Agricultura climaticamente inteligente: problemas e mitos

Pesquisa da CCAFF em Gana
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Pesquisa do CCAFF (sigla em inglês para Research Programa on Climate Change, Agriculture and Food Security) em Gana para determinar os desafios dos agricultores para adotarem técnicas climaticamente inteligentes

O conceito de agricultura climaticamente inteligente foi criado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, sigla em inglês), em 2010. De acordo com a definição oficial, a agricultura climaticamente inteligente, “aumenta  a produção de forma sustentável, resiliência (adaptação), reduz/elimina a emissão de gases causadores do efeito estufa (mitigação) e reforça as conquistas de segurança alimentar e os objetivos de desenvolvimento nacionais.” Entretanto, organizações da sociedade civil criticaram esse conceito desde os primeiros dias, chamando atenção para a ênfase no material promocional da FAO e do Banco Mundial para um financiamento “climaticamente inteligente” vindo, principalmente, por meio da medição e da mercantilização do carbono do solo, que seria então vendido e comercializado em mercados de carbono.

A FAO, o Banco Mundial e os governos dos países desenvolvidos, promotores da agricultura climaticamente inteligente, como os Estados Unidos e Holanda, desenvolveram, desde então, uma abordagem politicamente mais sofisticada para vender o conceito através de uma nova iniciativa chamada Aliança Global pela Agricultura Climaticamente Inteligente. Ainda assim, esse conceito continua sendo um “Cavalo de Tróia” para o mercado de carbono, para os transgênicos e  fertilizantes sintéticos. Em uma reviravolta, a Aliança Global também prevê novos modos de tornar mais verde a indústria de agricultura climaticamente inteligente, com o envolvimento ativo de corporações privadas como Sygenta, Yara, Kellog’s e McDonald’s.

Agricultura e mudança climática

A agricultura enfrenta muitos desafios frente as mudanças climáticas. Bilhões de pessoas pelo mundo, incluindo os mais pobres e vulneráveis agricultores familiares e agricultores sem-terra, dependem da produção de alimentos para sobreviver e ganhar a vida. As mudanças climáticas, com cada vez mais variáveis níveis de chuva e o aumento de temperatura, são uma séria ameaça à produção agrícola e pesqueira e, à pecuária. Os rendimentos globais das produções de milho e trigo já se mostraram reduzidos em 3,8% e 5,5% respectivamente desde 1980, comparados com o que eles deveriam ter sido na ausência de alterações climáticas[1]. O contínuo aquecimento da atmosfera, a redução de chuvas em áreas de produção de culturas irrigadas, o aumento de pragas graças ao calor e outros impactos relacionados às mudanças do clima, representam ameaças sérias e reais à segurança e soberania alimentar local, regional e global. A adaptação da agricultura aos impactos das mudanças climáticas deveria ser das preocupações mais urgentes dos governos e até mesmo de todos aqueles que se alimentam.

A agricultura é também a fonte dos gases causadores do efeito estufa. A criação de gado e a produção de arroz contribuem com enormes quantidades de emissão de metano, um gás de efeito estufa poderoso. Outro gás poderoso, o óxido nitroso (quase 300 vezes mais potente do que o  dióxido de carbono), é liberado na atmosfera durante a produção de fertilizantes de nitrogênio sintético. Ele também é liberado pelo solo fertilizado. As emissões desses dois gases juntos pelo setor agrícola somam entre 10 e 12%[2] do total global das emissões de gases de efeito estufa.

 Muito das emissões de gases pela agricultura são causadas pelos métodos de produção industrial agrícola e pelos padrões de consumo dos países ricos. A agricultura em escala industrial é particularmente dependente dos fertilizantes sintéticos ao invés de compostos e adubos orgânicos. Fertilizantes sintéticos contribuem  significantemente com mais emissão de gases de efeito estufa na atmosfera do que fertilizantes orgânicos, graças às emissões durante sua produção. Na realidade, a produção global de fertilizantes sintéticos, sozinha, é responsável por 1% das emissões globais de gases.

A criação de gado em escala industrial (algumas vezes chamada de criação intensiva) também é responsável, de modo diferente, por mais emissões do que a criação em pequena escala ; lagoas de adubo animal concentrado, emitem substancialmente mais metano do que adubos originários de animais de criação abertaO consumo elevado de carne e seus subprodutos pelos países mais ricos do mundo também contribui substancialmente para a maior emissão per capita causada pela agricultura nos países desenvolvidos. O consumo de carne per capita no mundo desenvolvido é muito maior que nos países em desenvolvimento. (Ver tabela abaixo)[3].

