Conflitos em torno do gênero, conservadorismo antidemocrático e suporte popular

Grupos de fiéis participam da Marcha para Jesus, no Centro do Rio.

Movimentos conservadores e antidemocráticos têm expandido sua atuação. Em alguns países, como o Brasil, eles ampliaram seus efeitos na política e na vida cotidiana. Isso está relacionado, de um lado, a financiamentos que têm permitido um ativismo transnacional vigoroso, que estrategicamente opera para avançar suas posições nas instituições políticas e na sociedade civil. Por isso, importa compreender quais organizações emergiram ou se fortaleceram, quem as financia e com quais objetivos. Por outro lado, parece-me difícil compreender esses movimentos e seus efeitos sem levar em conta sua capacidade de mobilização. Nesse caso, é preciso abordar sua base popular, isto é, as evidências de que o trabalho que tem sido feito por esses movimentos organizados encontra ressonância em setores da população. Entendo que essas dinâmicas não se excluem. Os movimentos conservadores e antidemocráticos utilizam os recursos que têm para influenciar a política institucional e mobilizar as pessoas. Mas o apoio que conquistam, na forma de voto, de opiniões ou de manifestações coletivas, não remete apenas às estratégias dessas organizações. Ele também nos diz sobre o universo de experiências de quem aprova ou colabora ativamente para a política feita por essas organizações.

Um outro ponto é que a produção de preferências e alinhamentos políticos não se dá em um vácuo de “oferta” de narrativas políticas. No contexto político e social para o qual me volto aqui, movimentos com perspectivas divergentes sobre as relações de gênero e familiares avançaram posições no debate público e disputam o Estado. Como afirmaram Blofield, Filgueiras e Franzoni (2021, p. 279), na América Latina, as políticas de gênero e para a família se tornaram “arena de ação coletiva significativa, tanto progressista como conservadora”. Isso, sem dúvida, se aplica ao caso brasileiro.

A partir dos anos 1980, os movimentos feministas e LGBTQ+ se expandiram e encontraram oportunidades para influenciar as políticas públicas, em um ambiente internacional e nacional relativamente favorável – pela expansão do sistema internacional de direitos humanos e pela democratização e consolidação da democracia no país. Eles o fizeram em conflito com atores conservadores, em coalizões plurais e contenciosas (em particular nos governos do PT), mas também em coalizões convergentes, nas quais visões antifeministas encontraram guarida em um projeto de extrema direita (após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, mas principalmente no governo de Jair Bolsonaro)[1].

Tomando como ponto de partida o entendimento apresentado acima sobre as dinâmicas de oferta política e adesão popular e considerando a escalada dos conflitos em torno do gênero e da família, desenvolvo dois argumentos.

O primeiro é amplo: os fundamentos dos projetos democráticos e do sistema internacional de direitos humanos, que ganharam força após 1945, com o fim da Segunda Guerra, estão em disputa. Isso pode parecer óbvio, mas meu ponto é que temos frequentemente abordado os conflitos de maneira fragmentada, como se tivessem relação “apenas” com gênero, ou “apenas” com raça e etnia; como se os atores conservadores buscassem reordenar a sociedade como ordem familiar, com foco na reprodução e na sexualidade, ou definir as fronteiras do nacional, com foco nos imigrantes.

Atores conservadores têm estrategicamente tematizado essas disputas em termos identitários, confundindo o que está em jogo. Classificam assim demandas que são fundamentalmente igualitárias, colocando em jogo os limites da democracia e dos direitos humanos. É o caso de políticas afirmativas de gênero e raça, legislação antirracista e anti-homofóbica, direitos reprodutivos e sexuais. No campo progressista, tem sido comum a incorporação dessa classificação (lutas identitárias), atribuindo aos movimentos feministas, antirracistas, indígenas e LGBTQ+ a pecha de que estimulariam conflitos desnecessários, sombreando “o que realmente importa” e jogando lenha na fogueira da direita antidemocrática.

