isso aponta que a forma como o acordo UE-Mercosul prevê essa obrigatoriedade é bastante frágil.
Um segundo aspecto tem a ver em como o acordo UE-Mercosul pode ter algum aspecto positivo em relação à proteção dos povos indígenas. No Brasil, quando da divulgação de intenção de assinatura, o acordo foi muito propagado³ que possuía um capítulo de defesa dos direitos indígenas. Foi bem equivocada a forma como isso foi trazido pela imprensa, porque na verdade você não tem um capítulo de direitos indígenas ou algo que se remeta diretamente em relação a proteção dos povos indígenas dentro do acordo, existem trechos sobre modos de vida indígena e sobre proteção florestal, mas não há uma referência direta a essa promoção. Além disso, no capítulo sobre Comércio e Desenvolvimento Sustentável, é notável a ausência da Convenção 169 como tal nas referências aos direitos trabalhistas. Essa convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabeleceu o direito à Consulta Livre Prévia e Informada dessas populações em relação à projetos de empreendimentos em seus territórios.
No oitavo artigo desse capítulo, sem citar a convenção 169 em si, é apontado um “compromisso das Partes em promover o envolvimento das comunidades locais e dos povos indígenas nas cadeias de fornecimento de produtos florestais. As pessoas afetadas devem dar seu consentimento informado e prévio para esse envolvimento”4. Isso é uma interpretação completamente enviesada desse importante princípio e instrumento que vem fortalecendo os direitos dos povos indígenas no Brasil e em outros países do Mercosul.
O terceiro aspecto que gostaria de destacar é relacionada à ausência do Princípio da Precaução no capítulo de Medidas Sanitárias e Fito-Sanitárias (MSF) do acordo UE-Mercosul e suas implicações. Sobre isso faço dois questionamentos para a reflexão:
(i) Do ponto de vista de Medidas sanitárias e fito-sanitárias da União Europeia – há possibilidade de afrouxamento frente a forma de produção dos países que vão exportar mais produtos para a União Europeia? Essa é uma grande questão no sentido que nesse momento da forma como o acordo está previsto, pode existir um impacto nas MSF na União Europeia.
Para ilustrar essa questão vou utilizar o exemplo da cana-de-açúcar. Segundo estudo publicado pelo Grain5, em 2019, 74% dos pesticidas utilizados na produção de cana de açúcar no Brasil são proibidos na França. Recentemente, o Brasil aprovou uma nova variedade de cana de açúcar transgênica que ainda é proibida na Europa, e a gente sabe que o Acordo tem uma cota específica para etanol e cana de açúcar. Além disso, tem todo um debate na União Europeia, em alguns países mais do que em outros, em relação a proibições e restrições em relação ao uso de glifosato que é um agrotóxico altamente utilizado na agricultura brasileira. Por fim, sabemos que nos últimos anos no Brasil houve um aumento muito grande no registro de agrotóxicos pela ANVISA.
O ano 2019 superou a média histórica anual com 467 produtos liberados, sendo que 63 deles estão sendo questionados por liminar judicial.
(ii) O acordo UE-Mercosul poderá produzir um duplo padrão de MSF, no qual países da União Europeia mantenham seus altos padrões de proteção dos consumidores e com isso os produtos produzidos no Mercosul sejam adaptados a essas medidas, voltado para as exportações, mas no mercado interno dos países do Mercosul sigam sendo vendidos produtos contaminados ou com baixo padrão de segurança? Esse duplo padrão estabelece duas categorias de produtos, os produtos de classe A, que teriam que atender às especificações de mercado de consumo europeu, e os produtos de classe B e C, que seriam direcionados para as populações dos países do Mercosul.
Essa prática infelizmente já existe em relação a vários produtos e que pode ser oficializada com a chancela do acordo UE-Mercosul caso seja aprovado da forma que está. O caso do frango com salmonela6 talvez seja o mais emblemático para ilustrar essa questão. Em 2019, o Brasil exportou 1.400 toneladas de frango para o Reino Unido que tinha uma quantidade de salmonela maior do que o permitido pela legislação do país.
O frango foi devolvido para o Brasil e o Ministério da Agricultura liberou a comercialização no mercado interno, já que aqui os parâmetros são menos exigentes e permitem o consumo de frango com alta concentração de salmonela. Esses exemplos demonstram como o debate sobre medidas sanitárias e fito-sanitárias é urgente e como um acordo entre os blocos deveria clamar pelo Princípio da Precaução para garantir que os padrões de produção e consumo possam ser maiores e não flexibilizados ao gosto de cada país, colocando a saúde de seus cidadãos em risco.