Por que “climaticamente inteligente”?

A FAO concentra seu trabalho nos países em desenvolvimento com o mandato para apoiar a eliminação da fome e da insegurança alimentar e aumentar a resiliência das culturas de subsistência aos desastres. Logicamente, a organização deveria devotar esforços e recursos consideráveis para ajudar países em desenvolvimento a enfrentar os impactos da mudança climática na agricultura.

No entanto, a FAO tomou um atalho equivocado em meados dos anos 2000 quando embarcou no comboio do mercado do carbono. Na época, havia algum lucro a ser gerado comprando e vendendo carbono nesse mercado, especialmente através do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC). Economistas e agrônomos da FAO, argumentaram que o carbono nos sistemas agrícolas –  nos solos e nas arvores (culturas permanentes e agroflorestais) –  podia ser quantificado e vendido. Eles lamentaram o declínio contínuo de investimentos na agricultura, salientaram os significantes novos recursos que seriam necessários para adaptação e começaram a propagandear a ideia de que se poderiam gerar mais investimentos para a agricultura vendendo no mercado global de carbono o gás sequestrado em solos agrícolas. Eles achavam que tudo o que se precisava era de tecnologia mais desenvolvida para se medir o carbono do solo, e de novas regras que permitissem esse tipo de carbono ser comercializado.

A sua crença, simultaneamente, no mercado e na mercantilização do carbono do solo, era infundada. O mercado de carbono desmoronou desde então, com os preços agora pairando em uns poucos centavos por tonelada, em comparação aos 30 dólares por tonelada que valia apenas alguns anos atrás. Ainda mais problemáticos eram os pressupostos científicos de que a mercantilização do carbono do solo se baseava em que ele podia ser medido e que seria estável o suficiente para ser vendido. Mas o carbono é altamente volátil, seu armazenamento no solo é apenas temporário, sendo assim são muito problemáticas e custosas a sua medição e contabilidade, além de convencer alguém a comprá-lo. Ademais, o aumento nas temperaturas globais e as mudanças nos padrões de umidade do solo provavelmente causarão revezes com o passar do tempo. O carbono do solo se encontra, normalmente, em formas orgânicas que se degradam mais rapidamente em temperaturas mais altas. Por último, algumas das práticas mais importantes que eram comercializadas como incremento de carbono, em particular o plantio direto, demonstraram não aumentar em nada o conteúdo de carbono do solo[4].

A captura de carbono é central no conceito de agricultura “climaticamente inteligente” da FAO. Em sua definição original, a organização chama a agricultura climaticamente inteligente de uma “vitória tripla”, fornecendo ao mesmo tempo mitigação (sequestro de carbono, mas não redução de emissões), adaptação e aumento de produtividade. Muitas das práticas de sequestro de carbono também são benéficas para a adaptação, como o uso de cultivos de cobertura e o acréscimo ao solo de compostos e estrume que levam ao aumento e à estabilidade da produção. Mas fundamental mesmo, no conceito de climaticamente inteligente, e o seu elemento mais problemático, é sua dependência ao “potencial de mitigação” existente nos solos e nos sistemas agroflorestais dos países em desenvolvimento, que a FAO, o Banco Mundial e o CGIAR (Grupo de Consultoria Internacional de Pesquisa Agrícola) pensavam que gerariam novos e substanciais fundos para investimento na agricultura.

Políticas globais de redução de emissões na agricultura: transferindo os custos do Norte para o Sul

As emissões agrícolas per capita são substancialmente maiores em países desenvolvidos do que em países em desenvolvimento. Esse fato é um problema real, em particular para exportadores agrícolas provenientes de países desenvolvidos como os Estados Unidos e a Nova Zelândia. Se esses países querem continuar com o crescimento desse setor em suas economias, sua emissão de gases de efeito estufa na agricultura continuará a aumentar. Esses exportadores de países desenvolvidos precisam transferir o foco de atenção nas emissões agrícolas para além deles mesmos, em direção ao “potencial de redução” em outras áreas.

 

Fonte: Elaboração própria da autora a partir de relatórios da FAOSTAT, US EPA, UNDP.

