Entrevista: "O caminho que devemos seguir não é o da flexibilização, é o da internalização dos custos sociais e ambientais na matriz dos investimentos"...

Hoje, às 12h28, pétalas de rosa brancas e vermelhas foram lançadas de um helicóptero sobre a ponte no rio Paraopeba, em Brumadinho (MG). Centenas de pessoas, incluindo familiares dos atingidos pelo rompimento da barragem assistiram enquanto faziam um minuto de silêncio. O ato marcou um mês da tragédia com a mina Córrego do Feijão, da Vale, que deixou 179 mortos e 131 desaparecidos. Nesta entrevista a assessora política do Inesc Alessandra Cardoso reflete sobre a cadeia industrial da mineração, seus impactos e o que poderia ser feito para que as tragédias fossem evitadas.

 

Casa invadida pela lama da tragédia de Brumadinho
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Casa invadida pela lama da tragédia de Brumadinho / foto Ricardo Stuckert

Hoje completamos um mês da tragédia de Brumadinho, como está o cenário de elucidação das causas do rompimento da barragem e das respostas da Vale para as vítimas e famílias dos atingidos?

Alessandra: A investigação na área criminal tem revelado com alguma celeridade uma parte importante da cadeia de relações perigosas que explica, em parte, este crime com centenas de vítimas. Na linha de investigação, chama  atenção nas notícias tornadas públicas pela imprensa como se dão as relações entre a mineradora Vale e a empresa alemã, TüvSüd, responsável pela certificação de segurança de várias barragens de rejeito da empresa e entre elas da barragem I, da mina do córrego do Feijão. Está claro que há uma relação de poder e pressão que compromete a capacidade técnica e de isenção da empresa prestadora do serviço de certificação da segurança da barragem. Trechos do depoimento do engenheiro da TüvSüd, aquele que poucos dias antes do rompimento registrou por e-mail problemas na barragem que se rompeu, são taxativos destas relações perigosas entre a mineradora, que é quem contrata, e a empresa certificadora. Foi também registrado em outros e-mails que fazem parte dos documentos do inquérito policial, uma mensagem que indica que a Vale estaria usando promessa de contratos futuros para conseguir o laudo positivo para esta barragem que sabidamente tinha graves problemas de estabilidade. Isto contrasta fortemente com a fala pública do presidente da empresa horas depois do rompimento, alegando uma trágica surpresa diante do rompimento em função do laudo de segurança da barragem que agora, sabemos, foi forjado a partir destas relações perigosas. Ao que me parece muito ainda pode e deve ser revelado na cadeia de responsabilidades por este crime. Do lado das vítimas e das famílias atingidas, o que podemos ver é um cenário trágico de destruição de vidas, de famílias e com marcas profundas e de proporções incalculáveis em toda sua população do município e do entorno. Cabe lembrar que grande parte das vítimas também era trabalhadora da empresa, muitos deles terceirizados, e que historicamente para estes municípios e regiões fortemente mineradas, a dependência também passa pela visão meio idílica de que o emprego na mineração era uma benção. Junto com este crime muito do imaginário da mineração como uma coisa boa vai se desmoronando. Com a intervenção do Ministério Público e Promotoria foi assinado um acordo em que a empresa se compromete a pagar indenizações aos moradores do município de Brumadinho e comunidades localizadas até um quilômetro do leito do rio Paraopeba desde Brumadinho até o município de Pompéu. Evidentemente as indenizações, que deverão seguir por apenas um ano, são uma parte muito irrisória do que será necessário para que os atingidos recomponham projetos de vida, mas, de fato, é um sinal de que há uma movimentação por parte do Estado brasileiro para tentar minimizar os danos incalculáveis produzidos pela empresa.

Podemos dizer que há uma relação entre o mercado internacional das commodities minerais e a segurança desta cadeia produtiva?

Alessandra: Sim. Existe uma extensa cadeia de relações que deve ser desvendada e evidenciada como parte desta tragédia. O Brasil passou nos últimos 15, 17 anos, por um crescimento muito agressivo da extração mineral. Claramente, a origem deste crescimento deve ser localizada na economia chinesa que intensificou enormemente a necessidade de matéria prima para alimentar sua própria indústria pesada, em especial a indústria siderúrgica e de alumínio. As empresas mineradoras de escala global, como a Vale, expandiram seus investimentos na extração para manterem e ampliarem suas posições no mercado global de minérios que tem na China seu principal demandante. Houve uma forte corrida por novas minas em novos países e houve também uma intensificação de projetos minerários em países com mineração já expressiva, como é o caso do Brasil. Aqui, foram feitos investimentos pesados tanto para expandir a produção mineral na Amazônia, em especial na região de Carajás, mas também para ampliar a produção no chamado sistema sudeste, especialmente em Minas Gerais.

