Do fake saudável à gourmetização

Alimentação

A qualidade da alimentação é tema urgente no Brasil e precisa ser encarada de forma transformadora, a fim de democratizar o acesso.

Comparação entre lei orçamentária anual 2015 e projeto de lei orçamentária 2018 (por programa)

Nos últimos anos, o tema da alimentação saudável vem ganhando espaço no Brasil, tanto na mídia quanto no cotidiano da população, e o mercado já notou isso.

A demanda por produtos naturais, que impactem menos o meio ambiente, que não sejam testados em animais, ou que sejam produzidos por empresas socialmente responsáveis, vem aumentando. O acesso à informação é também ponto importante neste processo. Com o advento das mídias sociais, que fazem uma comunicação direta, individualizada e instantânea, a questão alimentar, do bem-estar e do cuidado com o corpo parece ser a bola da vez.

O fit, o diet, o light, o zero, o free, o low carb vêm a cada dia conquistando mentes e, por vezes, confundindo quem busca caminhos para uma alimentação mais saudável. Ao mesmo tempo, a conscientização sobre os impactos do sistema agroindustrial na alimentação vem criando um novo nicho de mercado onde os alimentos orgânicos e naturais vêm sendo transformados em produtos gourmet.

O mercado brasileiro de comida saudável é atualmente o 6º maior do mundo e segue em vultoso crescimento. Este mercado tem grande tendência à concentração – a exemplo das fusões e aquisições entre corporações da tríade sementes-agrotóxicos-medicamentos. Em 2014, por exemplo, uma subsidiária da companhia farmacêutica japonesa Otsuka comprou a brasileira Jasmine, uma empresa de produtos alimentares saudáveis. Em 2017, foi a vez da marca Unilever comprar a Mãe Terra. A empresa Korin, do segmento de orgânicos, frango e carne sustentável, e a Granja Mantiqueira, produtora de ovos orgânicos, também já foram sondadas para compra por grandes empresas. O que ocorre no Brasil é a reprodução do mesmo processo de fusões e aquisições no setor que vêm ocorrendo mundialmente. Exemplo disso foi a compra da maior rede de varejos de produtos orgânicos e naturais dos Estados Unidos, a Whole Foods Market, pela gigante Amazon.

Reforçando este cenário, incluem-se sucos e néctares, consumidos por grande parte da população brasileira que os compreende como mais saudáveis que os refrigerantes. No entanto, pesquisas publicadas pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), por exemplo, revelaram que estas bebidas contêm grandes quantidades de açúcar e adi- tivos químicos, e muito pouca fruta. Muitas marcas não contemplam nem o teor mínimo exigido por lei. Assim, ainda que esta categoria tenha entrado para as listas mais atentas e aguerridas do fake saudável, o mercado já captou a mensagem e está de olho no crescimento do consumo. Multinacionais que há duas décadas se concentravam mais no segmento de bebidas carbonatadas (refrigerantes) ou cervejas, vêm também expandindo para o segmento de sucos e chás prontos, como é caso da Coca-Cola, que adquiriu o famoso Mate Leão (Leão Junior S.A.), os sucos Mais, Del Valle e Ades, ou a Ambev que comprou a marca Do Bem.

Na contracorrente, há um projeto de lei em tramitação no Senado Federal (PLS n. 346/2018), que visa proibir em escolas de educação básica públicas e privadas, a distribuição e venda de bebidas como refrigerantes, néctares, refrescos, chá prontos e bebidas lácteas. O PLS dialoga com outras leis, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)

– compras públicas diretas da agricultura familiar, para pro- ver melhor qualidade na alimentação dos estudantes – e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) – compra direta de produtos da agricultura familiar por instituições públicas para geração de demanda estruturada.

Essas preocupações têm motivo. No Brasil, segundo da- dos compilados pela rede de cientistas do NCD Risk Factor Collaboration, em um estudo publicado pela revista médica internacional Lancet, o índice de obesidade entre meninos saltou de 0,93% em 1975 para 12,7%, em 2016 e em meninas de 1,01% para 9,37%, no mesmo período. O consumo de pro- dutos processados e ultraprocessados, com muito mais açúcar, sódio e gordura, são reveladores destes resultados. Brasileiros com mais de dez anos de idade consomem em média 21,5% de alimentos ultraprocessados em sua dieta alimentar diária. Isso inclui lanches do tipo fast-food, refrigerantes e néctares, pães em geral, doces e biscoitos.

No entanto, mesmo quem tenta escapar da alimentação industrializada e buscar alternativas mais coerentes com uma consciência socioambiental corre o risco de acabar dando suporte a um sistema injusto que se difunde por toda a cadeia agroalimentar, seja de produção, seja de consumo. Isso porque, aos poucos, comer bem e de forma saudável vêm se transformando em uma cultura de luxo, acessível somente para quem pode pagar por ela, e, por vezes, o que se consome é resultado de injustiças ambientais provocadas pela repetição de um modelo altamente concentrador de terras e gerador de violência e criminalização no campo, só que sem veneno. É preciso ficar atento para perceber que a gourmetização reflete simbolicamente profundas diferenças sociais de classe e raça, explicitando o cerne da desigualdade brasileira.

Frente aos graves cortes no orçamento nacional em relação às políticas públicas como o PNAE, o PAA, a Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPM-Bio), a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e o Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), entre outras, garantir o direito humano à alimentação adequada[1] – previsto no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos – está ficando cada dia mais difícil. No Brasil, esse direito foi aprovado pela Emenda Constitucional n. 64/2010, que incluiu a alimentação no artigo 6º da Constituição Federal, mas precisa ser colocado em prática para democratizar o acesso e acabar com os desertos alimentares.[2]

Transformar a qualidade da alimentação é eixo central do combate à desigualdade no Brasil, fundamental para reduzir o gap social e ecológico em que vivemos, e buscar mudanças que coloquem a agroecologia no centro das alternativas.

 

 

[1] De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o direito humano à alimentação adequada “consiste no acesso físico e econômico de todas as pessoas aos alimentos e aos recursos, como em- prego ou terra, para garantir esse acesso de modo contínuo, [...] e adequada ao contexto e às condições culturais, sociais, econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura ou grupo social” (CONSEA, 2014).

[2] Desertos alimentares são locais com difícil acesso a alimentos nutritivos por falta de informação, renda, tempo e/ou distância.