O legado dos megaeventos para a mobilidade urbana: estamos parados ou avançamos?

Conferência da ONU sobre Meio Ambiente (Rio +20), Jogos Mundiais Militares, Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo de Futebol e finalmente Jogos Olímpicos, que ocorrerão em agosto de 2016. Essa é a extensa lista de megaeventos que a cidade do Rio de Janeiro nos últimos quatro anos esteve envolvida. Os eventos movimentaram a cidade e trouxeram promessas de legados em várias áreas, com mudanças urbanísticas significativas. Também deixaram evidente como políticos e gestores enfrentam problemas crônicos como moradia, mobilidade urbana, gastos públicos, transparência, segurança pública etc. O resultado é bastante discutível em termos de criar uma cidade mais inclusiva e democrática.

Tanto nos planos para a Copa do Mundo quanto naqueles para as Olimpíadas, reescrever a cidade a partir da melhoria dos deslocamentos pela metrópole fez parte do discurso do legado.

O Rio de Janeiro possui um sistema diversificado de transporte, com barcas para a travessia da Baía de Guanabara, duas linhas de metrô, com expansão de mais uma, além de uma frota de ônibus e uma malha de 270 km de trens urbanos com 102 estações. O BRT (Bus Rapid Transit), um serviço de ônibus articulados que rodam por uma via exclusiva para seu tráfego, foi uma das obras para a Copa do Mundo e possui hoje duas linhas. Nos BRTs foram gastos R$ 4,855 bilhões, mas, há dois anos inaugurado, o sistema já está saturado e sofre com acidentes, inclusive com mortes. A novidade será o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos) inaugurado em junho de 2016, fazendo até agora uma rota reduzida. O VLT vai circular apenas no Centro da cidade e já foram gastos R$1,1 bilhão, com data de término das obras para 2017.  

 

Fonte: Portal da Transparência (disponível em http://www.brasil2016.gov.br/pt-br/legado); Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Ministério do Planejamento; Portal da Transparência Copa 2014; Construtora Odebrecht (disponível em http://odebrecht.rio/legado/obra/transolimpica).Ver também em http://infraestruturaurbana.pini.com.br/solucoes-tecnicas/3/artigo215129-4.aspx; veja.abril.com.br/noticia/entretenimento/mar-conheca-o-museu-de-arte-do-rio-inaugurado-nesta-sexta-feira.

* Além de custos diretamente ligados à mobilidade urbana, como urbanização de vias e construção de túneis, a revitalização da zona portuária inclui a construção do Museu do Amanhã (R$ 300 milhões) e do Museu de Arte do Rio (R$ 79,5 milhões). Entretanto, nos dados oficiais disponíveis não fica claro a separação dessas rubricas. Optei por colocar o valor total do item.

Os BRTs Transcarioca e Transoeste significaram também remoções forçadas de comunidades para alargamento ou novo traçado das vias. Rosinaldo Luiz Mendonça foi um dos removidos da Favela do Tanque e diz: “Resisti enquanto pude, porque a indenização oferecida inicialmente foi de R$ 18 mil. Fui forte, apesar da pressão e das ameaças que a gente recebia. Diziam que viriam com liminar, que a obra passaria de qualquer jeito, e que trariam até o Exército se fosse preciso para tirar a gente à força”[1]. Ao final Mendonça aceitou os 40 mil propostos, mas lembra que muitos saíram por 12 mil, preço bem abaixo do mercado em relação à região. Os preparativos da cidade para os megaeventos causaram um processo de remoção que há quatro décadas a cidade não via. "Claro que toda política de transporte público que aumente a acessibilidade ao centro da cidade é um ganho, mas há dúvidas com relação ao BRT servindo mais como um estímulo à dispersão do que o contrário. Afastar as pessoas mais pobres do centro das cidades tem um impacto crucial. Renda, produtividade e qualidade de vida são afetadas por esta distância", diz o professor Vinicius M. Netto, da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF)[2].

A menos de sete meses da inauguração já era possível encontrar falhas no asfalto do BRT Transoeste, e no Elevado do Joá menos de um mês depois da entrega da obra. Segundo um especialista “os problemas de projetos no BRT são típicos de obras feitas às pressas e cujo andamento não é regido pela boa técnica, mas pela pressão de entregar no prazo político[3]”. Embora passageiros reconheçam que houve redução do tempo de deslocamento entre a Barra e Campo Grande, não faltam críticas relacionadas ao estado da pista e à superlotação.

O metrô do Rio é o terceiro do país em extensão, com 41 km, mas com a entrada em operação da Linha 4 ao custo de R$ 9,7 bilhões, pretende-se ligar a Barra da Tijuca à Zona Sul da cidade, facilitando o acesso à zona de maior expansão da especulação imobiliária na cidade. A expansão do metrô para aquela região segue os interesses de grupos imobiliários poderosos que terão seus investimentos supervalorizados.

Em estudo do BNDES[4] o Rio de Janeiro necessitaria de R$ 42, 5 bilhões em investimentos para melhorar significativamente a mobilidade na cidade, o que corresponde a R$ 3.615,01 per capita e 7% do PIB do Estado. Somente os gastos com metrô seriam da ordem de R$ 28,3 bilhões. O cálculo deixa de fora investimentos em transporte fluvial, para utilização do potencial marítimo da Baía da Guanabara. No total para o Brasil, a necessidade é de ampliação em 834 km da rede metroferroviária. O que o estudo também aponta é a necessidade de fortalecimento da infraestrutura industrial para construção de 9.638 carros para transporte de passageiros, o que é a demanda hoje no setor. No Rio, os novos trens são de produção chinesa, a Changchun Railway Vehicles Co, é a fornecedora.