Além da agressividade na capacidade e velocidade da extração, outro fator ligado a dinâmica do mercado internacional de commodities minerais é sua elevada concorrência e o predomínio do interesse dos acionistas que hoje controlam as grandes empresas mineradoras. Isto faz com que as empresas tenham como uma centralidade na sua estratégia de lucratividade a redução dos custos de produção. Tal estratégia torna-se ainda mais agressiva no contexto de queda dos preços das commodities. Para piorar, ainda tem um componente espacial desta dinâmica que é a distância do Brasil do principal mercado mundial que é a China. O caso do minério de ferro, carro chefe das exportações minerais globais, em termos de volume, é típico desta dinâmica. São três gigantes que concorrem entre si: a Vale no Brasil, a Rio Tinto e a BHP ambas tendo como base a Austrália. Em função da distância do principal mercado que é a China e dos preços do frete, estas duas empresas que operam na Austrália têm uma clara vantagem de custo em relação a Vale no Brasil. Isto faz com que a Vale tenha uma estratégia ainda mais agressiva de redução de custos de produção, entre eles os custos com segurança e com trabalhadores. Logo, é necessário adicionar ao debate sobre os problemas de segurança da grande mineração no Brasil uma reflexão mais profunda sobre o mercado global de commodities minerais e a forma como o Brasil se insere nele.

Organizações da sociedade civil, movimentos sociais e parte da academia há anos vêm insistindo que é preciso fazer uma discussão sobre o modelo de desenvolvimento que temos no Brasil e o que queremos para garantirmos direitos ambientais e sociais. O que a tragédia da Vale em Brumadinho acrescenta a esta discussão?

Alessandra: O ponto anterior ajuda na reflexão sobre a questão. O modelo mineral no Brasil é parte de um modelo de desenvolvimento mais amplo que aprofunda o lugar do país como exportador de commodities minerais e do agronegócio. Este modelo foi aprofundado nos últimos 15, 20 anos em detrimento de avanços na produção industrial. Na verdade, dados apontam para uma desindustrialização e uma perda de competitividade das exportações brasileiras e uma incapacidade de concorrência com produtos importados em amplos segmentos. De outra parte, as consequências sociais e ambientais do avanço da produção e exportação de commodities, estão aí para quem quiser vê-las. Há uma pressão cada vez mais forte de desmatamento, há uma pressão em paralelo para o avanço do agronegócio e da mineração sobre áreas protegidas, considerando tanto terras indígenas quanto Unidades de Conservação de Proteção Integral e territórios quilombolas. Isto tudo é parte desta dinâmica maior que chamamos modelo de desenvolvimento e que tem por trás dele um jogo de poder assimétrico com forte desbalanceamento em favor de grupos de interesse ligados ao agro minero negócio, super-representados no Parlamento brasileiro e com forte presença por dentro do Estado brasileiro.

Isto também explica, em parte, a violência com que o atual governo tem atuado para desconstruir o pouco que há de políticas públicas e de institucionalidades, por exemplo passando a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, para garantir os direitos de grupos e comunidades que representam, aos olhos destes grupos de interesse, um obstáculo ao avanço do seu domínio sobre os “recursos naturais”.

A tragédia de Brumadinho nos mostra que não é mais possível fechar os olhos para esta dinâmica, para as relações de poder que a movem e para suas consequências.

Como acontece o processo de fiscalização das barragens de mineração do Brasil? A escassez de verba de fiscalização por parte da Vale também explica parte da tragédia?

Alessandra: Desde o crime de Mariana, com o rompimento da barragem do Fundão, há pouco mais de três anos, a fragilidade do processo de licenciamento e de fiscalização das barragens de mineração no Brasil foi escancarado, mas pouco foi efetivamente feito. Embora tenha sido aprovada ainda em 2010 uma Lei Nacional de Segurança de Barragens, ela se mostrou, desde o rompimento de Fundão, não só frágil como não cumprida, mesmo na sua fragilidade. Somente agora, depois de mais um crime com centenas de mortes, foram tomadas medidas mais efetivas, por meio de Resolução da ANM [Agência Nacional de Mineração], para apertar a regulação das barragens, em especial a proibição da construção de novas barragens à montante, a proibição de manter ou construir instalações na Zona de Autossalvamento, a desativação das barragens que utilizam esta tecnologia até 2020. Ainda assim, as medidas adotadas ainda apresentam brechas e limitações, como já apontou nota pública do Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Entre elas eu destacaria aqui o fato de que a Resolução não altera o sistema de automonitoramento da estabilidade das barragens, permitindo que as empresas mineradoras sejam responsáveis por escolher e remunerar os auditores que irão emitir os laudos. A experiência do rompimento da Barragem I e os depoimentos dos técnicos da TüvSüd explicitam como essa relação cria uma situação de poder desproporcional da empresa auditada sobre a empresa auditora, não podendo a segunda ser considerada “independente” da primeira, uma vez que seus técnicos poderão estar sujeitos à pressão para que emitam laudos favoráveis. Adicionalmente, o dever de fazer estabelecido pelo órgão regulador, a ANM, precisa ser efetivo e isto depende de capacidade institucional e financeira. Mais um elemento que veio a público com este crime foi a fragilidade da Agência, antigo DNPM.

