João Roberto: “As cinco grandes empreiteiras estavam em tudo. Havia indícios de formação de cartel”

João Roberto Lopes Pinto

Böll Brasil: Você poderia me explicar a [sua] relação com as Olimpíadas?

Através do Instituto Mais Democracia, a gente em 2013 lançou o trabalho “Quem são os donos do Rio?”. Fizemos um levantamento sobre a participação de empreiteiras nas obras da Copa e das Olimpíadas. Selecionamos 20 obras no Rio de Janeiro e na região metropolitana que tinham relação com a Copa e com as Olimpíadas. E percebemos um padrão de vitória nas licitações de cinco grandes empreiteiras. Denunciamos isso publicamente. Foi um trabalho realizado em parceria com o Comitê Popular da Copa, que existia à época.

As cinco empreiteiras eram Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez e OAS. Elas estavam praticamente em todas [as licitações] ou se alternavam. Já naquele momento havia indícios de formação de cartel. Não dissemos que existia porque não havia nenhuma prova. Então produzimos um folder. Fizemos também um vídeo, “o Maracanã é nosso”. Utilizamos o caso Maracanã como emblemático dessa realidade, e que se reproduz no Porto Maravilha, Transoeste, Transcarioca, Transolímpica, Parque Olímpico, Vila Olímpica, etc.

Mais recentemente, eu coordeno um grupo de pesquisa na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) que se chama ECOPOL (Economia e Política). Fizemos um estudo sobre quem são os proprietários da cultura e da educação no Rio de Janeiro. Levantamos todos os contratos da Prefeitura com a Fundação Roberto Marinho, das Organizações Globo. A Fundação está presente em todos os grandes equipamentos culturais construídos no contexto das Olimpíadas. Na área do Porto Maravilha temos o Museu da Arte do Rio (MAR), a Escola do Olhar e o Museu do Amanhã. Eles se tornaram símbolos da revitalização do Porto Maravilha. Todo o projeto arquitetônico e museológico, a curadoria, estão sob a gestão das Organizações Globo, por meio da Fundação Roberto Marinho. E também o Autonomia Carioca, que é um programa de aceleração escolar realizado pela Fundação.

Böll Brasil: Em um vídeo da Criar Brasil você fala sobre o tema dos gastos e a parceria público-privada. Você pode explicar um pouco esse conceito?

A parceria público privada (PPP) é de inspiração inglesa. Na verdade, é um modelo de concessão de infraestrutura pública para a exploração de prestação de serviços pela iniciativa privada. No Brasil, isso foi regulamentado em 1995, com a lei de concessões. Só que ela regula principalmente as concessões de serviços que são tarifados. Os investimentos privados entram para prestar o serviço, e a remuneração deles é dada pelo próprio serviço. Ou seja, o poder público não entra com nenhuma outra contrapartida senão o próprio serviço. Por exemplo: o Maracanã foi uma PPP. Ele cobre, com as bilheterias, o aluguel pra eventos. Segundo alguns analistas, o Maracanã deveria ter sido uma concessão simples.

A PPP tem uma modalidade de concessão em que eles são patrocinados, ou seja, além da tarifa, que é o investimento da parte popular, o Estado assegura uma contrapartida: mais recursos através de isenções fiscais ou através de contrapartidas pecuniárias, ou através da possibilidade de explorar outros serviços. No Maracanã, além do estádio, a construção concedia também a exploração do entorno, o estádio Célio de Barros, um shopping que seria construído na área da Aldeia Maracanã, a Escola Friedenreich. Com as manifestações de junho de 2013, esse processo foi contido. As PPPs criaram uma concessão patrocinada que favorece ainda mais o setor privado.

Böll Brasil: Bom. Essa é a polêmica que você teve com as PPPs que favorecem o espaço privado? É isso?

Isso. As obras do Porto Maravilha foram viabilizadas através da maior PPP do Brasil, a parceria da Prefeitura do Rio de Janeiro com a concessionária Porto Novo. Quem são? A OAS, a Odebrecht e a Carioca Nielson, que é uma empreiteira mais local. O Consórcio Porto Novo vai explorar boa parte daquele território. A concessão inclui a exploração da água, da coleta de lixo, das iluminações. Então abriu-se um processo de investigação. Tem uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) proposta pelo vereador Tarcísio Motta (PSOL), e tende a ser um espaço interessante de debate[1]. O ex-prefeito Eduardo Paes gostava de dizer que não tinha sido gasto nem um centavo público ali nas obras do porto.

O que foram as obras? Foi retirado todo o elevado da perimetral, um viaduto imenso. Houve todas as obras de revitalização da área, ainda em curso, e todo o processo de organização do abastecimento de água, de iluminação, de trânsito. Então todo investimento naquela área foi realizado com dinheiro público, através da Caixa Econômica Federal, que administra o FGTS, [originalmente] um fundo para seguros desempregos e para projetos de qualificação de mão de obra.

De que forma? Pela legislação urbana, para passar o limite de construção em termos da área construída, é preciso adquirir certificados chamado Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs). Ou seja, se eu quero construir para além do espaço determinado, eu compro um papel que me autoriza essa construção – uma financeirização do solo urbano. Foram emitidos CEPACs com a expectativa de incentivar muitos investidores a construir naquela área. O próprio [Donald] Trump iria construir as torres Trump ali na zona portuária. A Caixa Econômico Federal antecipou a compra de todos os CEPACs por R$ 3,5 bilhões. A ideia era de que a Caixa resgataria esse recurso mais na frente, depois que houvesse interesse em construção. No ano passado, houve a necessidade de a Caixa aportar mais R$ 1,5 bilhão. São R$ 5 bilhões, ou seja, quase US$ 2 bilhões investidos pelo Estado para assegurar as condições naquela área de atração de investimentos imobiliários.