 

É realmente uma dádiva, então, que os países industrializados possam redirecionar os diálogos sobre o potencial de redução de emissões agrícolas para o potencial de captura nos solos do mundo em desenvolvimento. Esse enquadramento ignora totalmente, e convenientemente, o enorme potencial do Norte, de redução da produção e do uso de fertilizantes e redução da produção e do consumo de carne. Em uma primeira análise, o Instituto Internacional de Pesquisa de Políticas para Alimentação (International Food Policy Research Institute, um grupo de estudos econômicos associado ao Banco Mundial e ao CGIAR), estimou o valor potencial da captura de carbono do solo e das árvores da terra nullis do continente africano em 4,8 bilhões de dólares por ano. Números como esse são usados para desviar a atenção das sociedades de alto consumo e de grandes emissões de agricultura. A promessa de pagamento por ações atrai muitos países para a mesa e a assumir medidas de mitigação na agricultura, não se importando com o quão pouco eles contribuem para o problema.

A Aliança Global para uma Agricultura Climaticamente Inteligente: Um Cavalo de Tróia para a captura corporativa do rótulo climaticamente inteligente

Para mover adiante o conceito de agricultura “climaticamente inteligente”, alguns países desenvolvidos, liderados pelo governo holandês e pelo Banco Mundial, com os EUA, a FAO e o CGIAR atuando como coadjuvantes importantes pensaram em criar uma instituição mais formal. A primeira reunião para tentar gerar entusiasmo por uma aliança global foi sediada em Haia, em 2010, com outras reuniões seguidas em Hanói, em 2012, e Johanesburgo, em 2013. Apesar da recepção morna à ideia de criar uma aliança mais formal, pela maioria dos países participantes, em cada uma dessas reuniões, os principais promotores não se detiveram em seus esforços.

Agora mesmo, esses mesmo atores estão tentando criar o que eles chamam de Aliança Global para uma Agricultura Climaticamente Inteligente. A ênfase original na “tripla vitória”, com valorização da redução de emissoes da agricultura, agora está sendo qualificada e reforçada. No entanto, mesmo escondido, esse elemento essencial de “inteligência climática” continua no documento de fundação, tal como na lista de ações coletivas a serem executadas: “promover o desenvolvimento de medições rigorosas (metodologias) para acessar... reduzidas emissões de GEE”. Como ainda mais evidência de que a redução de emissões por pequenos agricultores continua sendo parte da agenda “climaticamente inteligente”, o braço fundamental de apoio técnico da aliança, CGIAR, escreveu recentemente que “agricultores familiares fornecem até 80% do abastecimento de alimentos na Ásia e na África Subsaariana. Ainda assim, muito pouco se sabe sobre a contribuição dos sistemas familiares de produção para as emissões de GEE ou sobre as opções de mitigação para eles... o CCAFS está coordenando uma pesquisa para reunir dados básicos sobre emissões que os pequenos fazendeiros... precisam.”

Muitas organizações de sociedade civil assistem, cautelosamente até agora, o desenvolvimento da Aliança e um número crescente rejeita completamente este novo grupo e a agricultura “climaticamente inteligente”. A onda contra a agricultura “climaticamente inteligente” em geral, assim como contra a sua principal faceta organizacional, a Aliança Global, está aumentando. Organizações da sociedade civil, organizações do campo e movimentos populares pelo mundo todo estão se unindo para rejeitar a agricultura “climaticamente inteligente” e a Aliança, baseados em uma série de preocupações que incluem:

