Vazamento radioativo em Angra é omitido e gera insegurança

Manifestação Greenpeace em Angra 3

Em abril de 2023, moradores dos municípios de Angra dos Reis e Paraty, região recentemente reconhecida como Patrimônio Mundial da Humanidade e um dos principais destinos turísticos do país, foram surpreendidos com a notícia de que teriam sido expostos a um estado de insegurança nuclear a partir de um vazamento radioativo ocorrido meses antes, em setembro de 2022, no Complexo Nuclear Almirante Álvaro Alberto

O caso veio à tona após uma denúncia anônima ser comprovada por órgãos ambientais e pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) – órgão responsável por regular, licenciar e fiscalizar a produção e uso da energia nuclear no Brasil. Parte das autoridades locais tomou conhecimento do vazamento apenas após a imprensa local noticiar uma decisão judicial exigindo a avaliação de impacto do vazamento por parte da Eletronuclear S.A – empresa estatal responsável pela operação no Complexo. 

Diante do temor da população, as reações não tardaram a ocorrer: Em 12 de março, foi realizada uma audiência pública na Câmara Municipal de Angra dos Reis, e em 16 de maio, outra na Comissão de Minas e Energia da Câmara Federal. Além disso, as prefeituras de Angra dos Reis e Paraty cobraram as contrapartidas ambientais da Eletronuclear.

Para organizações da sociedade civil, como o Movimento Anti Nuclear Brasileiro, o vazamento comprova a veracidade dos alertas de ambientalistas, que há tempos denunciam o risco radioativo a partir da ausência de controle das atividades nucleares na região, da falta de autonomia do CNEN e das falhas no Plano de Emergência e na política de comunicação da Eletronuclear.      

Praia contaminada: A linha do tempo do vazamento radioativo   

No dia 29 de setembro de 2022, o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) recebeu uma denúncia anônima informando que duas semanas antes, no dia 16, havia ocorrido um vazamento de dezenas de litros de água contaminada proveniente do Sistema Primário da Usina Nuclear de Angra 1 (onde fica localizado o vaso do reator, no qual a água é aquecida a 320°C pela energia liberada pela fissão dos átomos de urânio). O vazamento teria atingido a Baía de Itaorna, em Angra dos Reis. 

A denúncia foi encaminhada ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que visitou a unidade no dia seguinte para averiguar as informações junto a um representante da CNEN. Na ocasião da visita, foi lavrada uma notificação à empresa. 

A primeira reação da Eletronuclear ao responder a notificação foi negar a denúncia e se comprometer a elaborar um relatório técnico em resposta. Porém, no dia 3 de outubro, a CNEN encaminhou uma equipe para coleta de amostra ambiental, constatando o vazamento para o tanque de dreno dos pisos da Unidade 1.

De acordo com o relato de um servidor do Ibama presente na audiência pública em Brasília, o evento "provocou vazamento em válvulas de admissão de resina nova dos leitos de desmineralizadores, e por conta da degradação do processo corrosivo nos casulos de contenção das referidas válvulas, houve o derramamento de líquido radiologicamente contaminado nas canaletas da laje sob os casulos das referidas válvulas’. Após três dias do vazamento, por ocorrência de chuvas, o material radioativo foi carregado pelo sistema de drenagem de águas pluviais até o canal de descarga da Usina, sendo despejado no mar.    

Mais detalhes do vazamento foram apresentados na audiência pública em Angra dos Reis, pelo engenheiro da Eletronuclear, Abelardo Vieira. Ele afirmou que assim que a corrosão foi constatada, foi realizado um remendo emergencial com massa epóxi, uma vez que a substituição de todo o sistema de coleta de extravasamento já estava prevista para ocorrer em outubro. Não saiu como o planejado. A água contaminada gotejou pela massa epóxi, em um vazamento estimado em 90 litros. 

Constatado o vazamento, a Eletronuclear coletou água do mar nas regiões de Itaorna, Piraquara, Ilha do Brandão e Tarituba para análise dos impactos ambientais. Segundo a empresa, não foram encontrados radionuclídeos em nenhuma das amostras. Em fevereiro de 2023, após a análise dos relatórios apresentados pela Eletronuclear e CNEN, o IBAMA multou a estatal com dois autos de infração. O primeiro, no valor de R$2.005.000,00, por "lançar substância radioativa em desacordo com a normativa da CNEN", o segundo, em R$101,000,00, por "deixar de atender a condicionante da licença de operação". 

A Eletronuclear apresentou medidas corretivas visando evitar novos vazamentos, dentre elas a melhora do sistema de controle de pressurização, a troca de equipamentos e canais, a elaboração de um procedimento teste para verificar o correto funcionamento do sistema, o monitoramento radiológico e um plano para melhorar a comunicação entre a empresa, as autoridades e o público em geral.   

Omissão e falta de autonomia são questionadas em audiências públicas

Os seis meses que se passaram entre o vazamento e sua divulgação causaram revolta entre as autoridades e população local. Os prefeitos e vereadores dos municípios de Angra dos Reis e Paraty sequer tomaram conhecimento da notificação do monitoramento da Central Nuclear, que em tese é diária. Nas audiências públicas sobre o ocorrido, a omissão foi uma preocupação recorrente entre os presentes, que questionaram a possibilidade de não terem sido informados de outros vazamentos. 