No entanto, as lutas desses movimentos transformaram profundamente as democracias e a agenda de direitos humanos, sobretudo a partir dos anos 1980. E o fizeram ao pressionar pela incorporação de reivindicações que tensionam noções universais de cidadania, assim como a noção do humano como um universal abstrato. Produziram-se, assim, ferramentas políticas que apontam para as condições concretas em que os direitos são recortados e capturados e as violências são reproduzidas e toleradas socialmente. O efeito pode ter sido, sim, a ampliação dos conflitos, mas porque um dos resultados dessas lutas foi a desnaturalização de hierarquias e barbaridades cometidas em nome da ordem familiar, da nação etc. A estratégia reativa dos atores conservadores e antidemocráticos tem sido relativamente simples, e, talvez por isso, mobilizadora: afirmam que a realidade é o que é, que “sempre foi assim” e que as demandas por mudanças são estrangeiras em relação aos valores “da maioria”.

O segundo argumento que desenvolvo aqui é que precisamos considerar mais seriamente o foco dos movimentos conservadores e antidemocráticos na transformação das famílias e das relações de gênero. Sua estratégia é moralizar essas transformações, apresentando-as como decadência e desintegração. E nós, analistas, temos sido capazes de compreender o que tem se passado ou, melhor dizendo, como mudanças sociais tremendas são vivenciadas pelas pessoas? As famílias mudaram profundamente por uma série de razões: queda na taxa de natalidade, casamentos que ocorrem mais tarde e duram menos, idade em média mais tardia em que se tem filhos, participação maior das mulheres nas relações de trabalho remunerado, ao mesmo tempo em que o neoliberalismo promoveu a desregulamentação das relações de trabalho e ampliou-se a informalidade, com menos garantias sociais. Mas essa mudança é divergente em termos de classe e de raça (Blofield, Filgueiras e Franzoni, op. cit.). Isso significa que as experiências das mudanças sociais podem ser muito distintas. Vivemos numa região em que as taxas de natalidade e arranjos familiares entre as mulheres mais ricas e com maior nível educacional as aproximam da realidade do norte global, com poucos filhos e lares biparentais com duas rendas. Entre as mais pobres, as taxas de natalidade seguem mais altas, a gestação na adolescência é uma realidade (a região tem as taxas médias mais altas do mundo) e os arranjos familiares consistem predominantemente em mães solo com filhos ou lares biparentais com apenas uma renda. As tensões entre vida familiar e trabalho são maiores para as últimas, diante da falta de serviços públicos de cuidado e da desregulamentação de direitos trabalhistas. A violência urbana e o crime organizado atingem sobretudo seus filhos, adicionando incertezas às suas vidas.

Politicamente, o quadro também não é estático. Alguns países latino-americanos, entre eles o Brasil, tiveram avanços significativos nas políticas públicas de gênero e, mais amplamente, em políticas comprometidas com agendas igualitárias e de direitos humanos (Benza e Kessler, 2020). A transição e consolidação da democracia na região e no país permitiram maior participação e pressão por parte de movimentos e partidos que advogam por pautas igualitárias e de diversidade, e que se intensificou com a chamada “virada à esquerda”, nos anos 2000. Essas mudanças, reais, podem ser exemplificadas pelo avanço em direitos sexuais (o casamento entre pessoas do mesmo sexo é hoje legal na maior parte dos países da região) e reprodutivos (em alguns países, avançou-se em direção à descriminalização do aborto ou a novas exceções à criminalização, além disso a perspectiva integral de saúde das mulheres e planejamento familiar passou a ser parte das políticas mais amplamente). Mas desafios fundamentais para a vida familiar não foram enfrentados ou tiveram resultados limitados. Os retrocessos mais recentes em alguns países, como o Brasil, não podem ocultar o fato de que alguns problemas nunca foram resolvidos: a falta de creche e de ensino integral, uma regulação do trabalho que compatibilize ocupações remuneradas e cuidado, a precarização do trabalho e as desigualdades de renda em eixos de gênero e de raça.

Nessa cena complexa, a religião constitui a experiência das pessoas de muitas maneiras. Aqui chamo a atenção para algumas delas, muito brevemente. As religiões organizadas e os serviços religiosos podem ser arenas em que a “oferta” de narrativas políticas é vivenciada coletivamente. Isso envolve a atividade de lideranças religiosas, que podem atuar como mediadoras entre elites políticas e a população (Maika e Smith, 2021), mas também um processo dinâmico de construção coletiva de sentidos para os desafios da vida. Além disso, igrejas e comunidades religiosas podem funcionar como um espaço rico de suporte e compartilhamento, em que a “oferta” de recursos para se lidar com os desafios vai além de narrativas. Redes de suporte e proteção podem funcionar, enquanto e onde a capacidade e presença do Estado são limitadas.