A oficialização do duplo padrão é um risco e extremamente constrangedor. Um último aspecto, é relacionado a problemática climática, no sentido de que até que ponto aumentar o comercio de grãos e produtos agrícolas (soja, etanol), carne bovina e de frango e derivados produzidos no Mercosul e exportados para a União Europeia, não aumentará as emissões de gases de efeito estufa e provocará mais impactos socioambientais? No Brasil, onde vivemos uma crise política, econômica e institucional, há grande preocupação com o aumento substancial do desmatamento, grande parte disso relacionado a pecuária e a cadeia agroindustrial como um todo.
Os incêndios na Amazônia em 2019 foram preocupantes e, conforme mostram os dados do PRODES/INPE 2020, a curva histórica do desmatamento aumentou de 2019 para 2020. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), a Amazônia teve um desmatamento 34% maior entre agosto de 2018 e julho de 2019. A área desmatada foi superior a 10 mil km², a pior taxa desde 2008. E não é só bioma da Amazônia que está sendo desmatado, o Cerrado também vem tendo perdas significativas. O Cerrado é o berço das águas do continente latino-americano e, nos entanto, possui menor porcentagem de áreas sob proteção integral – apenas 11%, comparados com os quase 50% no bioma da Amazônia. O desmatamento nessas áreas protegidas aumentou 15% no ano de 2019. O desmatamento está associado ao discurso político governamental, mas também ao processo de desregulamentação ambiental que vem ocorrendo via Executivo e Legislativo.
Desde o início do mandato atual do governo de Jair Bolsonaro vem sendo feito mudanças profundas no aparato institucional de governança ambiental, que promoveu o enfraquecimento de órgãos de comando e controle ambiental, além do desmonte dos programas voltados para a proteção dos povos indígenas e comunidades tradicionais, e corte de orçamento das ações voltadas para o enfrentamento dos incêndios e das mudanças climáticas.
O acordo UE-Mercosul pode provocar grande crescimento das emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa (GEE). Segundo estudo publicado pelo Grain7 , que faz uma projeção do aumento de GEE com base nos produtos agrícolas que o Mercosul já exporta para a União Europeia, considerando a cota desses produtos em determinado período de tempo, a carne bovina será a principal responsável pelo aumento das emissões.
Embora seja consumida em sua maior parte pelo próprio mercado interno brasileiro, o aumento potencial de consumo pelo mercado europeu poderia significar um crescimento de 82% das emissões dos GEE, além do aumento no preço do produto no mercado interno. O estudo mostra ainda que o acordo também pode provocar um crescimento de 8% das emissões provenientes da produção de aves, 5% da produção de cana de açúcar/etanol, 4% da produção de queijo, 1% do leite em pó desnatado, entre outros produtos.
Fonte: GRAIN, 2019. Disponível aqui.
Nesse sentido, por tudo isso apontado, ainda que o acordo possa passar por uma revisão e inclusão de cláusulas ambientais, para além das fragilidades já apontadas no capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável e de MSF, a base na qual o comércio de bens está construído no Capítulo de Bens, não há como cláusulas ambientais darem conta dos profundos impactos gerados pelo modelo expresso na forma e instrumentos colocados por esse acordo. Há que lembrar que o acordo UE-Mercosul é um acordo de livre comércio e não de clima. Uma última consideração nesse sentido é que efetivamente, o acordo UE-Mercosul cristaliza uma visão pós-colonial dos países do Sul como eternos fornecedores de matérias primas e os países do Norte como produtores e exportadores de bens de alto valor agregado. Esses debates que o artigo traz apontam também um gap no envolvimento da sociedade civil do Mercosul, na discussão desse acordo frente aos fechamentos de espaço de participação, em especial no caso brasileiro e paraguaio.
1. Artigo baseado na apresentação (com adaptações e atualizações) da ex-cordenadora do Programa de Justiça Socioambiental Maureen Santos durante o seminário Diálogos do Futuro, organizado pelo Instituto Clima e Sociedade em parceria com a Embaixada da Alemanha, em dezembro de 2019, disponível aqui
2. A intenção para a assinatura do acordo foi publicada em junho de 2019 e existia uma expectativa do ponto de vista da presidência alemã da União Europeia, no segundo semestre de 2020 para que o acordo fosse assinado. No entanto, frente a pressão de parlamentares e da sociedade civil, em especial, de países membros do bloco europeu em relação as críticas ao desmatamento da Amazônia e as queimadas, no sentido do acordo não ter regras mais rígidas em matéria ambiental, a assinatura possivelmente não será mais feita esse ano.
3 Ver como exemplo matérias da BBC aqui
4Fritz, Thomas. Acordo UE-Mercosul: Ameaça para a proteção do clima e dos direitos humanos. Brasil: FASE, Greenpeace, Misereor, DKA, CIDSe, 2020. Pg. 30.
5 Ver em Estudo disponível aqui
6 Ver denuncia nesta matéria do Reporter Brasil sob proteção integral – apenas 11%, comparados com os quase 50% no bioma da Amazônia. O desmatamento nessas áreas protegidas aumentou 15% no ano de 2019.