Em resposta aos questionamentos, a Eletronuclear justificou a ocultação do vazamento afirmando que "a dose efetiva do "indivíduo" não violou os limites de controle estabelecidos no Manual de Controle Radiológico do Meio Ambiente". A empresa relatou, na audiência de Angra dos Reis, que um vazamento similar ocorreu em 1985, quando 1.700 litros de água contaminada chegaram ao mar. Uma matéria publicada pelo Greenpeace em 2011 detalhou os 25 anos do ocorrido, estimando um vazamento muito superior ao relatado pela empresa: "A estimativa é de que 20 a 25 mil litros de água contaminada vazaram da usina e podem ter exposto ao menos 50 mil pessoas à contaminação, segundo versões da época".

As omissões da CNEN e do próprio Ibama também foram questionadas nas audiências públicas. Além de admitirem terem tido conhecimento do vazamento somente após a denúncia anônima, quando questionados sobre a obrigação de divulgar a informação ao público, membros da comissão afirmaram que não existem regras nesse sentido. 

Na audiência pública ocorrida em Brasília, o Prefeito de Paraty, Luciano de Oliveira Vidal (PMDB), criticou a falta de autonomia da CNEN, e chamou-a de "faz de conta". Vidal também criticou o Ibama por não ter informado a população da contaminação e por não ter garantido o cumprimento das condicionantes de licenciamentos ambientais do Complexo Nuclear. 

Os desdobramentos dessa discussão levaram à implementação do Comitê Municipal de Acompanhamento das Instalações, Atividades e Operações da Central Almirante Álvaro Alberto. O Comitê já havia sido criado em 2002, no rastro do vazamento de 1999, com o objetivo de garantir a transparência, o direito à informação, a segurança dos munícipes e a proteção do meio ambiente. No entanto, ele nunca havia sido instalado de fato.

Novo embargo na construção de Angra 3

Outra consequência das audiências públicas foi o embargo da construção de Angra 3, a terceira usina da Central Nuclear. A construção da usina teve início em 1984 e já foi paralisada em diferentes momentos. Já foram aportados R$7,8 bilhões e outros R$20 bilhões seriam necessários para sua conclusão. A última retomada das obras se deu no final de 2022, por meio de apoio do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). O governo federal sinalizou recentemente o desejo de finalizar a construção da Usina. 

Em 19 de abril, a Prefeitura Municipal de Angra dos Reis embargou novamente a obra, alegando mudança de projeto urbanístico e atraso de repasse financeiro para a cessão do terreno. No entanto, a motivação real do embargo estaria relacionada ao não cumprimento dos compromissos do licenciamento ambiental. No caso de Angra 3, após mais dez anos de emissão da licença de instalação, foi cumprida apenas a minoria das contrapartidas ambientais estabelecidas em acordo com as Prefeituras da região. Projetos previstos pela licença, como o abastecimento de água de bairros próximos à Central Nuclear, a reforma do Hospital de Paraty ou do saneamento do centro histórico do município, nunca foram colocados em prática. 

Diante do revés político que a Eletronuclear tem sofrido na região, a empresa passou a promover reuniões públicas de "esclarecimento". No último 25 de maio, foi realizado um "Seminário de Devolução das Ações Socioambientais", apresentando para moradores da aldeia guarani Sapukai e do Quilombo Santa Rita do Bracuí dados sobre os investimentos em institutos de pesquisa como o IED-BIG (Instituto de Ecodesenvolvimento da Baía da Ilha Grande). Porém, lideranças desses povos tradicionais denunciam que suas comunidades raramente recebem recursos da estatal, exigência cujo cumprimento já foi até objeto de atuação do Ministério Público Federal.    

Insegurança nuclear: um risco que se agrava com a deterioração

Entre tantos descumprimentos, a Eletronuclear tenta convencer a população de que o empreendimento não oferece riscos e gera energia limpa. A estatal chegou até a trocar sua logo, mascarando o símbolo histórico do átomo por uma auréola verde e azul sobre a inscrição "energia limpa". 

A Sociedade Angrense de Proteção Ecológica (SAPE) luta há muito tempo pela formação de uma comissão independente formada por legislativo, executivo e instituições de pesquisa para monitorar o empreendimento nuclear, visando garantir o controle, fortalecimento social e proteção ambiental da Baía da Ilha Grande. 

Segurança é a questão central nesse momento. Em 2025, a Usina de Angra 1 completará 40 anos de funcionamento e, nas últimas décadas, já apresentou inúmeros problemas, recebendo agora programas de “rejuvenescimento”, entre eles procedimentos improvisados, que se mostram incapazes de impedir vazamentos. As fotos exibidas nas audiências, por exemplo, evidenciam a deterioração dos equipamentos da Usina.    

A ocultação do vazamento em Angra I é um alerta sério. Ao ignorá-lo ou transformá-lo numa forma de barganhar recursos para os municípios, deixamos de encará-lo em sua essência. O Complexo Nuclear de Angra dos Reis não oferece mínimas garantias de segurança à população. Além disso, o país que já investiu bilhões de reais nessa tecnologia de cunho militar pouco avançou na produção de tecnologias limpas de produção de energia. Perdemos recursos e tempo, enquanto acumulamos toneladas de resíduos radioativos. O futuro da humanidade depende de atitudes que garantam a segurança da humanidade e a manutenção de nossos ambientes. Esse é o caminho do Brasil, solar. Por isso reafirmamos mais uma vez: Pela Vida Pela Paz. Hiroshima Nunca Mais! 

 

Artigo editado por Julia Dolce