Os dados que têm vindo a público sobre a situação das barragens de mineração no país compõem um cenário desconcertante da fragilidade da ANM, a Agência Nacional de Mineração. O órgão é responsável pela fiscalização de 790 barragens de rejeito no país, das quais 139 sob titularidade da Vale S.A.  Em 2017, contando apenas com 35 fiscais, a agência deixou de fiscalizar 73% das barragens. Além disso, falta combustível para abastecer os carros dos fiscais e até para pagar contas de luz das superintendências nos estados.

Levantamento feito pelo Inesc, mostra que o orçamento público destinado e gasto pela ANM reforça este ponto como mais um fator a ser considerado na cadeia de responsabilidades pelo rompimento de barragem da Vale e a tragédia de Brumadinho.

Em 2015, foram gastos em termos reais apenas R$ 325 milhões e em 2018, ainda menos, R$ 298 milhões. Isto considerando todas as despesas do órgão: pagamento de pessoal e seus encargos, manutenção e investimentos em sua estrutura, e execução de ações “na ponta”, entre elas, a fiscalização de barragens. [Leia mais sobre isso aqui]

O setor da mineração é historicamente beneficiado com uma carga tributária baixa, isenções fiscais e outras facilidades concedidas pelo Estado, interessado em estabelecer a balança comercial com superávit. Ainda há o fenômeno de porta giratória. Você acredita que esses indícios mostram que o mercado da mineração brasileira realiza uma captura do Estado em nome dos seus interesses? Por quê?

Alessandra: Sim, claramente. Como já dito, há uma forte pressão do setor, em especial das maiores mineradoras que operam no Brasil, para manter as coisas como estão, quer dizer, uma carga tributária historicamente baixa e relações íntimas com os órgãos do Estado responsáveis por regular o acesso aos minérios e o exercício da atividade, assim como com os órgãos responsáveis pelo licenciamento ambiental. O caso da tributação também tem relação direta com a questão dos custos. Eu diria que se estabeleceu historicamente no Brasil uma relação perversa entre tributação e exportação de base extrativista. Disto resultou a construção e manutenção de uma série de isenções fiscais e tributárias que beneficiaram fortemente o setor e sua expansão. A Lei Kandir, aprovada em 1996, isentou as exportações do ICMS impondo pesadas perdas de arrecadação aos estados e fragilizando sua própria capacidade de regular e fiscalizar. Cabe lembrar que esta Lei, tornada constitucional em 2003, foi aprovada no contexto de fortes crises do balanço de pagamentos que exigiam um enorme esforço exportador sendo esta isenção um dos elementos desta equação primária exportadora que se intensificou. Juntamente com esta isenção, as isenções fiscais concedidas para a Amazônia no âmbito da SUDAM premiam desde a década de 60 os projetos minerários na região. Na prática, desde sempre a Vale conta com perdão de arrecadação do principal imposto sobre seu lucro que é o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, para seus projetos de extração no Pará. Isto, juntamente com uma Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) também reduzida em termos comparativos internacionais, embora recentemente aumentada por Medida Provisória, mostra que sim, a baixa tributação é uma questão estrutural da grande mineração brasileira. E isto tem relações muito diretas, quer seja pela via da redução de custos que alimenta uma expansão mais agressiva da extração, quer seja pela decorrente fragilidade fiscal dos órgãos que devem regular e fiscalizar a atividade, no âmbito federal e estadual. Por fim, esta carga tributária é mantida há décadas a despeito da crise fiscal severa em que mergulhou o governo brasileiro do remédio amargo imposto por meio da austeridade fiscal. Então, se nos perguntamos, por que afinal, este tratamento tão privilegiado para o setor se mantém? Se mantém porque há uma captura do Estado por tais grupos de interesse.