  • A agricultura “climaticamente inteligente” transfere  as responsabilidades pela redução de emissões  dos países desenvolvidos para os em desenvolvimento (os menos responsáveis pelo problema estão sendo impulsionados a criar e executar as soluções).  A responsabilidade pela redução de emissões repousa nos ombros do Norte, e os países do Norte deveriam liderar a redução de emissões, reduzindo drasticamente a produção e o uso de fertilizantes sintéticos de nitrogênio, e a produção e o consumo de carne.
  • A necessidade mais urgente dos pequenos agricultores e das comunidades rurais é se concentrar em adaptação. As mudanças climáticas e seus impactos já estão acontecendo, as ameaças à segurança e  soberania alimentar só vão continuar aumentando nos próximos anos. Em algumas regiões, comunidades não terão outra escolha senão abandonar totalmente a agricultura. Dada a severidade dos impactos que virão, as atenções deveriam se concentrar em providenciar ferramentas e financiamentos para protegerem sua segurança e soberania alimentar dos impactos das mudanças climáticas.
  • A Aliança Global já começou a estender a mão para as corporações, alargando suas filiações além de governos para o setor privado. Na última reunião da Aliança em Haia, a Syngenta (Organismos Geneticamente Modificados), Yara (fertilizantes de nitrogênio), Kellogg’s (arroz sustentável) e McDonald’s (carne sustentável), foram participantes ativos. A Aliança Global também vai fornecer novos meios de greenwash para essas e outras corporações agroindustriais. Uma publicação recente da CGIAR, apresenta a canola transgenicatolerante à herbicidas no Canadá, como um exemplo de agricultura “climaticamente inteligente”. Em seu último briefing, a Aliança anunciou uma série de ações que vai encorajar, incluindo o “aumento na procura de fontes de alimentos produzidos através de práticas climaticamente inteligentes pelo setor privado.” Ao invés de incentivar a redução no consumo de carne no Norte, a Aliança vai encorajar o consumo de carnes climaticamente inteligentes, um oxímoro sorrateiramente perigoso.

Soluções reais

As soluções reais para as mudanças climáticas no setor rural devem ser práticas de sistemas agrícolas baseados ecologicamente na resiliência climática e não a “tripla vitória” orientada para o mercado/mitigação da agricultura “climaticamente inteligente”.

   “Medidas de adaptação como... a diversificação na rotação de culturas, a integração lavoura-pecuária, melhorando a qualidade do solo, minimizando a migração de nutrientes e pesticidas para fora das propriedades, e outras práticas tipicamente associadas com a agricultura sustentável, são ações que podem aumentar a capacidade do sistema agrícola de minimizar os efeitos das mudanças climáticas na produtividade. Por exemplo:  …práticas de produção que melhorem a habilidade dos solos saudáveis de regular a dinâmica das fontes de água nas propriedades e na medição dos mananciais, serão particularmente críticos para a manutenção da produtividade de plantações e rebanhos sob condições de variáveis e extremos eventos climáticos. Melhorar a resiliência da agricultura às mudanças climáticas através de estratégias de adaptação que promovam o desenvolvimento da agricultura sustentável é uma recomendação comum de múltiplos benefícios para a adaptação agrícola[5].

Nossos governos deviam estar tomando atitudes reais e positivas para aumentar a resiliência climática nos sistemas agrícolas. Na próxima cúpula do clima em Nova York, os governos deveriam se posicionar contra a introdução da Aliança Global por uma Agricultura Climaticamente Inteligente, e em seu lugar promover ações para:

  • Promover uma agenda de pesquisa e troca de conhecimento em agricultura ecológica, adaptação e resiliência climática com ênfase nas agricultoras familiares, camponeses, indígenas e em sistemas de transferência de conhecimentos tradicionais.
  • Concentrar o foco em construir resiliência com forte programa de proteção social Food Security Climate Resilience Facility, do Programa Mundial de Alimentos (WFP, World Food Program), e:
  • Aumentar os investimentos nacionais e internacionais em resiliência climática,  agricultura ecológica, incluindo agroecologia, como através do Programa Agrícola de Adaptação para Pequenos FazendeirosAgricultores Familiares do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola(IFAD, International Fund for Agricultural Development).

Acesse a versão do artigo em inglês: E-paper: Climate-Smart Agriculture: myths and problems


[1] Lobell, D.B., et al. 2011. Tendências climáticas e produção agrícola mundial desde 1980. Science 333: 616-620.

[2] Smith, P., et al. 2014. Agricultura, floresta e outros usos da terra (capítulo 11), em Climate Change 2014: Mitigation of climate change. Contribuição do Working Group III para a Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press.

[3] Eshel, G. et al. 2014. Land, irrigation water, greenhouse gas, and reactive nitrogen burdens of meat, eggs, and dairy production in the United States. Proceedings of the National Academy of Sciences, early edition. www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1402183111

[4] Powlson, D.S. et al. 2014. Limited potential of no-till agriculture for climate change mitigation. Nature Climate Change 4: 678-683.

[5]Departamento de Agricultura dos Estados Unidos da América. 2013. Climate change and agriculture in the United States: effects and adaptation. CCPO Technical Bulletin 1935, p. 6.