Temos dados que apontam que não é a religiosidade em si que tem relevância, estatisticamente, para posicionamentos mais conservadores sobre gênero e sexualidade, mas a frequência em que se participa de serviços religiosos. Temos, ainda, dados que indicam que países nos quais há um crescimento maior da fatia evangélica da população, com altas taxas de frequência religiosa e lento crescimento do percentual de pessoas que dizem não seguir uma instituição religiosa (caso do Brasil), apresentam opiniões mais conservadoras, inclusive entre as mulheres. Isso se comparados àqueles nos quais o crescimento da fatia evangélica e da fatia não-religiosa foram igualmente acelerados e a frequência a cultos é em média mais baixa (caso da Argentina)[2].

Levando em conta a vivência divergente das mudanças sociais em termos de classe e de raça, os limites das políticas públicas para responder aos desafios da vida cotidiana das mulheres mais vulneráveis, os retrocessos em garantias sociais e a presença (variável) das religiões organizadas na vida das pessoas, finalizo com algumas perguntas, em vez de respostas. Como as pessoas, e as mulheres em particular, “escutam” os apelos à defesa da família, por parte de atores conservadores? Como, por outro lado, “escutam” os apelos que vêm do campo feminista, em defesa de igualdade, autonomia, direitos individuais? Como mulheres de diferentes classes sociais têm vivenciado as mudanças políticas e seus retrocessos? De que maneira posições antidemocráticas, que ativam noções de ordem (nacional, familiar), tocam seus interesses e desejos, em contextos concretos de relações?

Penso que essas questões podem nos ajudar a refletir sobre a “oferta” de narrativas a partir de diferentes campos (o religioso, o feminista, o dos partidos políticos, o dos movimentos de direitos humanos) e sobre as imbricações entre eles. Talvez seja necessário, também, como ponto de partida para compreender a adesão popular a visões conservadoras, não estigmatizar os grupos de antemão. Mais uma vez, nem a ideia de manipulação, nem a de espontaneidade podem nos ajudar. E compreender sem estigmatizar, não significa abrir mão de distinções claras entre narrativas e projetos democráticos e antidemocráticos, entre o compromisso com os direitos humanos e o ataque a seus fundamentos. 

Referências bibliográficas:

BENZA, Gabriela and KESSLER, Gabriel. La ¿nueva? estructura social de América Latina: Cambios y persistencias después de la ola de gobiernos progresistas. Buenos Aires: Siglo XXI, 2020.

BIROLI, Flávia (2020). The Backlash against Gender Equality in Latin America: Temporality, Religious Patterns, and the Erosion of Democracy. Latin American Studies Association Lasa Forum, 51 (1), pp. 20-26.

______; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE, Juan Marco. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2020.

______ (2023). Gender politics, the cultural and the socioeconomic in Latin America. Paper apresentado na conferência Political Reactions to Changing Societies, no Institute for Latin American Studies, University of Columbia, 30 e 31 de março de 2023.

 BLOFIELD, Merike; FILGUEIRA, Fernando; GIAMBRUNO, Cecilia; and FRANZONI, Juliana Martínez. In: Sátyro, Natalia; Del Pino, Eloísa; Midaglia, Carmen, Beyond States and Markets: Families and Family Regimes in Latin America. London: Palgrave MacMilan, 2021.

MAYKA, Lindsay; SMITH, Amy E. 2021. The Grassroots Right in Latin America: Patterns, Causes, and Consequences. Latin American Politics and Society, 63 (1).

 

[1] Essas noções de aliança plural contenciosa.

[2] Refiro-me aos dados do Barômetro das Américas (Lapop), com os quais estou trabalhando em estudo ainda em curso.

 

Este artigo faz parte do Webdossiê Religião, democracia e extrema direita. Acesse aqui o Webdossiê.