O Ministério do Meio Ambiente deu sinais de quer mudar o processo de licenciamento ambiental, afirmando que diminuirá a burocracia e que é possível que as empresas façam auto licenciamentos. O caso da Vale mostra que na prática já há uma espécie de automonitoramento por parte das empresas para seus empreendimentos o que não impediu a tragédia.Em sua opinião são necessárias mudanças nos processos de licenciamentos? Quais?

Alessandra: A pauta da revisão do licenciamento ambiental na direção de uma ampla flexibilização está na mesa há pelo menos dois anos e é claramente impulsionada por grupos de interesse – ligados ao agronegócio, à grande mineração e às hidrelétricas – que querem ter custos ainda mais reduzidos para seus investimentos e maior agilidade para aprovação de licenças. Trata-se de um discurso e lobby muito perversos que inverte a lógica da equação de forma oportunista. O licenciamento como é feito hoje já é frágil e isto acontece em grande parte porque os órgãos licenciadores não têm estrutura e capacidade para atuar com o devido rigor que a legislação exige para que os impactos sejam avaliados e mitigados. Logo, a solução perversa que os investidores querem dar ao problema é flexibilizar a Lei e deixar, ainda mais, na mão do empreendedor a avaliação e o monitoramento dos impactos. Brumadinho mostrou o que isto significa. O caminho que devemos seguir não é o da flexibilização, é o da internalização dos custos sociais e ambientais na matriz dos investimentos, é a do fortalecimento dos órgãos de licenciamento e de fiscalização, e não seu desmonte como estamos vendo.

Desde o crime ambiental em Mariana, muitos técnicos e especialistas vêm alertando para o risco do rompimento de novas barragens. Segundo o pesquisador Bruno Milanez, em entrevista para Folha, a Universidade Federal de Juiz de Fora  sugeriu uma série de operações de monitoramento da barragem; o Ministério Público também e o projeto de lei “Mar de Lama Nunca Mais” tinha feito recomendações pedindo o fim do automonitoramento. Quais ações devem ser feitas para que novas tragédias e crimes como Brumadinho e Vale se repitam?

Alessandra: O caminho deve ser seguramente o de maior rigor no licenciamento, na regulação da atividade mineral e no seu monitoramento. A recente aprovação na Câmara Legislativa de Minas Gerais do Projeto Mar de Lama Nunca Mais (PL 3.695/16) representa um importante avanço. Cabe lembrar que o projeto construído depois do crime de Mariana sofreu uma tramitação difícil, de novo, com grupos de interesse ligados ao setor mineral exercendo forte pressão para que não houvesse revisão “para cima” na legislação. Ao contrário, o que houve em Minas foi a aprovação em 2016, uma Lei que flexibilizava o licenciamento ambiental. O crime de Brumadinho representa, assim, uma possibilidade de marco na revisão destes retrocessos. A Lei aprovada e que agora deve ser sancionada pelo governo de Minas Gerais, contou com uma ampla mobilização popular, foram mais de 60 mil assinaturas de cidadãos em sua defesa. A Lei avança em vários pontos como a exigência de adoção de tecnologias mais seguras para a disposição de rejeitos e a obrigação de que o empreendedor faça provisão de recursos para fazer frente aos  custos da desativação das barragens e dos possíveis danos socioambientais e socioeconômicos que um desastre envolvendo tais estruturas possa ocasionar.

No Brasil há um trabalho intenso de busca de garantias dos direitos das populações e territórios atingidos pela mineração por parte de movimentos sociais como MAB (Movimento de Atingidos e Atingidas) e MAM (Movimento pela Soberania Popular na Mineração), e organizações como a que você atua, o INESC, entre outras ONGs e movimentos que compõem o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Qual é a importância do trabalho dessas organizações?

Alessandra: O boom da mineração e suas consequências perversas para o país e para os atingidos pela mineração teve como um dos seus efeitos a ampliação da capacidade de organização e atuação de grupos em defesa dos direitos sociais e ambientais e frente à mineração. A criação em 2013 do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração é parte deste movimento. O Comitê reúne uma ampla diversidade e pluralidade de organizações e movimentos que se uniram para dar visibilidade e contribuir na defesa de grupos e comunidades já atingidas e, também, para fortalecer as lutas de resistência contra a entrada da mineração em seus territórios. Por isto, parte importante do trabalho do Comitê, do qual faz parte o Inesc, é justamente discutir do modelo de mineração que está por trás desta expansão tão agressiva do setor, da fragilização da capacidade do Estado de regular e fiscalizar, das sucessivas pressões para flexibilizar o licenciamento ambiental e permitir que a mineração entre em áreas protegidas. O reconhecimento por parte de vários grupos e comunidades de que são atingidos pela mineração e por suas barragens de rejeito, assim como pela infraestrutura também é parte central deste debate. 

Colaborou Maureen Santos