Casamento entre pessoas do mesmo sexo sob ataque no Brasil

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“Tentar estender o regime de casamento aos homossexuais é uma tentativa vã de mudar a realidade através de leis. Não importa o quanto dois homossexuais compartilhem uma cama e propriedades ou ganhos, o relacionamento deles não se parece em nada com um casamento em sua essência pois falta a complementaridade corporal dos sexos – e o seu reflexo psicológico – e a consequente abertura à vida e, portanto, falta o específico da eficácia social do casamento como origem da família.” Esse excerto—com todo esse absurdo preconceituoso—é a opinião escrita do congressista conhecido como Pastor Eurico, que antes apresentou no Congresso Nacional Brasileiro um projeto de lei para ser revogado, pelos meios legislativos, o reconhecimento judicial da união de pessoas do mesmo sexo no país, em força no Brasil por uma decisão do Supremo Tribunal Federal 12 anos atrás. 

O legislador, o qual é conservador, teve sucesso, pelo menos no primeiro turno. Por uma votação de 12 a 5, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados do Brasil, aprovou no dia 10 de Outubro de 2023 a lei que proíbe o reconhecimento legal do casamento e união entre homossexuais, e como famílias de fato. Votou a favor: André Ferreira (PL-PE), Chris Tonietto (PL-RJ), Clarissa Tércio (PP-PE), Cristiane Lopes (União-RO), Dr. Jaziel (PL-CE), Eli Borges (PL-TO), Filipe Martins (PL-TO), Messias Donato (Republicanos-ES), Pastor Eurico (PL-PE), Pastor Isidório (Avante-BA), Priscila Costa (PL-CE), Rogéria Santos (Republicanos-BA). Votou contra: Erika Hilton (PSOL-SP), Erika Kokay (PT-DF), Laura Carneiro (PSD-RJ), Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), Tadeu Veneri (PT-PR). Ainda assim, não é uma proibição definitiva. Em termos legais, casamentos homossexuais continuam válidos até que saia a decisão de outros comissôes legislativos, como a Comissão dos Direitos Humanos, e o plenário do Congresso Nacional, o que talvez leve muitos meses para acontecer a votação. De qualquer forma, a lei pode mudar futuramente pelo Supremo Tribunal Federal por meios constitucionais. Estrategicamente, legisladores conservadores resgataram uma lei de 2007. 

O projeto aprovado faz três coisas: primeiro, ela proíbe o Estado de impor quaisquer restrições em como as igrejas definem um casamento religioso; segundo, ela estabelece que um casamento entre duas pessoas do mesmo sexo é invalido e, por último, previne qualquer interpretação mais ampla do que é o casamento. Para deixar claro, o primeiro ponto é puramente desinformação: atualmente não há interferência legal nenhuma em como as igrejas realizam um matrimonio; casamento entre pessoas do mesmo sexo, como qualquer união, é uma instituição regulamentada e/ou conduzida pelo Estado. A religião, portanto, está sendo usada apenas como um pretexto para discriminação. Os segundo e terceiro pontos entram em contradição direta com uma decisão de 2011 do Supremo que reconheceu a união entre homossexuais. Até 2013, a resolução emitida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), No. 175/2013, direciona a todos os cartórios do país a permitir e conduzir casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo. 

eu vou lutar pelo casamento LGBT

76.430 casais homossexuais se casaram no Brasil desde 2013, de acordo com os dados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Apenas no primeiro ano da resolução emitida pelo Congresso Nacional de Justiça, em 2013, 3.700 casais homossexuais se casaram no país. Há 10 anos, a população LGBT vem se casando no Brasil. Na média, 7.600 celebrações são realizadas por ano no país. Se trata de um direito adquirido e um assunto resolvido. Em 2022, esse número quadruplicou: 12.987 casais homossexuais se casaram no Brasil. É importante enfatizar que as maiores taxas de casamentos ocorreram em 2018 (9.520) e em 2022; ambos foram anos de eleição presidencial, em que um dos candidatos era abertamente homofóbico, o ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro. No entanto, é improvável que o Congresso Brasileiro venha a proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo—e mesmo se for, isso passar[a certamente a ser contestado no tribunal—a mera aprovação preliminar pelo comitê legislativo sinaliza que milhares e milhares de casais homossexuais são considerados, pelos legisladores, cidadãos de segunda classe. O projeto de lei é uma expressão de violência perpetuada pelas mãos de legisladores que distorcem o significado de família.

Esse é um dos desafios que a população LGBT enfrenta com a legislação que diariamente os ataca. Por exemplo, desde 2019, deputados estaduais de todo o Brasil têm apresentado pelo menos 122 projetos de lei que atacam os direitos LGBT. Desses projetos, 108 ainda estão em andamento, 12 foram arquivados e dois foram aprovados pela assembleia legislativa. Isso demonstra que a extrema-direita está ameaçando as conquistas da comunidade LGBTQIA+.

Além de ser discriminatória e, portanto, inconstitucional, a medida legislativa também está em desacordo com a opinião pública. Em 2022, 79% dos brasileiros acreditavam que a homossexualidade deveria ser aceita por toda sociedade, comparada ao levantamento de 2017, com 74%, de acordo com os dados agrupados pela pesquisa nacional do Datafolha. Em paralelo, no Brasil a violência contra LGBTQIA+ segue historicamente alta. De toda a população trans assassinada no mundo no ano de 2021, 33% dessas mortes aconteceram no Brasil, conforme relatado com o Trans Murder Monitoring (TMM) da organização Transgender Europe, novamente colocando o Brasil no topo da lista dos países onde mais pessoas trans são assassinadas. Os dados nacionais batem com denúncias internacionais. Em 2022, pelo menos 151 pessoas trans morreram violentamente no Brasil, com 131 casos de assassinato e 20 casos individuais de suicídio, segundo dados da ANTRA. Uma pessoa LGBTQIA+ foi violentamente assassinada cada 32 horas em 2022, de acordo com o Dossiê de Mortes e Violências Contra LGBTI+ no Brasil. Iniciativas como a proibição do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo têm impacto muito além das uniões: é o abuso do poder político para oprimir um grupo social já violado.

A proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo é ainda mais brutal quando é levado em conta o histórico do poder legislativo: no Brasil, não há um único ato legislativo federal que proteja especificamente os direitos da comunidade LGBTQIA+. A grande maioria dos avanços legais vieram do sistema judiciário em resposta à mobilização social, principalmente do nível do Supremo Tribunal Federal. Permitir que pessoas trans alterem seus documentos sem a necessidade de cirurgia ou autorização judicial em 2018, criminalizar discursos de ódio contra homossexuais em 2019, permitir que homens que fazem sexo com homens doem sangue em 2020 e diversas outras conquistas por via judicial. Isto é um dos pontos de conflito entre o STF e o Congresso Nacional. Outros exemplos são a proposta legislativa para pôr limite nas determinações de ministros individuais, bem como a proposta para criminalizar a posse de drogas, enquanto o Supremo segue o voto para descriminalizar. Outro impasse entre as duas instituições é o caso do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. A corte atingiu a maioria de votos pela tese que o marco seja inconstitucional, porém, o Senado analisa o PL que estabelece o marco temporal como 5 outubro de 1988.  

A mensagem é clara: ou o Congresso Brasileiro repara sua omissão histórica em proteger os direitos da comunidade LGBTQIA+ ou vai continuar a perpetuar o ato mais violento que se pode cometer contra pessoas LGBTQIA+, ignorando seu status de igualdade como seres humanos com dignidade.