Maior ameaça à liberdade nas redes são os Estados nacionais, afirma Ronaldo Lemos

Ronaldo Lemos: "Não há nada que um indivíduo sozinho possa fazer para se proteger contra as inúmeras tentativas de vigilância e análise de dados que incidem sobre ele. Essa batalha tem que sair da esfera do individuo e ir para a esfera do coletivo"
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Ronaldo Lemos: "Não há nada que um indivíduo sozinho possa fazer para se proteger contra as inúmeras tentativas de vigilância e análise de dados que incidem sobre ele. Essa batalha tem que sair da esfera do individuo e ir para a esfera do coletivo"

HBS entrevista Ronaldo Lemos, diretor do ITS-Rio

Um ano após a aprovação do Marco Civil da Internet, segue a discussão, no Brasil e no mundo, sobre a natureza da internet e como essa deve ser tratada pelas autoridades estatais. Novas medidas no Congresso parecem mudar os rumos da discussão na Câmara brasileira, ao mesmo tempo que críticas à forma que a rede possui hoje estão surgindo ao redor do globo.

Uma das vozes proeminentes nesse debate, eleita em 2015 pelo Fórum Econômico Mundial como um dos "Jovens Líderes Globais", é Ronaldo Lemos, que participou do debate “As ambivalências digitais: democracia e controle”, abrindo a comemoração dos 15 anos da Fundação Heinrich Böll no Brasil. Mestre em direito pela universidade de Harvard, doutor em direito pela USP, pesquisador visitante e representante no Brasil do MIT Media Lab e hoje professor da Faculdade de Direito da UERJ e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), Ronaldo foi um dos arquitetos do Marco Civil da Internet e concedeu, no dia 29 de setembro, uma entrevista à Fundação para falar um pouco mais sobre a lei e sobre a situação da rede hoje.

HBS: Um ano após a aprovação do Marco Civil da Internet, como você avalia a lei? O que deu certo e o que precisa melhorar? Até onde o PL 215/2015 ameaça essa conquista?

Ronaldo: Um ano depois do Marco Civil o saldo é totalmente positivo. O Brasil deu um salto muito importante na proteção de direitos fundamentais. Principalmente se você olhar para outros países como a Rússia e a Turquia, que optaram por dar poderes ao Executivo para que interferisse diretamente na internet e em seu conteúdo. Já o Marco Civil brasileiro seguiu um caminho distinto ao retirar do Poder Executivo qualquer possibilidade de interferência na internet ou em seu conteúdo, delegando isso somente ao Poder Judiciário, ou seja, com o devido processo legal.

O Marco Civil trouxe também os seus descontentes. Hoje há uma iniciativa em Brasília de se aprovar um projeto de lei chamado PL 215. Esse projeto é uma tentativa de revogar uma parte do marco – justamente aquela que exige a necessidade de ordem judicial prévia para qualquer tipo de intervenção na obtenção de dados dos usuários, na remoção de conteúdos ou até na obtenção de comunicações privadas. A motivação surgiu da preocupação de alguns políticos que querem se resguardar caso as pessoas falem mal deles na internet. Se o projeto passar, será uma grande perda para o Brasil. Significaria que o Marco Civil seria mutilado em uma parte importante, além de ser um cerceamento à liberdade de expressão. Sou totalmente contrário à aprovação desse projeto.

HBS: Você acha que esse projeto de lei dialoga com a questão do direito ao esquecimento?

Ronaldo: De fato, um dos componentes desse projeto é o direito ao esquecimento, tema muito complexo que surgiu devido a uma decisão da Corte Europeia de Justiça em um caso iniciado na Espanha. Decidiu-se que, em alguns casos específicos, se poderia retirar o resultado de busca de alguns temas. A Europa não decidiu pelo direito de “ir lá e deletar”, ou seja, apagar a informação original. O que ficou decidido é que, em alguns casos, os buscadores de internet teriam que tirar os resultados para não prejudicar a honra das pessoas. No entanto, quem fosse até os arquivos de jornal ou históricos encontraria lá os resultados.

