Seminário discute relações entre Brasil e Alemanha durante a Ditadura

Realização do Seminário Internacional Relações Brasil-Alemanha durante a Ditadura
Teaser Image Caption
(Foto por: Lando Dämmer) Realização do Seminário Internacional Relações Brasil-Alemanha durante a Ditadura, no Colégio de Altos Estudos da UFRJ

Foi realizado na última quinta-feira (8), no Colégio de Altos Estudos da UFRJ, o Seminário Internacional Relações Brasil-Alemanha durante a Ditadura. O evento encerrou o ciclo de debates, realizado em nove cidades alemãs entre março e abril, que marcou a passagem dos 50 anos do golpe militar de 1964. A jornada discutiu temas como a cooperação política e econômica entre os dois países, a história não oficial de colaboração das empresas alemãs com o regime militar, o Acordo Nuclear de 1975, e a solidariedade recebida pelos exilados brasileiros na Alemanha.

 

No Rio, o evento foi organizado pelos professores Victor Hugo Klagsbrunn (UFF e UFRJ) e Luis Edmundo de Souza Moraes (UFRRJ) e contou com o apoio da Fundação Heinrich Böll. A primeira mesa de debates foi sobre as relações Brasil-Alemanha e suas implicações regionais durante os anos da ditadura, com apresentação do professor titular de História contemporânea da UFF, Francisco Carlos Teixeira da Silva. Ele contou que ao final de 1961, período em que enfrentava grave crise econômica, o governo brasileiro enviou missão diplomática ao Leste Europeu para intensificar relações comerciais com os países do bloco socialista. Era uma tentativa de reduzir a influência dos Estados Unidos sobre a política externa brasileira. A passagem da missão pela Alemanha Oriental (República Democrática da Alemanha – RDA), no entanto, foi muito mal vista pelo governo da Alemanha Ocidental (República Federal Alemã – RFA), que naquele momento buscava o reconhecimento da Alemanha como um só país, chegando ao ponto de romper relações diplomáticas com as nações que se mantivessem relações com a RDA.

 

Na época, a Alemanha Ocidental era a segunda maior parceira comercial do Brasil, superada apenas pelos EUA, com fluxo anual de comércio na casa dos US$ 5 bilhões. Das dez maiores empresas alemãs oito mantinham negócio no Brasil. E os bancos alemães estavam entre os maiores credores da dívida externa brasileira. O que foi usado pela RFA como forma de pressionar o país a desistir de sua tentativa de aproximação com os alemães do outro lado do Muro de Berlim.

 

O governo da Alemanha Ocidental reconheceu imediatamente o governo instituído após o golpe militar de 1964, muito satisfeito, segundo Francisco Silva, com o rompimento das relações entre Brasil e Cuba (o que na prática inviabilizava o reconhecimento da RDA) e a aprovação de uma legislação que garantia às empresas estrangeiras liberdade para remeter divisas às suas matrizes. A presença empresarial alemã no Brasil se intensificou após o golpe e chegou a representar 20% de todo o capital externo investido no país. Neste contexto, o Brasil ampliou a cooperação técnica com a Alemanha e obteve a rolagem de sua dívida junto aos bancos alemães.

 

Com o endurecimento do regime, a denúncia das violações dos direitos humanos no Brasil feita pelo presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter fez com que os militares brasileiros buscassem uma aproximação ainda maior com a Alemanha. De sua parte, “os alemães remediavam seu constrangimento de apoiarem um regime autoritário pelo fato do governo brasileiro estar em luta contra o comunismo, um inimigo comum”, conforme explicou Francisco Silva. Para ele, naquele momento ainda não existia na Alemanha um sentimento de solidariedade muito forte em relação ao povo brasileiro. Uma situação que seria invertida logo depois, segundo o professor, tomando como exemplo a dura hostilidade manifestada pela juventude alemã durante a visita do general Ernesto Geisel ao país, em março de 1978.

