Classe média: afinal do que estamos falando?

Passageiros esperam ônibus no Terminal Capelinha, São Paulo
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Passageiros esperam ônibus no Terminal Capelinha, São Paulo

Apresentação

Entre as características atribuídas pelo ex-diretor do  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos Marcelo Neri à “Nova Classe Média Brasileira” (NCM) - fenômeno de certa forma por ele inventado e depois sistematicamente promovido - é a da resiliência deste novo estrato social. Agora, com os índices econômicos em declive, esta classe já está encolhendo, e isso antes da crise econômica realmente eclodir com severidade.[1]

Recentemente, foi nomeado diretor do IPEA Jessé Souza, um dos mais duros críticos do pai da NCM Marcelo Neri. Souza não apenas criticou o economicismo da análise da estratificação social no Brasil, como tem negado a aplicabilidade do conceito “classe média” ao que ele chama de “os batalhadores”: trabalhadores que através do seu esforço e dos benefícios das políticas sociais do governo Lula conseguiram sair da pobreza, mas não necessariamente passaram a ocupar uma nova classe social.  Faltam-lhes diversas características do que se conhece como classe média, entre estas, posse de algum patrimônio, como uma poupança, e de capital social, conjunto de relações sociais com pessoas influentes. Esses aspectos fazem com que, em geral, aqueles que pertencem a classe média suportem uma crise econômica sem descender socialmente.

Já fica claro que a NCM é menos (ou não apenas) uma ficção conceitual senão uma realidade política, inserida num sistema econômico capitalista em vigor e vinculado a uma política econômica e social, a um modelo de desenvolvimento concreto. Concebendo a NCM como um sujeito de consumo cujo campo de atuação e referência é o mercado, abrem-se lacunas e desatenções cometidas pelo Estado e/ou pelo governo que são dificilmente compatíveis com uma política de compromisso social e ambiental que nominalmente temos no Brasil.

O seguinte texto da professora da Fundação Getúlio Vargas Sonia Fleury aponta os principais problemas que a política da NCM apresenta no Brasil. As possibilidades de mudanças na política da “Nova Classe Média” do governo brasileiro com o novo diretor do IPEA é algo que merece nossa observação com atenção.  

Dawid Danilo Bartelt

 

Classe média: afinal do que estamos falando?

Por Sonia Fleury

A polêmica sobre o conceito de classe média deixou de ser um debate acadêmico entre aqueles que confrontam Weber a Marx na abordagem teórica das classes sociais no capitalismo, para situar-se nas agências e bancos internacionais e nos órgãos governamentais.

Entre nós a difusão do conceito de Nova Classe Média- NCM ficou associada a politicas distributivas do governo Lula no combate à pobreza. Estudos econômicos respaldaram conclusão política a maioria de a população situar-se agora na classe média.  Levaram Marcelo Nery à presidência do IPEA que agora empossou Jessé Souza, conhecido por seus estudos sobre como grupos populacionais identificados como pobres interpretam sua condição e o mundo. Afinal, qual o significado dessa mudança?

É conhecida a ubiquidade do conceito de classe média tanto que é normalmente utilizado no plural, classes médias. Inclui desde a burguesia empreendedora e revolucionária na transição ao capitalismo até as distintas frações desse estrato, identificadas pela sociologia americana em pesquisa de hábitos de consumo e mobilidade social. Alta, média e baixa classe média seriam possuidoras, em distintos níveis, de capacidades em relação à autonomia, prestígio, segurança econômica e influência social.

Chama atenção que com tantas diferenciações tenha sido necessário cunhar e difundir um novo conceito como o de NCM. Para responder, é preciso ficar claro o DNA do termo NCM, que tem dominado publicações do Banco Mundial e  Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico  - OCDE sobre as regiões onde se concentram as economias emergentes da Ásia, América Latina e África. Trata-se do reconhecimento de alterações recentes na estrutura social tradicionalmente estagnada em diferentes países, nos quais uma parte da população ultrapassou recentemente a linha de pobreza, cerca de 70 milhões de pessoas anualmente.

Esse fenômeno se deu simultaneamente ao deslocamento da economia mundial desde as economias desenvolvidas em direção às emergentes, em especial a Ásia, capitaneada pelo crescimento da produção e dos mercados na China e Índia. Estimativas da OECD preveem que em 2034 o centro de gravidade da economia global tenha se deslocado para a Ásia, que será responsável por 57% da produção global.

A produção de uma NCM é entendida desde a perspectiva de mercado como possibilidade de aumento do consumo em grandes mercados, o que permitiria não apenas impulsionar o desenvolvimento nacional, mas seria a solução para a crise atual da economia global, e, portanto, do próprio capitalismo. Essa é a essência da invenção da NCM, que é também responsável pela redução da questão relacional desde uma posição social de classe ao novo consumismo, padrão de medida do desenvolvimento e da realização pessoal. Mais consumo, mais mercado, mais competição na produção, maior incorporação tecnológica, mais felicidade!

Esse modelo deixa de levar em conta questões essenciais que requerem ser retomadas na discussão pendente sobre o projeto de desenvolvimento nacional. Dentre elas, destacamos:

  1. A ausência de debate sobre a fragilidade da relação entre consumo e crescimento econômico, quando se privilegia a produção de commodities sobre a industrialização, gerando alto teor de vulnerabilidade às oscilações de preços internacionais de bens com pouco valor agregado enquanto é estimulado o consumo de bens industrializados importados;
  2.  A falta de sustentação da expansão e manutenção do consumo de grupos que apenas ultrapassaram a linha de pobreza e que já sentem o peso da desaceleração mundial da economia, aumento da inflação e endividamento familiar. A frustração das expectativas de consumo em uma situação como essa poderá gerar consequências imprevisíveis para um projeto político sustentado em bases restritas à inserção no mercado.
  3. A premissa subjacente a esse modelo é de que os recursos naturais e ambientais são objetos de consumo ao invés de pautarem um novo padrão civilizatório que subordine o consumo à preservação da vida, em condições saudáveis e ambientes sustentáveis. Avanços na mineração, desflorestamento, poluição, alteração do curso de rios e desrespeito aos povos originários desses territórios são consequências naturalizadas nesse modelo de consumo, portanto deixam de constar na agenda do debate político.
  4. Outra premissa latente, para a qual não há qualquer fundamentação sociológica é que a existência de maior número de consumidores determinaria a propensão ao empreendedorismo e à defesa dos regimes democráticos. Claramente, tanto ações individuais empreendedoras como ações coletivas de respaldo a valores democráticos não são consequência do volume de consumo. Ao contrário, uma inclusão exclusivamente baseada no consumo induz ao individualismo e competição predatória, sendo incapaz de gerar coesão social, base da governabilidade democrática. O ressurgimento de partidos e grupos neonazistas na Europa mostra como a crise econômica mobiliza em consumidores frustrados apenas ódio e xenofobia.

Portanto, é bem vinda qualquer proposta que retire a discussão das alterações na estrutura social brasileira da pobreza na qual ela estava sendo tratada. Imprescindível nesse debate é entender o papel das políticas públicas para gerar vínculos entre cidadãos sujeitos de direitos, promover capacidades que aumentem a resiliência dos processos de mobilidade social e, criação de arenas públicas de debates. Só dessa forma, assegurando a participação de todos os interessados, poderemos definir um padrão de desenvolvimento nacional que nos situe em um patamar civilizatório condizente com as aspirações nacionais.