Já o projeto de lei brasileiro quer dar o direito ao usuário de apagar os próprios arquivos. Então não é resultado de busca, é apagar literalmente os arquivos históricos que estão online e remover a informação da face da Terra em nome de uma suposta proteção à honra. Em princípio, acho isso perigosíssimo. Ainda mais na América Latina de hoje, onde há um esforço das democracias latino-americanas de protegerem seu passado, de entenderem e compreenderem sua história, inclusive marcada por governos ditatoriais. Nesse momento, criar um direito ao esquecimento acho muito problemático.

HBS: O blogueiro iraniano Hossein Derakhshan recentemente foi libertado da prisão em seu país após seis anos de encarceramento devido a sua defesa da liberdade de expressão na rede, período em que ele não teve acesso à internet. Ao se deparar com o estado da internet atual, ele escreveu o texto "The Web We Have to Save" no qual critica as redes sociais, defende que o acesso à informação aberta está comprometido e advoga por uma rede norteada por links. Qual seria sua posição sobre o estado da internet atual? Ele favorece a democracia?

Ronaldo: O caso do Hossein Derakhshan é muito interessante.Ele escreveu também nesse artigo que se tentasse reabrir seu blog não teria impacto nenhum, porque as pessoas migraram para redes sociais e outros tipos de site que agregam as manifestações públicas. O artigo gerou um grande debate entre teóricos, e uma professora da Turquia chamada Zeynep Tufekçi respondeu dizendo que seria bom esse conteúdo estar mais concentrado, porque fica mais difícil o conteúdo ser retirado do ar. A ideia é que se tendo só um blog seria mais fácil de você ser desconectado da internet do que um dos grandes sites globais.

A minha visão particular é que eu tenho certa saudade dessa internet mais descentralizada. Tem uma metáfora criada por um amigo chamado José Marcelo Zacchi que diz: a internet que nós vivemos hoje é como se o condomínio fechado tivesse tomando conta da cidade. E em certa medida eu acho que precisamos preservar a “cidade”. Preservar essa web aberta, descentralizada, onde você pode flanar pela cidade sem estar necessariamente em um espaço fechado que tenha um interesse privado predominante. Nesse sentido, sou um grande fã da “cidade” e sua preservação na internet.

HBS: Levando em conta a posição dúbia de alguns gigantes do setor, hoje qual grupo representaria uma maior ameaça à liberdade na rede: as grandes empresas digitais ou os governos nacionais?

É um tema que passa pelas questões ligadas à vigilância, à privacidade, e para mim a solução dele passa pela lei. Nesse sentido, a grande ameaça são os governos nacionais. Eu não acho que a batalha pela privacidade na internet, contra o vigilantismo, vá ser vencida pela tecnologia. É como combater fogo com fogo. O único elemento, a única instituição que, a meu ver, tem a possibilidade de definir quais são os limites do uso da tecnologia, do uso dos dados, da vigilância, dos modelos de negócio, é a lei. Porque a internet, com a tecnologia que temos hoje, pode ser utilizada para ambas as coisas. Ela pode ser uma ferramenta incrível para a promoção da discussão pública, para a liberdade de expressão e ao mesmo tempo pode ser a ferramenta de vigilância perfeita. O que vai definir se esse uso será de vigilância, de supervisão e controle, ou um uso de generatividade, de discussão, de abertura, serão os limites que a lei vier a estabelecer, e não a natureza intrínseca da tecnologia. Por isso vários amigos ativistas trabalham com a idéia de educação tecnológica para a proteção da privacidade. Eles estão totalmente certos, tem que ensinar mesmo a criptografia, a proteção dos dados e todas essas questões, mas temos que dar um passo seguinte que é transformar essa discussão numa discussão pública, coletiva.

Hoje, no ponto de vista do individuo, essa batalha já foi perdida. Não há nada que um indivíduo sozinho possa fazer para se proteger contra as inúmeras tentativas de vigilância e análise de dados que incidem sobre ele. Essa batalha tem que sair da esfera do individuo e ir para a esfera do coletivo, da política, da lei. Então, a meu ver, a ameaça certamente vem de Estados Nacionais, de instituições governamentais ou públicas que desvirtuam a natureza da lei para permitir de alguma maneira que a tecnologia seja usada mais como vigilância do que como um ambiente de generatividade, de discussão.