 

Acordo Nuclear – A segunda mesa do Seminário foi sobre o acordo de cooperação nuclear firmado entre Brasil e Alemanha em 1975, que vigora até os dias de hoje. O debate contou com a participação do diretor da Fundação Heinrich Böll, Dawid Bartelt, e do professor do Instituto de Física da UFRJ, Odair Gonçalves, que é ex-diretor da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEM). A mediação foi feita por Lizst Vieira, professor da PUC Rio, que esteve exilado na Alemanha durante a ditadura.

 

O Acordo Nuclear incluía a construção de oito reatores nucleares no Brasil. Contudo, apenas duas usinas foram construídas: Angra 1 e Angra 2. A construção da terceira, Angra 3, foi iniciada em 2010 e deverá ser concluída em 2018. Simultaneamente à construção e operação das usinas, ocorreu a transferência de tecnologia nuclear para o país, que levou o Brasil a dominar praticamente todas as etapas de fabricação do combustível nuclear e a formar mão de obra qualificada no setor. No entanto, por interferência dos Estados Unidos, não foi permitida a transferência de tecnologia alemã de enriquecimento de urânio, motivando o desenvolvimento no Brasil de um sistema próprio, que atingiu capacidade comercial de produção em 2004.

 

Dawid Bartelt abriu a discussão afirmando que a economia alemã há muitas décadas depende da exportação de produtos tecnológicos de alto valor agregado, dentre os quais se inclui a energia nuclear. Para ele, no momento em que o Acordo foi assinado, era duplamente interessante para o país exportar equipamentos nucleares, tanto para gerar divisas quanto para reduzir os custos de geração de energia nuclear em seu próprio território. Naquele contexto, logo após o Choque do Petróleo de 1973, a energia atômica era considerada altamente viável e ainda não existiam estudos aprofundados sobre os seus riscos. Havia na Alemanha, segundo Bartelt, um “quase consenso” favorável ao Acordo, que viria a injetar 12 bilhões de marcos na economia do país, com forte apoio nos meios de comunicação, embora à época já existissem vozes críticas ao negócio no movimento social alemão.

 

Na esteira da crise do petróleo, das denúncias feitas pelo movimento ambientalista quanto aos riscos da energia atômica e do acidente de Chernobyl, o sentimento antinuclear ganhou força na Alemanha. Até que em 2011, após o acidente nuclear de Fukushima, o governo de Angela Merkel retomou um antigo projeto que determina o desligamento gradual de todas as 17 usinas atômicas do país até 2022. “Não foi uma mudança súbita de posição. Há muito tempo a Alemanha convive com a energia nuclear, o que proporcionou o amadurecimento das opiniões ao longo dos anos”, explicou Bartelt. Foi uma decisão difícil para o país, pois os reatores nucleares representavam 28% de sua matriz energética, mas desde então as fontes limpas e renováveis cresceram 23% na Alemanha. Hoje o país tem pela frente a meta audaciosa de chegar a 2050 com 80% de toda a energia gerada a partir de fontes limpas e renováveis. O diretor da Fundação Heinrich Böll, no entanto, aponta a incoerência entre a decisão de desligar as usinas nucleares em território alemão com a manutenção dos programas de cooperação nuclear com o Brasil e a Índia.

 

“É uma grave contradição da política alemã, que considera a energia nuclear perigosa para seus cidadãos mas estimula o seu uso por brasileiros e indianos”, disse Bartelt, após informar que a moção do Partido Verde alemão que propunha o cancelamento dos acordos nucleares havia sido derrotada naquele mesmo dia por ampla maioria no Bundestag, o parlamento alemão.

 

Em sua apresentação, o professor Odair Gonçalves disse não acreditar que a Alemanha vá de fato desligar todos os seus reatores, pois, de acordo com ele, não existem fontes de energia alternativas disponíveis no território do país para substituir a energia nuclear. Para o professor, a eventual suspensão do Acordo em nada vai alterar a o Programa Nuclear Brasileiro (PNB). O interesse do país na renovação do Acordo, segundo o acadêmico, está na manutenção da garantia de fornecimento de peças de reposição e certificação do projeto de Angra 3.