Ali havia muita especulação sobre se a Caixa vai ter retorno desse investimento. Se não tiver, a Caixa vai ficar com prejuízo. Então, esse modelo lá no Porto Maravilha, por um lado traz essa dimensão da financeirização do solo urbano, e portanto uma tendência já na própria concepção do projeto a elitizar aquele território. Vai ser um território realmente de gentrificação, de exclusão da população pobre, como tem ocorrido no Morro da Providência, próximo daquela região, onde já houve remoções forçadas da população.

Böll Brasil: Para as transformações urbanas, você sabe se foram cortados [os gastos] em outras áreas como saúde ou educação?

Sem dúvida, o impacto dos gastos no orçamento não se sentiu naquele momento, mas estão se fazendo sentir hoje. Para se ter uma ideia, o governo [Sergio] Cabral, durante o período da Copa e da Olimpíada, isentou as empresas em R$ 180 bilhões. Essa isenção é uma das razões da crise atual no orçamento do Estado do Rio de Janeiro. Os servidores públicos estão sem receber, ou seus salários estão atrasados. Houve o pacote do Governo Pezão propondo aumentar a alíquota da contribuição previdenciária, e que acaba com a correção das aposentadorias pelo valor do salário mínimo. Além da proposta de privatização da CEDAE, empresa pública de saneamento, que é lucrativa.

Böll Brasil: Quais foram os impactos positivos ou negativos das transformações urbanas?

No Comitê, a gente já alertava que o saldo seria negativo, com o endividamento do estado, a retração dos serviços sociais, e um processo ainda maior de elitização da cidade. Essa é uma das coisas que se vê: O Rio se tornou uma das cidades mais caras do mundo. Hoje a cidade está ainda mais marcada por essa situação de desigualdade social, que só se aprofunda.

Böll Brasil: Segundo o Comitê, os jogos violaram os direitos humanos e atuaram contra os princípios democráticos. Você pode numerar alguns exemplos?

Houve realmente um processo de remoção bastante acentuado. Têm estimativas que variam de 50 a 80 mil pessoas removidas em processos forçados na cidade. Houve violações da legislação ambiental em todas as obras nas quais houve desrespeito ao processo de licenciamento. Houve irregularidades no modelo de concessão, que é esse problema de sacrificar o direito público a favor do direito privado. Houve obviamente toda uma criminalização muito forte dos movimentos sociais, das manifestações.

E toda a legislação que se estabeleceu para o contexto dos jogos, e depois só para a segurança, criou um modelo de polícia ainda mais repressivo sobre as manifestações. Então existe essa tendência hoje de bastante repressão. Fora o fato de que as taxas de violência, de homicídio, não diminuíram em função das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que foram criadas no contexto das Olimpíadas. Houve a redução dos assaltos, de pequenos furtos, mas a violência contra a população pobre e negra no Rio de Janeiro se manteve, e retoma agora a uma taxa cada vez maior.

Böll Brasil: Para que se utiliza hoje os estádios que foram construídos?

Por um lado há um problema em relação à concessão do Maracanã, exatamente por conta das manifestações e do fato do estado ter voltado atrás em relação a algumas concessões que havia feito. A concessão do Maracanã estava sub judice. A Odebrecht, que havia vencido a licitação, estava se retirando. Então tem essa questão em relação a quem vai continuar com o Maracanã. Já houve matérias afirmando que existem equipamentos com problemas de manutenção. A princípio a Vila Olímpica seria gerida pela Odebrecht e pela Carvalho Hosken, que é uma das maiores incorporadoras imobiliárias do Rio de Janeiro. Então é uma lógica de privatização, de formação de condomínios pra uma elite. Inclusive havia uma população que vivia ali na área que foi removida, como a Vila Autódromo, que teve uma luta emblemática de resistência.

Böll Brasil: Você acredita que as transformações urbanas levaram a uma segregação socioespacial?

Totalmente. Porque ela ainda está em curso, seja por conta das remoções, seja por conta do processo de gentrificação, de elitização. Principalmente da Barra da Tijuca, que já tem essa característica. Todos os investimentos estavam ligados à Barra da Tijuca. Existe uma elitização no centro da cidade começando pela zona portuária. Então esses são os dois polos que produzem a elitização. E ao mesmo tempo a atuação das UPPs, que representou alguma melhora em algumas comunidades, mas também um processo de militarização dos territórios, agora pelas mãos do estado, e ao mesmo tempo um agravamento do quadro de violência nas regiões periféricas das cidades, para onde se deslocou uma parte [dos traficantes de drogas]. As próprias obras viárias – Transcarioca, Transoeste, Transbrasil, linha 4 do metro e os VLTs no centro – todos têm como foco o Centro e a Barra. Principalmente a Barra. E isso produz um processo rápido de especulação imobiliária e expulsão das populações mais pobres.

 

[1] A CPI proposta pelo vereador Tarcisio Motta (PSOL) não foi aprovada.