As obras de mobilidade também alimentam um pequeno grupo de empreiteiras ligadas a todas as grandes obras de infraestrutura no Brasil. Por meio de consórcios, as construtoras Norberto Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS, Andrade Gutierrez são figuras onipresentes no manancial abundante dos gastos públicos. A maioria delas está envolvida em esquemas de corrupção junto a políticos e gestores públicos denunciados na operação Lava-Jato, a maior ação anticorrupção que o Brasil já viu.

Diante da ineficiência e da falta de pontualidade do sistema de transporte público nos últimos anos cada vez mais as pessoas estão optando pelo uso do carro. Segundo estudo da empresa de tecnologia de transporte Tom Tom, os cariocas levaram 165 horas em engarrafamentos em 2015. Comparado a 295 cidades em 38 países no mundo, o Rio ficou em 4º lugar. Esse é outro dos motivos porque a frota de automóveis no Brasil saltou de 12, 6 milhões para 26,6 milhões de 2001 para 2014, o que evidentemente não ajuda a diminuir os constantes engarrafamentos.

A prefeitura do Rio também realizou uma reorganização das linhas de ônibus, com diminuição de 25% da frota e extinção de linhas de ônibus. Os usuários reclamaram e criaram a campanha “Quero meu ônibus de volta”, criticando o poder público. Os itinerários dos ônibus também foram diminuídos, assim o usuário tem de pegar mais um ônibus para chegar ao seu destino. Para Juciano Rodrigues, pesquisador do Observatório das Metrópoles da UFRJ, “o que está por trás da racionalização das linhas é uma reação das empresas para forçar o usuário a pagar mais uma passagem”[5].

A pauta da mobilidade começou a ganhar destaque junto à população quando em junho de 2013 cerca de 1 milhão e meio de brasileiros saíram às ruas exigindo melhorias em várias áreas sociais. O estopim das primeiras manifestações que tomaram as ruas de São Paulo e Rio de Janeiro foi o aumento do preço das tarifas de ônibus. A repressão da polícia e a adesão de outros segmentos da sociedade civil ampliaram a pauta das reivindicações, e também colocaram em evidência as péssimas condições do transporte urbano nas cidades brasileiras.

O destaque para os projetos de mobilidade urbana a partir dos megaeventos, e a pauta de reivindicações são de fácil compreensão. Imagine a cada dia passar, em média, uma hora e meia dentro de um carro ou de um transporte coletivo se deslocando pela cidade. Se você vive no Rio de Janeiro e mora distante de seu local de trabalho ou de onde realiza a maior parte de suas atividades diárias isso se tornará rotina. Além disso, os gastos com transporte são significativos para o orçamento familiar. As famílias brasileiras gastam em média 20,1% do orçamento com transporte[6]. O valor é quase igual ao gasto com a alimentação.

A melhoria da mobilidade também tem ganhos em outras áreas e se conecta a outras questões sociais. Um serviço de transporte ineficiente rouba tempo de vida das pessoas, que poderiam empregá-lo em outras atividades de lazer, de educação e bem estar em geral. O debate da mobilidade também diz respeito à racionalidade com a qual as grandes cidades brasileiras foram construídas: expulsando os pobres para a periferia ou zonas de difícil deslocamento, concentrando empregos e serviços no centro ou zonas privilegiadas da cidade.

Mas será que os legados de mobilidade urbana poderão realmente ajudar os moradores do Rio de Janeiro a melhorar o deslocamento pela cidade? Essa é a esperança.  Entretanto, apesar dos projetos trazerem algum ganho em termos de diminuição dos minutos no trânsito, ainda apresentam problemas. A rápida saturação do sistema de BRTs é um exemplo. Igualmente a decisão de ampliação do metrô apenas para a Barra da Tijuca, privilegiando o acesso à maior parte dos aparelhos olímpicos, mas ao mesmo tempo, contribuindo para fortalecer a especulação imobiliária naquela área.  Os planos de mobilidade deixaram de fora, por exemplo, a Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, composta por 13 cidades que concentram mais 3,73 milhões de habitantes, sem nenhuma esperança de ver melhorada sua rede ferroviária, quiça linhas de metrô.

 

[2] PUFF, Jefferson. “Olimpíada é oportunidade perdida”, dizem urbanistas sobre Rio 2016. BBC Brasil, 15/08/2015. Disponível em http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/08/150814_urbanistas_rio2016_jp. Acesso em 10/02/2016.

[3] Representante da Associação Brasileira de Pontes e Estruturas (ABPE) no Conselho Regional de Engenheria e Agronomia (Crea), o engenheiro Antonio Eulalio Pedrosa Araujo. Disponível em http://oglobo.globo.com/rio/buracos-remendos-marcam-caminho-do-brt-transoeste-19491367#ixzz4BTWjmvup

[4] SANTOS, Rodolfo Torres dos et al. Demanda por investimentos em mobilidade urbana no Brasil. BNDES Setorial, Rio de Janeiro, n.41 , p. [79]-134, mar. 2015. Disponível em

https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/4301, acesso 01/06/2016.

[5] PITASSE, Mariana. Quatro milhões de disputam mil postos de recarga do Bilhete único no Rio. Brasil de Fato, 08/06/2016. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2016/06/08/quatro-milhoes-disputam-mil-postos-de-recarga-do-bilhete-unico-no-rio/. Acesso em 10/02/2016.

[6] Carvalho, Carlos Henrique R. & Pereira Rafael Henrique M. Gastos das famílias brasileiras com transporte urbano público e privado no Brasil: uma análise da POF 2003 e 2009. Texto para discussão/Ipea. Brasília: Rio de Janeiro: Ipea, 2012. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=16579. Acesso em 15/06/2016.