 

Gonçalves apresentou um histórico da utilização da energia nuclear, tomando como ponto de partida o Projeto Manhattan, responsável pelo desenvolvimento da bomba atômica pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, e dando especial ênfase aos passos nucleares dados pelo Brasil antes e depois da parceria firmada com a Alemanha. Segundo o professor, o Acordo foi assinado em um período em que o Brasil não necessitava expandir a sua oferta de energia, o que deu força a boatos segundo os quais o real interesse era desenvolver um artefato nuclear, tanto por parte dos militares brasileiros quanto dos alemães, proibidos de desenvolver a bomba atômica em virtude das sanções de guerra.

 

Segundo o professor, a energia nuclear é estigmatizada porque nasceu junto com a bomba atômica. Muito questionado pelo público presente ao Seminário quanto aos riscos e custos da opção nuclear, Odair Gonçalves afirmou que a energia gerada a partir da fissão nuclear é menos agressiva para o meio ambiente do que os combustíveis fósseis (10 g de urânio produziriam energia equivalente a 10 mil toneladas de carvão mineral, segundo o acadêmico) e mais barata do que as energias eólica e solar. “Para gerar a mesma quantidade de energia que Angra 2 com energia solar seria necessário cobrir uma área equivalente a todo o estado do Piauí com células fotovoltaicas, o que é economicamente inviável”, disse. Em relação à energia hidroelétrica, disse que o Brasil está chegando ao teto de aproveitamento de seus recursos hídricos, na medida em que a Amazônia é plana e seria necessário o alagamento de grandes áreas de florestas para construção de novas usinas. “Nos próximos vinte anos, para crescer em média 5% ao ano, o Brasil vai precisar dobrar sua oferta de energia. Assim, o ideal é que aproveite todas as diferentes matrizes energéticas, sem desprezar nenhuma, inclusive a nuclear”, concluiu.

 

Cooperação empresarial-militar – Vitor Sion (mestrando da PUC/SP) e Rodolfo Machado (doutorando da PUC/SP) fizeram uma apresentação sobre as relações das empresas alemãs com o regime ditatorial instalado no Brasil, a partir de relatório apresentado por eles à Comissão Nacional da Verdade. Segundo o estudo, os investimentos das empresas alemãs no Brasil cresceram 350% entre 1969 e 1974. “O ambiente de ‘paz social’ durante a ditadura, sem greves ou sindicatos atuantes, deixou as multinacionais muito à vontade para investir no Brasil”, afirmou Sion.

 

De acordo com o levantamento, mais da metade das 16 empresas alemãs instaladas no Brasil em 1971 estavam diretamente engajadas com a ditadura. Dentre elas, algumas como Volkswagen, Krupp, Siemens e Telefunken fizeram doações em espécie ao regime, conforme foi comprovado pela análise das atas de reuniões de suas diretorias. Outras empresas colaboravam indiretamente, por meio de associações e câmaras de comércio.

 

Exílio e solidariedade – A última e mais emocionante mesa do Seminário contou com a presença de exilados na Alemanha durante a ditadura. Clemens Schrage, Luiz Ramalho, Victor e Marta Klagsbrunn apresentaram um panorama das ações de denúncia do regime feita no exílio, das dificuldades para sobreviver em terra estrangeira e da solidariedade que receberam por parte do povo alemão. Scharage foi preso, torturado e expulso do país em 1969, por sua militância política no movimento operário de Osasco, em São Paulo. No final daquele mesmo ano ajudaria a fundar em Berlim a Frente Brasileira de Informação, junto a figuras como Miguel Arraes e Márcio Moreira Alves. Era uma frente ampla, com a participação de militante de vários grupos de esquerda, com seções em vários países da Europa, além de Argélia, Chile (até o golpe de 1973) e EUA. O grupo denuncia as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura e apoiava os exilados. As atividades eram financiadas pela venda de jornais, campanhas e doações de entidades filantrópicas, e contavam com a participação ativa de várias organizações sociais alemãs.

 

Idealizador das jornadas “Brasil-Alemanha – 50 anos do Golpe de 1964”, Luiz Ramalho disse que o evento teve grande público e interesse em todas as cidades alemãs em que foi realizado. “O fato da Copa do Mundo ser no Brasil este ano contribuiu. De qualquer forma, é muito positivo tenham despertado o interesse por conhecer um pouco mais sobre a história do Brasil e das relações Brasil-Alemanha”, disse.